TPP: made in USA
A promoção do livre-comércio é uma construção política que atende a interesses de países específicos, os quais se beneficiam da consolidação de uma divisão internacional do trabalho segundo a qual alguns poucos concentrariam as atividades econômicas mais sofisticadas, ao passo que os demais se especializariam em atividDiversos autores
A grande mídia brasileira, logo após a assinatura do Acordo de Parceria Transpacífica (em inglês, Trans-Pacific Partnership, ou TPP), foi quase unânime em condenar o Brasil e seus principais parceiros do Mercosul por ficarem de fora dos chamados mega-acordos do século XXI, que envolvem, além do TPP, o Tisa (em inglês, Trade in Services Agreement), o TTIP (em inglês, Transatlantic Trand and Investment Partnership), entre outros. O diagnóstico geral era de que esses países perderiam a oportunidade de se vincular a um novo mercado que, caso seja de fato constituído, envolverá 40% do PIB mundial e 815 milhões de consumidores.
A condenação estaria ancorada em uma perspectiva aparentemente pragmática. Por ela, admite-se que seria melhor entrar no jogo internacional, ainda que sob condições desvantajosas, do que ser excluído das cadeias globais de valor, amargando um baixo dinamismo no setor externo da economia. Dessa perspectiva, o Brasil teria errado ao apostar no multilateralismo da Organização Mundial do Comércio (OMC) e ao se voltar para o fortalecimento das relações comerciais Sul-Sul em vez de estabelecer parcerias com os dois blocos econômicos mais poderosos do mundo: o Nafta (Acordo de Livre-Comércio da América do Norte) e a União Europeia. Defensores dessa estratégia pragmática, inspirados por diferentes correntes liberais, posicionam-se política e economicamente a favor de acordos de livre-comércio (ALC) baseados na percepção essencial de que a especialização, segundo vantagens comparativas, é o modelo mais eficiente para organizar a produção e a comercialização de bens. Essa posição acredita, ainda, que a aliança com países mais poderosos traria impactos positivos ao reduzir, nos países em desenvolvimento, o poder de grupos nacionais oligopolizados, causando um choque de competitividade a favor da melhoria na qualidade, quantidade e preços dos produtos.
Tal posição mostra-se, contudo, significativamente equivocada quando consideramos os efeitos desse padrão específico de regionalização no lado mais fraco do sistema, isto é, nas nações tecnológica e produtivamente mais atrasadas, como é o caso do Brasil e demais países da América Latina. Do ponto de vista econômico, a especialização induzida pelo livre-comércio, significa a consolidação de estruturas técnicas, produtivas e comerciais mais sofisticadas nas economias já mais desenvolvidas. A sofisticação com adição local de mais valor à produção geralmente se traduz em desenvolvimento econômico, social e tecnológico, por estimular dinâmicas de oferta e demanda. Entre as dinâmicas de demanda, a sofisticação contribui para uma trajetória de acumulação na medida em que o crescimento do investimento na produção gera empregos e causa o aumento sustentado da renda do trabalho, que, por efeito multiplicador, estimula o investimento nas demais atividades econômicas. Além disso, a ampliação do nível de atividade econômica reverberaria em aumento de arrecadação tributária, o que possibilitaria maiores gastos do governo em infraestrutura social e urbana, ampliando a oferta de bens públicos, como educação e saúde, além de potencializar investimento público em ciência e tecnologia, um dos pilares da sofisticação. Os estímulos pelo lado da oferta, por sua vez, incluem os efeitos positivos da tecnologia de setores industriais específicos para outros processos de produção, elevando a produtividade geral. E também a própria oferta de bens públicos – notadamente em infraestrutura – contribuiria para a redução dos custos de produção, estimulando o investimento privado e a acumulação (Reis, 2015).
Portanto, não se pode esquecer que a promoção do livre-comércio é uma construção política que atende a interesses de países específicos, os quais se beneficiam da consolidação de uma divisão internacional do trabalho segundo a qual alguns poucos concentrariam as atividades econômicas mais sofisticadas, em particular as que envolvem produção científica e tecnológica, ao passo que os demais se especializariam nas atividades econômicas que resultam em menor valor adicionado. Dessa perspectiva, a posição histórica dos Estados Unidos em relação à dinâmica de negociação de acordos internacionais torna-se bastante significativa para ilustrar sua batalha política pela defesa de sua hegemonia tecnológica.
Depois de defenderem o multilateralismo por quase quatro décadas no pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos mudaram de estratégia, promovendo acordos bilaterais de comércio com diferentes países a partir da década de 1980. A estratégia mais significativa nesse sentido foi a abertura de uma negociação bilateral com o Canadá em 1988, que posteriormente se tornou o Nafta, com a inclusão do México.
É importante notar que o objetivo principal da estratégia bilateral norte-americana era menos a redução de tarifas e mais a introdução de temas polêmicos que, por resistência da maioria dos países, não encontravam espaço nas arenas multilaterais, em especial na chamada Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Aduanas e Comércio (Gatt) iniciada em 1986 e finalizada em 1994, dando origem à OMC. Entre esses novos temas estavam acordos de investimento e serviços, compras governamentais, cláusulas trabalhistas e ambientais e, particularmente, a propriedade intelectual, que é o pressuposto central para a consolidação de uma divisão internacional do trabalho vantajosa aos países técnica e produtivamente mais avançados.
Não por acaso, portanto, os países menos desenvolvidos, com firme empenho do Brasil, tentaram bloquear a iniciativa norte-americana de incorporar “novos temas” à pauta de negociação do Gatt, justamente por interpretar que a intenção seria oficializar uma “reciprocidade assimétrica” a favor das nações mais avançadas. No entanto, foram vencidos pela estratégia bilateral de Washington, que, valendo-se de seu poder de negociação nesse âmbito, tornou inócua a resistência na esfera multilateral.
É por isso que uma das grandes consequências da Rodada do Uruguai, além da criação da OMC, foi a assinatura de um amplo acordo de direitos de propriedade intelectual, o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), que elevou e unificou internacionalmente os padrões de proteção a diversas indústrias, como as de entretenimento, design, tecnologia, fármacos e sementes, proporcionando ganhos crescentes para a balança de serviços dos Estados Unidos e reequilibrando, em parte, seu gigantesco déficit comercial. Em síntese, as iniciativas de liberalização do comércio capitaneadas pela Casa Branca desde o começo dos anos 1990 condicionam a livre circulação de bens e capitais à restrição da circulação de conhecimento, informação e tecnologia.1
Nesse sentido, é importante notar que, no caso específico do TPP, dos trinta capítulos informados, a minoria versa sobre a redução de barreiras tarifárias. A maior parte do acordo é voltada à consolidação de garantias para o investimento externo direto, à redução de cláusulas trabalhistas e ambientais, à restrição de políticas de compras governamentais e, em especial, ao recrudescimento da legislação internacional de propriedade intelectual.
Assim, no discurso, o TPP pretende estabelecer um acordo regional abrangente para promover integração econômica e liberalizar comércio e investimentos, trazendo crescimento e benefícios sociais; porém, não por acaso, o teor dos capítulos foi mantido em segredo, porque, ao ser publicizado, geraria uma forte oposição da população desses países. Entretanto, não se faz questão nenhuma de esconder quem seriam os maiores beneficiados do acordo: “o Acordo de Parceria Transpacífica (TPP) nivela o campo de jogo para as empresas e os trabalhadores norte-americanos, levando a mais exportações made in USA e mais empregos bem remunerados para os habitantes dos Estados Unidos. Ao cortar mais de 18 mil tarifas de diversos países sobre produtos made in USA, o TPP garante que nossos agricultores, pecuaristas, fabricantes e empresas de pequeno porte possam competir – e ganhar – em alguns dos mercados que mais crescem no mundo” (USTR).
De fato, o que vazou mostra que as previsões cautelosas estavam certas: os termos são extremamente desfavoráveis para as nações mais fracas do bloco. Um dos elementos mais nocivos do acordo é o estabelecimento de um sistema de resolução de conflitos entre o investidor e o Estado (ISDS), que cancelaria o poder da nação signatária para controlar o abuso de empresas estrangeiras. Esse tipo de mecanismo permite aos acionistas processar os governos por lucros perdidos que seriam oriundos de ações governamentais em defesa do meio ambiente, dos direitos humanos ou por eventuais regulações econômicas (da concorrência, por exemplo). Tais demandas não seriam julgadas por autoridades nacionais ou do judiciário, mas por mesas de arbitragem internacional.2
O objetivo dessas disposições é atar as mãos dos governos ao tentar bloquear novas leis ou regulamentos gerados por processos democráticos que interferissem nos contratos e nos lucros das multinacionais. Nesse sentido, o TPP envolve um ataque direto à soberania nacional e um cancelamento absoluto da soberania popular. O México, por exemplo, já tem uma experiência muito negativa com esse tipo de acordo. No Capítulo 11 do Nafta existem disposições semelhantes às do TPP. Assim, em várias ocasiões, o governo mexicano foi condenado a pagar milhões de dólares para “compensar” as corporações transnacionais ante os “prejuízos” causados por ações governamentais. Além disso, o país é um exemplo de como esses acordos são ratificados pelos Parlamentos da região. Primeiro se fazem as negociações secretamente entre políticos, empresários e funcionários do Estado, com ínfimo envolvimento da sociedade civil. Posteriormente, as reformas consensuais são apresentadas e aprovadas a toque de caixa, sem debate público e em clara violação das práticas legislativas e das regras habituais, ferindo princípios democráticos.
Além disso, o acordo prevê um forte recrudescimento da legislação de propriedade intelectual. Uma das iniciativas barradas pela atuação dos países em desenvolvimento no âmbito da Rodada de Doha, o chamado Trips plus, são novas regras que aprofundam a normatização da propriedade intelectual, restringindo ainda mais a possibilidade de os países menos desenvolvidos desencadearem processos endógenos de capacitação tecnológica.
Essa iniciativa, que explicita a tentativa de consolidar uma divisão internacional do trabalho assimétrica, torna-se mais clara quando lembramos que a estratégia norte-americana de proliferação de áreas de livre-comércio foi guiada também pela permanente política de contenção da influência de lideranças regionais, capazes de alavancar processos endógenos de desenvolvimento tecnológico – o exemplo da China, aqui, é paradigmático: “As regras da estrada estão em disputa na Ásia, lar de alguns dos mercados que mais crescem no mundo. Se não passarmos este acordo e escrevermos estas regras, nossos concorrentes irão definir fracas regras da estrada, ameaçando empregos e trabalhadores norte-americanos e minando a liderança dos Estados Unidos na Ásia” (USTR).
Nesse sentido, do ponto de vista geopolítico, o TPP pressupõe fortalecer alianças estratégicas dos Estados Unidos na vizinhança da China – e também de dois outros países dos Brics: o Brasil e a Rússia. Vale notar que, historicamente, todos os demais países signatários do TPP já mantinham relações especiais com os norte-americanos. Examinando os dados, verifica-se que os Estados Unidos e o Japão são parceiros de peso. Além disso, vale destacar que Cingapura, Vietnã, México, Malásia e Canadá possuem um alto percentual de valor adicionado estrangeiro em suas exportações, e os países signatários do TPP respondem por parte considerável dessa parcela. A China é a rival principal daquelas duas potências em todos esses mercados.
Assim, o Acordo de Parceria Transpacífica não significa propriamente a abertura de “novos mercados”, mas a consolidação de parcerias já existentes. Mais do que isso, ele assegura e amplia vantagens para o desenvolvimento tecnológico, econômico e financeiro dos países mais ricos, Estados Unidos e Japão. No outro extremo, os menos desenvolvidos do bloco tendem a ser prejudicados na medida em que a divisão internacional do trabalho consolidada pelo acordo restringe a possibilidade de fomento de sua estrutura produtiva, apesar do alargamento de mercado para os bens em que já existe uma especialização prévia. Isso porque as atividades mais intensivas em tecnologia, conhecimento e informação se concentrariam nos Estados Unidos e no Japão – não por acaso, os dois únicos países superavitários no comércio mundial de propriedade intelectual. Por sua vez, os outros ficarão presos a atividades de menor valor adicionado, ainda que sejam gerados empregos e investimento no setor exportador.
Por causa da ausência ou do baixo alcance das cláusulas redistributivas e para corrigir assimetrias na integração, a disparidade na estrutura produtiva levará à maior desigualdade de renda e riqueza entre os membros – tal como já observado amplamente no caso do Nafta.
É por tudo isso que é falsa a posição hegemônica na grande mídia nacional de que o Brasil sai perdendo ao não aderir à onda atual de mega-acordos globais capitaneada por Washington. Em vez de fortalecer as iniciativas de construção de uma divisão internacional do trabalho assimétrica, o Brasil deve usar seu peso político e econômico para fortalecer iniciativas que vão no sentido contrário, ou seja, que garantam possibilidades amplas de desenvolvimento que concorram para reduzir as assimetrias internacionais.
Diversos autores: José Paulo Guedes Pinto, Maria Caramez Carlotto e Cristina Fróes de Borja Reis são professores dos bacharelados em Relações Internacionais e Ciências Econômicas do Centro de Engenharia e Ciências Sociais da UFABC, pesquisadores do Grupo de Análise Marxista Aplicada, do Grupo Capitalismo, Assimetrias e Propriedade Intelectual e do Grupo Cadeias Globais de Valor.