Todo trabalho merece um salário?
A lógica se aplica a todos, mas não da mesma forma: a “concorrência internacional” impõe a alguns reavaliar suas pretensões salariais; ela autoriza outros a negociar seu “talento” a preço de ouro. E se outra lógica determinasse a definição das remunerações?
De tanto avaliar todas as coisas e todas as pessoas de acordo com seu valor monetário – que contribuição você traz para os acionistas? –, era de esperar que um dia a questão se voltasse para os avaliadores, mas de outro ponto de vista: que contribuição você traz para a sociedade?
É a essa inversão de perspectiva que convida um estudo publicado em dezembro de 2009, sob a coordenação da New Economic Foundation.1 Eilis Lawlor, Helen Kersley e Susan Steed, três pesquisadoras britânicas, abordam, não sem alguma malícia, a questão das desigualdades, comparando a remuneração de certas profissões, selecionadas nos dois extremos da escala das rendas, ao “valor social” criado por seu exercício. No caso de um trabalhador da reciclagem, que recebe 6,10 libras esterlinas por hora (R$ 17), as autoras estimam que “cada libra paga em salário gera 12 libras de valor” para o conjunto da coletividade. Em contraposição, “enquanto recebem remunerações compreendidas entre 500 mil e 10 milhões de libras, os grandes banqueiros de negócios destroem 7 libras de valor social por cada libra de valor financeiro criado”. Assim, o saldo coletivo das atividades mais bem remuneradas se mostra às vezes negativo, o que sugere a causa da tempestade financeira iniciada em 2008…
Batizado de “retorno social sobre o investimento”, o método utilizado para quantificar o valor gerado por um emprego prende a teoria econômica clássica em sua própria armadilha. Os altos salários refletiriam a contribuição dos altos executivos para a empresa. “O pensamento ortodoxo diz que nossa utilidade vem do dinheiro, apontam as pesquisadoras. Quanto mais ganhamos, mais somos úteis. Deduz-se daí que, para maximizar o bem-estar coletivo, a renda total tem de crescer.”
Uma visão como essa conduz a atribuir nenhum valor ao trabalho doméstico, majoritariamente realizado por mulheres. E a perder de vista que o processo econômico se estende além da troca monetária. Pois a produção e o consumo de bens e serviços provocam repercussões involuntárias chamadas “externalidades”, às vezes negativas, ou positivas, imediatas ou posteriores: um carro transporta mas polui, um livro diverte e instrui. Podemos avaliar esses efeitos secundários calculando os custos da poluição e os benefícios da instrução. Podemos fazer o mesmo para as profissões. Para determinar a contribuição social líquida de um trabalho, explicam Lawlor, Kersley e Steed, é necessário levar em conta seus impactos indiretos sobre a economia, o meio ambiente, a sociedade etc.
Tomemos o exemplo de um publicitário. Sua atividade visa aumentar o consumo. Por um lado, há a criação de empregos (no setor da publicidade, mas também nas usinas, no comércio, nos transportes, nas mídias) e, por outro, um aumento do endividamento, da obesidade, da poluição, do uso de energias não renováveis. Por meio de uma série de cálculos engenhosos e às vezes acrobáticos, as três pesquisadoras avaliam os benefícios e os custos do consumo exagerado atribuídos à publicidade. Basta então colocá-los em relação: “Para cada libra esterlina de valor positivo, 11,50 libras de valor negativo são geradas”. Em outros termos, os profissionais do setor publicitário “destroem um valor de 11,50 libras a cada vez que criam uma libra de valor”.
A proporção se inverte se considerarmos o trabalho de um empregado da limpeza em um hospital. Realizando um trabalho difícil, invisível, pouco considerado, mal pago e, em geral, terceirizado, ele contribui muito para o funcionamento geral do sistema de saúde, diminuindo o risco de infecções hospitalares. Apoiando-se sobretudo em um artigo do British Medical Journalque trata dos benefícios sanitários induzidos pela contratação de um empregado de limpeza suplementar, bem como sobre os custos das patologias contraídas nos hospitais, as autoras estimam que “para cada libra esterlina que ela absorve em salário, a atividade produz mais de 10 libras de valor social”. E, além disso, afirmam elas: “O valor encontrado foi provavelmente subestimado”.
Anatomia da desigualdade
O método permite também estabelecer que os milhares de executivos dos grandes bancos da City – “aqueles que recebem bônus de mais de 1 milhão de libras” e cujas “operações extremamente arriscadas, opacas e complexas provocaram a crise financeira, e a recessão” – destroem sete vezes mais valores que criam, contrariamente às empregadas de uma creche que, pela educação conferida às crianças e o tempo que liberam para os pais, rendem à sociedade 9,43 vezes o que ganham em salário. Essas casas decimais parecem um pouco absurdas. “Não tínhamos o objetivo da exatidão com esses cálculos”, explicam Lawlor, Kersley e Steed. “É provável que não tenhamos dado conta de todos os aspectos do valor. Trata-se de chamar a atenção para o problema.” De diferenciar a criação de valor para a sociedade da criação de valor para o acionista; de sugerir a mudança de um modo de remuneração que valoriza as profissões mais nocivas remunerando-as de modo excessivo, enquanto desencoraja as atividades mais benéficas para a maioria. Não sem transferir a conta de seus prejuízos para três de seis profissões estudadas.
Ainda ontem justificadas pela teoria do “fazer o bolo crescer para depois reparti-lo” (trickle-
down theory) − segundo a qual a riqueza dos mais ricos é benéfica para todos, porque ela acaba por “extravasar” para os mais pobres −, as desigualdades inquietam até os liberais, na medida em que seu crescimento dissipa as últimas ilusões da “globalização feliz”. No Reino Unido, um relatório governamental publicado em janeiro de 2010 detalha a anatomia de uma sociedade extremamente desigual, na qual os 10% mais ricos possuem 97 vezes mais do que os 10% mais pobres.2
Citado nesse documento, um estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) revela que, entre a metade dos anos 1980 e a metade dos anos 2000, as desigualdades de renda aumentaram em 19 dos 24 países analisados. Os custos sanitários e sociais dessa desnivelação vertiginosa são documentados.3Mas, apesar da concordância entre os diagnósticos, qual governo ousará prescrever os dois remédios conhecidos: uma política fiscal de redistribuição das altas rendas e uma restrição do livre-comércio para diminuir a pressão sobre os salários mais baixos?
BOX:
O paradoxo dos parasitas
Quinze bilhões e trezentos milhões de dólares alocados pelo banco norte-americano Goldman Sachs para recompensar seus corretores em 2010; 1 bilhão de euros poupados pelo BNP Paribas para o depósito de bônus a seus acrobatas financeiros; 16 bilhões de euros concedidos aos operadores da Bolsa de Valores de Londres, entre abril de 2010 e março de 2011… Já em 2008,US$ 32,6 bilhões tinham sido transferidos sob forma de bônus por nove estabelecimentos de Wall Street que, ao mesmo tempo, recebiam 175 bilhões de ajudas públicas, segundo as conclusões da pesquisa feita pelo procurador-geral do estado de Nova York, Andrew Cuomo.1 Durante algum tempo perturbada, a rotina de extorsão já retomou seu curso.
Apesar de estarem situadas um pouco abaixo do nível do exagero, essas quantias nos fazem pensar naquelas mobilizadas pelos poderes públicos para salvar as instituições financeiras da bancarrota. Desde a queda do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, os chefes de Estado e os bancos centrais se colocaram a serviço dos bancos privados. Com o dinheiro do contribuinte, eles nacionalizaram os mais problemáticos, compraram os títulos podres detidos pelos outros, injetaram centenas de bilhões de dólares em suas bases estremecidas, inundaram as instituições de um fluxo ilimitado e praticamente gratuito de liquidez, garantindo seus capitais ameaçados. No pior momento da tempestade, os poderes públicos tiveram de substituir estabelecimentos de repente incapazes de cumprir sua função principal: irrigar a economia de crédito.
Esse é o paradoxo dos parasitas. No espaço de alguns meses, os bancos de negócios privados demonstraram incapacidade (política de empréstimos baseada na ideia de que os preços no setor imobiliário subiriam eternamente e acúmulo explosivo de títulos duvidosos), nocividade (funambulismo especulativo com as dívidas soberanas, o petróleo, os produtos alimentares e as matérias-primas), fragilidade (o naufrágio de um provoca uma crise mundial de crédito), inutilidade (o Estado os substitui sem contrapartida) e, enfim, insaciável ambição de seus dirigentes – sem que resulte daí uma consequência prática. Nacionalizar radicalmente, e fortemente, o conjunto do setor teria sido mais custoso?
Apesar dos comunicados triunfais dos membros do G20 (entre os quais a China, a Rússia, o Brasil, a Argentina e a África do Sul) reunidos em Londres, em abril de 2009, a favor de “reformar o capitalismo” e apelar por mais razão dos atores, o resgate dos gigantes das finanças não foi acompanhado de nenhuma condição digna desse nome. Como indicam os lucros registrados depois da crise pelo Goldman Sachs, o Citigroup, o Barclays, o BNP Paribas, o HSBC etc., a renda bancária sai intacta de uma crise que priva de emprego dezenas de milhões de assalariados; ela consegue o feito de unir por uma reprovação comum os contribuintes espoliados por tarifas exorbitantes e submetidos ao imposto do resgate dessas instituições, os empresários sufocados pela restrição do crédito e os acionistas assustados pelo tamanho dos bônus que amputam seus dividendos!
Na Grécia antiga, o húbris, essa aspiração violenta ao descomedimento, era castigado com a nêmesis, ou a destruição. Mas que governo se arriscaria a reprimir um setor no qual são recrutadas e recicladas tantas figuras do poder político? (P.R.)