Tradução na periferia
Para os bilhões como eu, nascidos no sul norte-americanamente globalizado, muitas das histórias consumidas não tinham como pano de fundo a cultura na qual cresci imerso
Traduzir envolve perdas inevitáveis. Esse é o caso inclusive de traduções bem-sucedidas. Afinal, de recursos antigos como obras vertidas em outras línguas, até expedientes de nosso tempo como legendas ou dublagens, traduções funcionam, mas sempre nos limites da globalização. Essa mesma globalização nos ilude quanto àquilo que realmente compreendemos em livros, filmes e músicas estrangeiras.
Se algum, raros são termos de línguas diferentes com mesmo significado e alusão. Mais comum são termos apontarem para as mesmas coisas no mundo. O mesmo parece ser o caso de frases ou de discursos inteiros. Pense na frase “The cat is on the mat”. Se for suficiente saber a quais coisas “cat” e “mat” se referem, e qual relação espacial essas coisas guardam entre si, uma boa tradução seria algo simples como “O gato está sobre o tapete”. No entanto, a simplicidade nos custa a rima que torna a frase original tão atraente aos ouvidos. Para preservar essa qualidade, podemos em vez propor “O gato está no telhado”, o que mantém alguma rima e alusão encontradas na frase original. Infelizmente, transmitir toda a densidade da alusão original é trabalho impossível para qualquer tradução. No imaginário popular norte-americano, “The cat is on the mat” é daquelas frases com frequência encontradas em contos infantis ou escutadas em aulas introdutórias de inglês. Transmitir esses universos – da infância, do lúdico e da pedagogia – é das partes mais difíceis e precárias nessa e em outras traduções.
Alguns chamariam esse elemento perdido de a fenomenologia de cada língua: simplesmente tudo que se experimenta quando participamos de seu universo. Um termo mais simples e provavelmente mais adequado seria a cultura de cada língua. “The cat is on the mat” é parte da “Americana”, aquele conjunto de objetos (concretos e abstratos) tão identificados quanto fazedores da cultura dos Estados Unidos. Milk shakes, tortas de maçã, calças jeans, Coca-Cola, McDonald’s, casas de madeira de amplas garagens construídas em bairros tranquilos do subúrbio, lanchonetes com letreiros em néon abertas durante a madrugada, estradas cercadas de pinheiros e arranha-céus em Wall Street de estilo gótico e art déco… As palavras também guardam esses elementos da cultura americana, e eles podem escapar de nossas traduções.
Por um lado, todos esses objetos são familiares não apenas para crescidos nos Estados Unidos, mas também para quem cresceu no Brasil e, se mais velho, assistiu aos filmes da Sessão da Tarde; e, se mais novo, assiste séries na Netflix. Contudo, há uma diferença entre ter familiaridade, mesmo quando resultado de contato cotidiano, e integrar uma cultura; entre assistir e estar imerso. É fácil ignorarmos essa diferença, na ilusão de conhecermos esses objetos como conhece um norte-americano. Jô Soares foi próximo de um “Stephen Colbert brasileiro”, mas ele nunca foi tão identificado com um partido político como Colbert o é com o Partido Democrata. Aliás, poucas coisas são mais complicadas do que comparar a paisagem política norte-americana com a brasileira. Todavia, para compreender como as coisas perdidas na tradução são bem mais pervasivas do que se supõe, basta ficar no campo dos cenários e utensílios típicos de histórias americanas. Tomar “O gato está sobre o tapete” como uma tradução suficiente de “The cat is on the mat” é um exemplo dessa ilusão, ao menos me parece.
É grosseiro colocar essas coisas em termos numéricos, mas vá lá: a compreensão e experiência típica de um estrangeiro, mesmo familiarizado, de um filme norte-americano não ultrapassa 80%. Se isso parece exagero, eu pergunto se consegue identificar quando o sotaque de uma personagem de filme ou série é nova-iorquino, ou se entende quando ela se refere jocosamente a quem mora no Oregon.
Entendi o significado e a extensão da cultura de cada língua quando prestei mais atenção aos filmes brasileiros, especialmente os filmes situados no presente e em ambientes nos quais transito. Foi quando passei a experimentar um tipo de identificação até então desconhecido. Aquela de quem vê nas telas de cinema filtros de barro, pratos e xícaras duralex de cor marrom, prédios do centro com paredes cegas e pinturas descascadas, ou consegue perceber quando quem conversa com a protagonista vem de Belo Horizonte e está rindo de uma piada sobre o Vasco.
Isso me fez perceber como, quando assisti sem número de filmes norte-americanos e escutei infindáveis músicas de rock, eu era como o residente do quarto de hospital cuja janela dá para a rua. Assistia paisagens mas não podia tocá-las ou cheirá-las. Muito menos podia conhecer suas superfícies ocultas, acessíveis apenas aos clientes das lojas ou aos trabalhadores dos escritórios luminosos do prédio em frente.
Também mudou como entendo a experiência das paisagens, gírias, piadas e cheiros em torno das quais cresci. Me dei conta de como um norte-americano cresce, escuta e consome paisagens das quais sempre foi parte. A tradução é recurso raro em seu cotidiano, pois o pano de fundo de sua cultura é o pano de fundo do que se consome ao redor do mundo. Já para os bilhões como eu, nascidos no sul norte-americanamente globalizado, muitas das histórias consumidas não tinham como pano de fundo a cultura na qual cresci imerso.
Essa é parte da condição de quem nasce e cresce na periferia – de sua cidade, de seu país ou de seu mundo. De um lado, não se tem a oportunidade de viver a metrópole com a densidade de quem lá cresceu. De outro, são menos frequentes os encontros com sua própria paisagem. É como nascer num ponto cego cujos limites são as “avenues” da ilha de Manhattan e as sugestões do cerrado.
Samuel Maia é mestre em Filosofia pela UFMG e realiza doutorado em Economia na mesma universidade.