Tortura difusa e continuada
Naturalizada pela sociedade e incrementada pelo punitivismo de agentes do Estado, a tortura constitui peça fundamental do funcionamento cotidiano do sistema de justiça criminal nacional. Confira a seguir o quarto artigo da série especial “Prisões, a barbárie contemporânea”Rafael Godoi
São Paulo, terça-feira à noite, 20 de outubro de 2015: uma delegacia da zona leste é cercada por policiais militares revoltados com a prisão de um colega acusado de tortura. O sargento da PM havia levado para a delegacia um suspeito de roubo que, ao depor, relatou ter sido torturado com pancadas e choques elétricos no pescoço, nas costelas e no pênis. As marcas eram nítidas; o delegado prendeu os dois: polícia e ladrão. Do lado de fora da delegacia, os militares proferiam ofensas e ameaças ao policial civil, que só pôde deixar o recinto escoltado por viaturas do Grupo de Operações Especiais (GOE). Antes, deputados estaduais ligados às duas corporações foram prestar apoio a seus representados. Numa declaração para a imprensa, o Coronel Telhada, ex-comandante da Rota e deputado pelo PSDB, foi taxativo: “Se todo delegado tiver essa atitude, acho que acabou a polícia”.
Com tal declaração, o deputado verbaliza algo que, a contrapelo da lei, é amplamente conhecido – por autoridades públicas, especialistas em questões de segurança e, principalmente, jovens, negros e pobres, moradores de periferia: no Brasil, a tortura é um elemento central do repertório de práticas policiais. E não só policiais: guardas civis, agentes penitenciários e seguranças privados também lançam mão desse expediente com elevada frequência.1
Comumente, a persistência da tortura no Brasil é explicada em termos históricos: uma herança de nosso longo passado escravocrata e um legado da ditadura militar que a transição democrática não pôde apagar.2 Sem negar essas explicações, pretendo explorar aqui outra hipótese, que procura no presente, e não no passado, as condições de possibilidade desse lastimável estado de coisas. Sugiro que os espancamentos, afogamentos, choques elétricos e outros recorrentes episódios de tortura prolongam e individualizam uma violência que se apresenta bem mais contínua e bem mais difusa, entranhada mesmo no funcionamento ordinário e cotidiano das várias agências que compõem o sistema de justiça criminal.
Se considerarmos a tortura como a prática de administração controlada e deliberada de violência física e psicológica, com vista a extrair informação, punir ou aterrorizar, é possível identificar dimensões “torturantes” nos diversos momentos e lugares que constituem a trajetória normal de suspeitos, réus, condenados e egressos do sistema prisional. Antes, durante e depois do encarceramento, um sofrimento agudo, físico e mental, marca a experiência dos sujeitos que se defrontam com as agências estatais de segurança e justiça. Para demonstrá-lo, apresentarei algumas informações que remetem mais diretamente ao caso do estado de São Paulo, mas o mesmo raciocínio pode ser aplicado a outras partes do país e do mundo.
A cena descrita no início deste artigo remete à tortura que antecede a prisão, aquela perpetrada por policiais militares nas ruas, camburões e batalhões, mas também por policiais civis em delegacias e carceragens – como no caso da travesti Verônica, espancada dentro de um distrito policial, em abril de 2015, exibida em redes sociais e constrangida a assumir publicamente a responsabilidade pelo sofrimento que lhe foi imposto. Tortura explícita, física e psicológica, que funciona tanto como ritual de passagem ao mundo dos condenáveis quanto como punição antecipada. Segundo Maria Gorete Marques de Jesus,3 pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, trata-se de uma prática amplamente tolerada pela sociedade e, sobretudo, avalizada pelas instituições de justiça, que tendem a não reconhecê-la como crime, apesar da Lei n. 9.455/97 e dos vários tratados internacionais que o Brasil assina. As recém-criadas Audiências de Custódia – pelas quais suspeitos são apresentados ao juiz em até 24 horas depois da prisão – visam, entre outros objetivos, coibir essa prática. É cedo para dimensionar seus impactos, entretanto, em São Paulo, pois nem sempre juízes, promotores e defensores se mostram sensíveis à questão; ademais, a frequente presença de policiais na sala da audiência pode estar coibindo a denúncia e apuração de casos de tortura,4 de modo que a Audiência de Custódia pode estar servindo como mecanismo adicional para legitimar e normalizar a violência institucional.
Nas instituições do sistema prisional, o caráter difuso e contínuo da tortura é mais evidente, o que não significa que agressões físicas e verbais sejam raras. No artigo que abre esta série, ao apresentarmos diversos fatores que fazem do cárcere um espaço de morte em vida e morte de fato,5 Fábio Mallart e eu já indicamos como a prisão, em suas operações mais cotidianas, funciona como uma grande maquinaria de tortura. Todo o regime de processamento de réus e condenados pelos circuitos do sistema de justiça produz o efeito de desorientação, angústia e sofrimento próprio da tortura psicológica. Suspeitos não sabem quando serão julgados, aguardam meses, às vezes anos, por uma sentença. Aqueles que já estão condenados dificilmente sabem o que se passa com o processo de execução. Lapsos de progressão de pena são sistematicamente extrapolados, benefícios são sumariamente negados. Presos que poderiam estar em liberdade condicional ou mesmo que já cumprem formalmente a pena em regime semiaberto permanecem em unidades de regime fechado, em penitenciárias e Centros de Detenção Provisória (CDPs), sem o menor horizonte de transferência. Tamanha indeterminação da experiência carcerária decorre tanto do punitivismo exacerbado que marca a atuação de juízes e promotores quanto da precariedade dos serviços públicos de assistência judiciária.6
Também é possível identificar padrões de tortura física, difusa e contínua, em diversos registros. A superlotação é escandalosa em todo o sistema prisional, mas especialmente nos CDPs, onde é comum encontrar mais de cinquenta presos em celas construídas para abrigar no máximo doze. As instalações são bastante deterioradas, com infiltrações, vazamentos, vasos sanitários entupidos, torneiras que não funcionam. A alimentação, quando não é escassa, é de baixa qualidade e insuficiente valor nutricional. Mesmo antes da crise hídrica, o fornecimento de água nos pavilhões já era bastante restrito. Itens básicos como colchões, materiais de limpeza, higiene pessoal e roupas não são suficientemente fornecidos pela administração penitenciária. Assistência médica é praticamente inexistente; trabalho e atividades educativas são privilégios para poucos.7 Outrora, fatores como esses eram pensados e discutidos como “maus-tratos”, termo que sempre acompanhava a reflexão sobre tortura e que, nos últimos anos, praticamente desapareceu do debate público.
Transferências de uma unidade a outra, nos chamados “bondes”, também funcionam como verdadeiras sessões de tortura. Os presos são transportados algemados, em camburões mal ventilados, sem direito a água e alimentação, sem poder ir ao banheiro, em viagens que podem durar mais de oito horas. São muitos os relatos de presos que foram transportados imersos numa nuvem de gás de pimenta ou expostos às mais altas temperaturas, quando os carros são estacionados por várias horas sob o sol forte – procedimento deliberado, conhecido como “micro-ondas”. As práticas correntes do Grupo de Intervenção Rápida (GIR) – a “tropa de choque” da administração penitenciária – também evocam sessões de tortura coletiva. Para viabilizar a revista de celas e pavilhões, os agentes do GIR utilizam bombas de gás de pimenta e efeito moral, balas de borracha, cães, escudos e cassetetes, num uso absolutamente excessivo e desproporcional da força, como fica evidente nas imagens vazadas de uma ação do grupo de 2008, exibidas pelo SBT em 2014.
Existem, ademais, espaços ou situações particulares nos quais essas dimensões “torturantes” do funcionamento cotidiano prisional se tornam ainda mais agudas. Celas de “castigo” – onde os presos cumprem sanções disciplinares – e de “inclusão” – onde presos recém-chegados a uma unidade aguardam destinação – são comumente desprovidas de ventilação, iluminação e dos mínimos recursos de instalação, como colchões, torneiras e louças sanitárias. Para além desses espaços existentes no interior de qualquer unidade, em algumas prisões específicas existem pavilhões inteiros que impõem condições ainda piores para o cumprimento de pena. Por exemplo, num dos pavilhões da penitenciária de Lucélia, os presos só têm direito a duas horas de banho de sol por dia. Numa das penitenciárias de Presidente Venceslau, todo um pavilhão é destinado ao cumprimento de castigos disciplinares que não raramente extrapolam a duração máxima, estabelecida em lei, de trinta dias; na outra unidade da mesma cidade inexiste qualquer atividade educativa ou de trabalho. Os sociólogos Fernando Salla, Camila Dias e Giane Silvestre identificam, em espaços como esses, um regime de segurança híbrido, nos quais as penas de presos considerados problemáticos são agravadas administrativamente, contornando as injunções da lei e do sistema de justiça.8 A mesma lógica opera em situações determinadas quando, por algum motivo, o diretor de uma unidade impõe sanções coletivas, por exemplo, proibindo o banho de sol de todos os presos de um pavilhão por algumas semanas – expediente ilegal, mas amplamente utilizado.
Entretanto, é preciso considerar que, desde 2003, mesmo a Lei de Execução Penal (LEP) e as mais eminentes autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário referendam e legitimam o uso de expedientes “torturantes” na aplicação das penas, como comprova a legalidade do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Sob esse regime, os presos são mantidos em total isolamento, sem nenhuma atividade, com poucas horas de banho de sol por semana e severas restrições de comunicação com familiares e advogados. O RDD vigora no Centro de Readaptação Penitenciária (CRP) de Presidente Bernardes, em São Paulo, e nos vários presídios federais inaugurados nos últimos anos, o que aponta para um consenso de fundo, em matéria penal, unindo as mais variadas forças de nosso espectro político-partidário.
A tortura prisional normalizada, com seu caráter difuso e contínuo, alcança mesmo aqueles que não se encontram sob custódia do Estado. Familiares de presos, uma maioria de esposas e mães, são semanalmente submetidas à revista vexatória antes de entrar na prisão, obrigadas a se despir, a agachar, a expor o ânus e a vagina diante do olhar minucioso de uma agente penitenciária. Muitas vezes, são escoltadas a hospitais, coagidas a realizar exames de raios X e constrangidas a assinar um documento no qual se afirma que o fazem de livre e espontânea vontade. Em 2014, o procedimento da revista vexatória foi proibido por meio de leis específicas, no estado e no país. O exame de raios X forçado também carece de legalidade. Entretanto, ambos continuam sendo cotidianamente realizados. O egresso do sistema prisional – aquele que cumpriu integralmente sua pena, que depois de uma longa espera no CDP foi inocentado ou recebeu uma pena alternativa – também continua sendo alvo privilegiado da violência institucional, nas ruas das cidades. Como Fábio Mallart e eu já enfatizamos, aqueles que têm “passagem pelo sistema” estão significativamente mais expostos a agressões físicas e morais e, no limite, ao extermínio.
Certamente, muitas outras torturas cotidianas poderiam se somar a essas que aqui foram elencadas. De todo modo, o que foi exposto é suficiente para demonstrar como o funcionamento ordinário e intestino do sistema de justiça criminal é plasmado por violência e práticas “torturantes”. Esse conjunto muito diverso e naturalizado de expedientes violentos cria e sustenta uma atmosfera propícia para a eclosão de episódios de tortura propriamente dita, individualizada em suas vítimas e perpetradores, tal como definida na legislação brasileira e nos tratados internacionais – ele é sua condição de possibilidade.
Esforços recentes de combate à prática da tortura, como a criação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT), com seus comitês e mecanismos nacionais e estaduais, podem representar um avanço significativo para aqueles que zelam pelo exercício pleno da democracia e lutam pela realização integral dos direitos humanos. Entretanto, se essa ampla rede de agências governamentais e não governamentais não construir estratégias para a identificação e apuração de casos determinados de tortura, bem como para a imediata proteção das vítimas e para a devida responsabilização de torturadores, ela pode acabar servindo para a legitimação e normalização da violência institucional – como no caso das Audiências de Custódia. Ademais, é forçoso admitir que, por maiores que sejam o dinamismo e a eficácia dessa rede na apuração de casos determinados, o problema da tortura não poderá ser definitivamente equacionado enquanto as instituições de segurança pública e de administração das penas, tal como as conhecemos, não acabarem – como teme o Coronel Telhada. O empenho em combater a tortura dentro e fora da prisão deve se complementar com um esforço mais amplo: a construção de novas formas de fazer justiça e resolver conflitos.
Rafael Godoi é pós-doutorando em Sociologia pela USP, agente da Pastoral Carcerária e integrante do Projeto Temático Fapesp (2014-2018) “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista”.
1 Pastoral Carcerária, Relatório sobre tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura, Misereor/CNBB, São Paulo, 2010. Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e Pastoral Carcerária, Tecer Justiça: presas e presos provisórios na cidade de São Paulo, Open Society/Paulus, São Paulo, 2012.
2 Anistia Internacional, Tortura e maus-tratos no Brasil, Amnesty International Publications, Londres, 2001.
3 Maria G. M. de Jesus, O crime de tortura e a justiça criminal: um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo, IBCCrim, São Paulo, 2010.
4 Como Fábio Mallart pôde constatar no decorrer do trabalho de campo de sua pesquisa de doutorado.
5 Fábio Mallart e Rafael Godoi, “Vidas matáveis, morte em vida e morte de fato”, Le Monde Diplomatique Brasil, nov. 2015.
6 Tatiana W. de Moura, Rosier B. Custódio, Fábio S. Silva e André L. M. de Castro, Mapa da Defensoria Pública no Brasil, Anadep/Ipea, Brasília, 2013.
7 Conselho Nacional de Justiça, “Mutirão carcerário do estado de São Paulo: relatório geral”, CNJ, Brasília, 2012.
8 Fernando Salla, Camila N. Dias e Giane Silvestre, “Políticas penitenciárias e as facções criminosas: uma análise do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) e outras medidas administrativas de controle da população carcerária”, Estudos de Sociologia, v.17, n.33, p.333-351, Araraquara, 2012.