Transição e dependência em Moçambique
A reeleição do presidente Armando Guebuza demonstra que, após um período de muita instabilidade e guerra civil, o país africano tenta manter uma linha política coerente. Com a economia em desenvolvimento, resta saber até quando Moçambique ficará atrelada ao capital sul-africano
No dia primeiro de agosto, em Caia, na província de Sofala, no coração de Moçambique, o presidente Armando Guebuza inaugurou, com grandes pompas, uma ponte sobre o Zambeze, o quarto rio mais longo da África. A cerimônia foi revestida de uma importância política e simbólica particular. O Vale do Zambeze, onde desemboca a obra, é uma das regiões que mais sofreu com a guerra civil. De 1977 a 1992, opôs-se à Frente de Liberação de Moçambique (Frelimo), na época de orientação marxista1, à Resistência Nacional de Moçambique (Renamo), apoiada pelo regime do apartheid sul-africano. Há décadas suas autoridades reivindicavam a construção de uma ponte para fazer a ligação com o sul – parte mais rica e sede do poder político.
A satisfação do presidente Armando Guebuza é completa: nas eleições gerais de 28 de outubro, o Vale do Zambeze – assim como as outras regiões rebeldes de Sofala e Nampula –, pela primeira vez votou, em sua maioria, pela Frelimo e para a reeleição de seu candidato à frente do país2. A “ponte da união” certamente contribuiu para isso.
Moçambique é um exemplo de reconstrução pós-conflito bem-sucedida. No seu último relatório anual sobre a África, o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) e a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) ressaltaram “estabilidade macroeconômica e política” do país, um “impressionante crescimento médio de 8% entre 2000 e 2006” e uma “das mais espetaculares reduções de taxa de pobreza registradas no mundo nas últimas décadas”3. Todavia, com um rendimento médio de 230 euros per capita, Moçambique permanece entre os países mais pobres do mundo, com desigualdades crescentes entre as regiões – algumas delas assoladas também por catástrofes naturais, que causaram ainda mais sofrimento.
Maputo é das primeiras beneficiárias da ajuda pública no desenvolvimento na África subsaariana4. Desde o fim da guerra civil, a capital moçambicana tenta diversificar sua economia. Para tanto, não lhe faltam trunfos: energia (gás, hidroeletricidade e provavelmente petróleo off-shore), as minas (carvão, titâneo, ouro), o turismo, que vem aumentando sensivelmente, e, claro, a agricultura e a pesca, que constituem hoje 27% do PIB (Produto Interno Bruto) do país.
Confrontada, há alguns anos, com a escassez de eletricidade, causa de rupturas momentâneas e cortes de corrente localizadas, a África do Sul confere mais do que nunca uma importância estratégica na valorização do potencial hidroelétrico do seu vizinho5. A empresa nacional sul-africana é o primeiro comprador de energia produzida pela usina hidrelétrica de Cahora Bassa (HCB).
Construída por um consórcio português em 1974, na província de Tete, a HCB foi concebida para alimentar prioritariamente a África do Sul, uma vez que Moçambique não dispunha, na época, de um parque industrial que permitisse realizar tal investimento. Até hoje, a linha de alta tensão que emana da HCB atravessa a fronteira com o Zimbábue e se prolonga rente a ela até a África do Sul, sempre fora do território moçambicano.
Dos dois mil megawatts de capacidade de produção da HCB, apenas 400 são destinados a Moçambique. Outros 200 vão ao vizinho Zimbábue – que acumula inúmeras dívidas – e 1.400 para a África do Sul, conforme o contrato, que expira em 2029.
Procurando conquistar sua independência energética, o governo moçambicano fixou como objetivo a tomada do controle da HCB. Há muito tempo paralisada por conta de sabotagens da Renamo, a hidrelétrica acumulou por volta de US$ 3 bilhões em dívidas. A África do Sul, interessada na transação, recusa reconhecer suas responsabilidades enquanto antigo patrocinador da Renamo. Atualmente a dívida está em US$ 700 milhões e o Ministério de Energia se comprometeu a pagá-la em 12 anos.
Em novembro de 2007, Moçambique assegurou para si, enfim, 85% das partes da HCB, acontecimento encarado pela população como a recuperação de uma preciosidade: “O fato para nós se compara à segunda independência”, confessa Pascoal Bacela, diretor do Ministério. Sobre sua mesa, sete novos projetos com o objetivo de gerar mais de 6 mil megawatts de eletricidade e transformar o país no maior exportador da região.
A redescoberta do carvão
Os capitais sul-africanos equivalem a 35% dos investimentos estrangeiros em Moçambique. Considerado um país de receita intermediária se comparado ao Brasil, a África do Sul tem papel crucial no desenvolvimento da região, onde sua expansão conheceu um fulgurante progresso com o fim do apartheid. E no centro de toda essa empolgação, um elemento histórico e simbólico do desenvolvimento industrial retomou seu lugar: o carvão.
Há muito tempo tido como fonte secundária, de repente o carvão atraiu as grandes mineiradoras. No começo, a brasileira Vale ganhou a primeira licitação na área de Moatize, onde foi extraído algumas toneladas de minerais6. Depois, a australiana Riversdale obteve uma segunda concessão numa área contígua àquela da Vale. Surpresa: os dados recolhidos depois dessas explorações iniciais revelaram a existência de uma das maiores minas de carvão coque do mundo. As duas empresas prevêem atingir, em médio prazo, uma produção considerável – de 20 a 25 milhões de toneladas por ano cada uma.
No entanto, há impasses na distribuição do produto. O transporte é um exemplo de questão mal resolvida. As infraestruturas são subdesenvolvidas ou mal orientadas; as linhas ferroviárias Sena (650 km ligando Moatize ao porto de Beira) e Beira (do Oceano Índico ao Zimbábue e, mais longe, ao porto angolano de Lobito, na costa do Atlântico), datam do início do século passado, sem, portanto, ter a capacidade necessária para cumprir a demanda. Enquanto isso, as ferrovias indianas, que fazem sua primeira entrada na África, poderão ser associadas à construção de uma nova ligação, que atravessa o Malawi para se encontrar com a ferrovia de Nacala, ao norte, percorrendo mais de mil quilômetros.
Vale e Riversdale programaram a edificação de uma central térmica em suas respectivas áreas (1.800 megawatts) para alimentar de energia as minas e a rede nacional. Demonstrando-se exemplares em sua cooperação com Moçambique, as duas empresas rivalizam em promessas de técnicas ultramodernas, vigiadas de perto pelos ecologistas moçambicanos.
Entre a dependência da África do Sul, parceira incontornável, mas nem sempre muito cômoda, e a dependência da ajuda internacional, o caminho de Moçambique é estreito. Mas talvez não por muito tempo.
*Augusta Conchiglia é jornalista.