Teoria Monetária Moderna não defende gastos públicos sem limites
O argumento central da Teoria Monetária Moderna (MMT) é simples: como a moeda é uma dívida pública, o emissor desta moeda não precisa (na verdade, não pode) depender do recebimento da moeda para que seja capaz de realizar pagamentos
Em 2020, quando a crise sanitária, social e econômica produzida pela pandemia do novo coronavírus obrigou governantes e economistas no mundo inteiro a reconhecerem que estavam equivocados quando alegavam que havia restrição financeira aos gastos dos governos centrais monetariamente soberanos, coube à Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês) oferecer a única explicação cabível para os fatos econômicos observados naquele ano. No Brasil, por exemplo, o déficit primário do governo chegou a inacreditáveis R$ 743 bilhões; (a) sem que o governo enfrentasse qualquer dificuldade operacional para realizar seus pagamentos; (b) sem que a taxa de juros referencial da economia se elevasse; (c) sem que o custo médio da dívida pública aumentasse; e (d) sem que houvesse descontrole inflacionário por excesso de demanda agregada. Tal resultado teria sido impossível se os economistas e especialistas em finanças públicas que eram ouvidos até 2020 realmente tivessem razão sobre a origem do financiamento do gasto estatal. Afinal, como seria possível recorrer a impostos e empréstimos junto ao setor privado para financiar a expansão do gasto estatal necessária para que a economia e sociedade não fossem arruinadas pela pandemia se as famílias e empresas brasileiras estavam insuportavelmente empobrecidas pela crise pandêmica, ameaçando também a solvência dos seus bancos credores?
Confusamente, economistas de todas as vertentes defenderam que o governo brasileiro deveria recorrer a mecanismos extraordinários para o financiamento de seus pagamentos. Mesmo economistas conservadores como Henrique Meirelles chegaram a defender que o governo poderia “imprimir” dinheiro, mas apenas para combater a pandemia e seus efeitos, como se os supostos (na realidade inexistentes) mecanismos responsáveis por transformar mais dinheiro em inflação inevitável estivessem convenientemente suspensos pela pandemia. Outros defenderam que o governo recorresse ao financiamento direto do Tesouro pelo Banco Central, por temerem que pudesse faltar demanda privada por dívidas públicas. Felizmente, num acordo exato com a MMT, nenhuma inovação operacional foi necessária para que o governo brasileiro pudesse elevar os seus gastos para combater a pandemia. Bastou apenas que as amarras legais sobre o gasto público fossem desfeitas (teto sobre gastos primários, exigência de cumprimento de meta de resultado primário, e o impedimento ao endividamento público quando não acompanhado de investimentos), primeiramente pelo decreto legislativo de calamidade e finalmente pela Emenda Constitucional nº 106, para que o governo brasileiro realizasse todos seus pagamentos com a mesma facilidade com que sempre fizera antes da pandemia.
Previsivelmente o sucesso acachapante da MMT como ferramenta para o entendimento das finanças públicas e como guia para a gestão macroeconômica incomodou muito os defensores do paradigma convencional, especialmente os incumbidos com a repulsiva tarefa de contar inverdades econômicas convenientes ao projeto de pilhagem do Estado brasileiro e preservação dos ganhos rentistas dos capitalistas. Afinal, seria bem mais difícil justificar a agenda de sucateamento do Estado e privatização das riquezas públicas sem que se pudesse apelar ao mito de que o Estado está ameaçado de falência financeira e poderá a qualquer momento esgotar sua capacidade de realizar pagamentos. Caso os gestores macroeconômicos compreendessem (ou admitissem compreender) que o Estado não enfrenta restrições sobre a sua capacidade de realizar pagamentos, seria possível adotar políticas de estabilização macroeconômica muito mais eficazes para a promoção do bem-estar geral, porém inconvenientes para interesses específicos poderosos. Uma economia brasileira em crescimento, com um nível de emprego persistentemente elevado e geradora de oportunidades para a sobrevivência e desenvolvimento de pequenos e médios empresários, reduziria a capacidade dos grandes empresários de elevarem suas taxas de lucro via achatamento salarial e concentração dos mercados. Numa macroeconomia mais estável e próspera, haveria menos volatilidade de preços financeiros, dificultando que sempre os mesmos grandes especuladores seguissem obtendo seus ganhos extraordinários com arbitragem. Não surpreendentemente, são os interesses ameaçados pela boa gestão macroeconômica que patrocinam e promovem a disseminação das teorias anti-intervencionistas.
O argumento central da MMT é simples: como a moeda é uma dívida pública, o emissor desta moeda não precisa (na verdade, não pode) depender do recebimento da moeda para que seja capaz de realizar pagamentos.
A resistência ideológica à MMT não é expressa apenas pelos beneficiários das fantasias neoliberais. A resistência ideológica cabe, também, aos especialistas que obstinadamente defendem alguma expressão da antiga “visão do Tesouro” ou “finanças saudáveis”, isto é, a necessidade de aderir à contenção fiscal sob pena de o país sofrer consequências terríveis se não fizer. Recorrentemente, economistas críticos da MMT pretendem caracterizá-la como “extremista”. Autointitulados “moderados” ou “tradicionais”, esses críticos atribuem a si mesmos um equilíbrio supostamente benéfico, uma postura que não causaria tremores aos capitalistas. Como proponentes do rigoroso instrumental analítico da MMT para as finanças públicas e sistema monetário, pretendemos reparar equívocos infelizmente recorrentes em críticas à MMT.
Primeiro, é preciso entender o que é demonstrado pela MMT.
(a) governos monetariamente soberanos sempre criam moeda quando realizam pagamentos de modo que a venda de suas dívidas remuneradas e a cobrança de impostos não são operações de financiamento dos gastos públicos.
Há várias publicações (Conceição&Dalto 2022; Conceição&Deccache 2021; Dalto 2021, e Dalto et ali 2020) em que apresentamos o mecanismo pelo qual o governo realiza seus pagamentos através de criação de base monetária pelo Banco Central, acompanhada da criação de meios de pagamentos pelos bancos comerciais. Resumidamente, todo gasto da União gera a criação de reservas bancárias (moeda estatal ou base monetária que é um passivo do banco central/ativo dos bancos) que, simultaneamente e em mesmo montante, é acompanhada da criação de depósitos (moeda bancária que é um passivo de um banco comercial) pelos bancos em favor do recebedor do pagamento da União. Por seu turno, todo pagamento de tributos percorre o caminho contrário, destruindo depósitos bancários e base monetária. Como o Banco Central e o Tesouro Nacional são meros “bolsos” de um mesmo ente (a União), numa contabilidade consolidada (encontro de contas) esses ativos (Tesouro) e passivos (Banco Central) compensariam um ao outro. Enquanto déficits fiscais deixam um saldo nas contas dos agentes privados que pode ser usado para comprar títulos públicos, superávits fiscais não têm qualquer materialidade como fonte de pagamentos do governo. Todos os pagamentos realizados pelo governo implicam em novas emissões monetárias como acima descrito. Finalmente, tal demonstração não parte de preferência de posição fiscal. Operando em déficit, em superávit ou em equilíbrio fiscal, o governo sempre gasta emitindo moeda.
Seja como for, a MMT observa que o pagamento de tributos, para ser realizado pelos contribuintes, deve ser precedido de pagamentos realizados pela União. Sem possuir reservas bancárias criadas pelos pagamentos da União, os bancos não seriam capazes de realizar os pagamentos de tributos ordenados por seus clientes. Da mesma forma, bancos só conseguem comprar títulos públicos se a União operar em déficit de forma a deixar saldos de reservas bancárias disponíveis nos bancos. Em outras palavras, a venda de títulos pela União não é uma operação de financiamento. A venda de títulos é uma opção rentável (por render juros) que a União oferece para a poupança financeira privada, já que a alternativa seria o setor privado acumular moeda estatal (reservas) que não pagam juros.
Do acima exposto, a MMT conclui que (b) governos monetariamente soberanos não sofrem restrições financeiras para realizar pagamentos em suas moedas. Críticos da MMT, desde os muito hostis como John Cochrane até os mais simpáticos como Paulo Nogueira Batista Jr., sugerem que a MMT implica em que “não há limite para o gasto público quando o Estado emite uma moeda nacional”. Embora parecidas, as afirmações não significam a mesma coisa. Ao contrário do que defendem os críticos, o reconhecimento dos limites reais ao gasto público é um dos corolários fundamentais da MMT, como pode ser verificado a partir da leitura dos trabalhos de centenas de autores MMTistas, inclusive brasileiros. Nós mesmos dissemos, reiteradas vezes, que “a Teoria Monetária Moderna reconhece… os limites reais para o gasto público. Enquanto os limites financeiros são inexistentes, os reais são, de fato, existentes. O limite real para o gasto público é o limite de recursos reais disponíveis para serem empregados na produção de riqueza real da sociedade. Conforme estabelecido pelo primeiro princípio das Finanças Funcionais, o gasto público não deve ser nem maior nem menor do que aquele condizente com o pleno uso dos recursos produtivos.” (Dalto et ali 2020, p.25-26). A mesma linha de argumentação é amplamente enfatizada em inúmeros trabalhos dos autores MMTistas (Conceição&Dalto 2022; Kelton 2020; Wray 2015).
Entretanto, a MMT não limita as potenciais restrições do gasto público ao estado de pleno emprego. Como afirmamos em 2020, “mesmo antes de se atingir o pleno emprego é provável que existam restrições de disponibilidade de recursos reais – recursos naturais, mão de obra especializada de algum tipo etc.” (p.26). Ademais, as restrições de recursos reais “não se aplicam exclusivamente aos gastos do governo. Elas são, de fato, restrições a qualquer aumento de gastos na economia”, sejam eles públicos ou privados. (p.27). A MMT, portanto, não restringe suas preocupações de orientação dos gastos à esfera das finanças públicas, mas propõe uma orientação coerente dos gastos (e suas direções) em sentido global.
Assim como Keynes, a MMT afirma que governos monetariamente soberanos devem apenas se preocupar com uso dos recursos reais disponíveis desempregados, não com métricas inúteis para aferir o bem-estar coletivo. Textualmente: “… o critério de se a economia é útil ou não é o estado do emprego… É o fardo do desemprego e o declínio da renda nacional que estão prejudicando o Orçamento. Cuide do desemprego, e o Orçamento cuidará de si mesmo” (Keynes, CW XXI, p.149-150). Em síntese, ao demonstrar que governos soberanos sempre emitem moeda ao gastar e que não sofrem restrições financeiras ao gasto, a MMT desmistifica regras esdrúxulas de equilíbrio fiscal e joga luzes sobre o que de fato deveriam ser as preocupações das políticas públicas: o déficit de igualdade social, o déficit ambiental, o déficit de emprego e assim por diante. Se para solucionar esses déficits reais o governo tiver que incorrer em déficit fiscal, a MMT afirma que nada de indesejável virá deste último, pelo contrário o déficit fiscal será funcional para sanar os déficits reais.
Críticos da MMT retomam uma recorrente objeção ao uso funcional da política fiscal (ela é recorrente ao menos desde 1920 quando Keynes lutava contra a visão do Tesouro) de que governos monetariamente soberanos são reféns da confiança de agentes do mercado financeiro. Segundo essa visão, se a política fiscal expansiva provocar abalos à confiança dos detentores do capital de que a dívida pública crescerá de maneira sustentável, haverá pressão sobre a taxa de câmbio ou sobre as reservas internacionais, com impactos adversos na inflação e nas taxas de juro. É um argumento baseado no subjetivismo, mas também na falta de evidências. Partindo de uma situação de capacidade ociosa de recursos produtivos – a única situação em que a MMT recomendaria expansão de gastos –, a consequência imediata do aumento de gastos seria o aumento da renda, incluindo os lucros. O aumento dos lucros dificilmente poderia ser arregimentado como razão para afetar negativamente as expectativas (e a confiança ou percepção) dos capitalistas.
Entretanto, vamos supor, como querem os críticos da MMT, que os capitalistas tenham mais preocupação com o equilíbrio fiscal do que com seus lucros. Ademais, vamos supor que os capitalistas não conheçam os mecanismos de gastos públicos descritos anteriormente, portanto que eles acreditem na fantasia de que os pagamentos do governo sejam financiados por impostos. Não seria mais razoável que os capitalistas previssem que o crescimento da renda causado pela expansão do gasto público facilitaria, ao invés de dificultar, o pagamento da dívida pelo governo uma vez que as receitas públicas tenderiam a crescer com o crescimento da renda? Quando a macroeconomia se fundamentava na teoria de Keynes era justamente o que se esperava acontecer por causa do efeito multiplicador dos gastos públicos. Cuide do emprego que o orçamento cuidará de si mesmo!
De toda forma, deixando de lado as percepções fantasiosas dos capitalistas e mantendo-nos na realidade factual, deveríamos nos perguntar por que os capitalistas detentores de dívida pública teriam uma “percepção” de que não receberiam os pagamentos prometidos se ao olhar suas contas bancárias observam que o governo continua pagando os rendimentos prometidos nos títulos? Ou, por que os capitalistas que vendem para o governo se preocupariam com o déficit se o déficit é exatamente sua receita após os impostos? Na verdade, a proposição de que os capitalistas são cegos em relação a suas contas correntes e cautelosos em relação às contas públicas sugere que os capitalistas sejam agentes irracionais e altruístas. Acreditar que “percepções” possam superar a realidade é uma argumentação fraca porque o choque com a realidade dissipa os preconceitos.
E, de fato, a realidade não tem corroborado os preconceitos que os economistas carregam. Primeiro, a taxa de juros não está correlacionada com o tamanho do déficit primário ou da dívida pública, como ficou evidente em plena pandemia quando tanto o déficit como a dívida escalaram patamares históricos enquanto a taxa de juros (que expressaria a percepção de risco dos capitalistas) baixaram a valores não vistos em mais de quarenta anos no país (e no mundo). Segundo, a taxa de câmbio também não tem se correlacionado com o nível ou com o crescimento da dívida pública.
Qual a explicação para o fato de déficits e dívida pública não obrigarem a elevações da taxa de juros? Segundo a MMT, (c) a taxa de juros de curto prazo é fixada administrativamente pelo banco central e não fruto de operações de mercado estabelecidas por agentes privados (a ideia de taxa de juros exógenas/moeda endógena hoje amplamente aceita pelos banqueiros centrais e mesmo economistas ortodoxos).
Por outro lado, mesmo mostrando que a taxa de juros é determinada pelo banco central e tomada pelo mercado, a MMT reconhece que restrições de balanço de pagamentos podem constranger a política fiscal. Países com taxas de câmbio fixas e elevadas dívidas em moeda externa possuem menores espaços de política econômica. Em contraste, câmbios flutuantes e restrições legais e operacionais ao endividamento em moeda externa, além de outras possíveis medidas protetivas como a manutenção de elevadas reservas cambiais, ampliam o espaço da política econômica doméstica. Entretanto, a simples possibilidade (que o Brasil não tem enfrentado há pelo menos vinte anos!) de uma restrição de balanço de pagamentos não é razão suficiente para que a taxa de juros necessariamente precise se manter em nível superior à taxa de crescimento da economia, como sugerem alguns críticos heterodoxos. Ademais, mesmo que a taxa de juros incidente sobre as dívidas públicas esteja ocasionalmente em nível superior ao crescimento da economia, ainda que tal resultado possa estar associado a efeitos distributivos pouco desejáveis, como não há risco de insolvência, o simples crescimento da dívida pública como fração do PIB não é em si um problema cujo enfrentamento exija abrir mão de políticas necessárias para a promoção do pleno emprego e de uma trajetória de crescimento materialmente sustentável. Finalmente, gargalos estruturais que eventualmente contribuam para potencial restrição de balanço de pagamentos (como importações de derivados de petróleo, ou dependência de serviços marítimos de companhias estrangeiras) exigem crescimento de gastos com investimentos públicos vultosos para serem superados.
Frequentemente, os leitores são convidados a aceitar petições de princípio, como a que de alguma forma, não explicada, os capitalistas desconfiariam de uma dívida que se aproximasse de 100% do PIB e deixariam o país (trocando os reais recebidos do governo por dólares) pela simples razão de acreditarem que o governo não conseguirá pagar a dívida em sua própria moeda. Enquanto o Brasil não chegou em uma dívida pública de 100% do PIB, inúmeros países já superaram em muito esse patamar sem perceber qualquer efeito ascendente em suas taxas de juros. Por exemplo, nos países desenvolvidos a média de dívida pública dos últimos dez anos foi de cerca de 105% do PIB, enquanto nos países do G7 chegou próximo de 120% do PIB. Mesmo países da zona do euro, que não emitem suas moedas nacionais, possuem dívidas bem superiores a 100% do PIB pagando taxas de juros negativas, como são os casos de França, Itália e Espanha. De fato, só por declarações de princípios sem fundamentos teóricos ou empíricos que se pode concluir que o PIB é um teto para o nível da dívida pública e que dívidas públicas altas necessariamente elevam a taxa de juros para além da taxa de crescimento da economia.
Para finalizar, a MMT não é uma proposição extremista como desejam alguns de seus críticos. Ela é uma descrição rigorosa e até o momento irrefutada de como o gasto público é operado e seus efeitos macroeconômicos. A MMT rechaça mitos econômicos teimosos e oferece seu instrumental analítico ao público para que se enfrente com ousadia os verdadeiros desafios que a humanidade tem à sua frente, em vez de se repetir os tradicionais erros do passado como se deles pudéssemos esperar um resultado diferente do que temos tido até aqui.
Fabiano Abranches Silva Dalto é professor de Economia na UFPR; Daniel Negreiros Conceição é professor de economia no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ; e David Deccache é economista e assessor técnico na Câmara dos Deputados.