Triunfo do Estado gestor
Na França, as reformas acontecem de maneira dispersa e desordenada: o tecnicismo confundiu a todos e seus efeitos só se tornaram aparentes depois de algum tempo. Por trás da neblina, vislumbrou-se uma mobilização sem precedente em prol de um Estado enxuto na superfície e reforçado em suas estruturas de comando
Vivemos uma época enlouquecida. Temos a impressão de que uma espécie de onda gigantesca nos atinge e nos arrasa, varrendo o que havia antes” O cientista político Bernard Lacroix conseguiu resumir assim o desânimo dos sindicalistas, intelectuais, funcionários e cidadãos frente às reestruturações do Estado francês1.
As reformas se sucedem aparentemente de maneira dispersa e desordenada. O tecnicismo confundiu a todos e seus efeitos só se tornam aparentes depois de algum tempo, quando os decretos adotados chegaram à dimensão da prática. Por trás da neblina, vislumbrou-se uma mobilização sem precedente atuando para construir um Estado enxuto na superfície e reforçado em suas estruturas de comando.
A redução do Estado pode ser percebida de maneira particularmente radical na revisão geral de políticas públicas (RGPP). Lançada no Conselho de Ministros, em 20 de junho de 2007, ela acelera os empreendimentos anteriores, delimitando a atividade pública dentro dos imperativos orçamentários definidos a priori. Apenas seis meses depois, 96 medidas programaram fusões, reagrupamentos e supressões de serviços públicos. Ainda que reticentes, desde outubro de 2007, os altos funcionários da Chancelaria têm modernizado o sistema judiciário e prevêem que, em 1º de janeiro de 2011, 178 tribunais de instâncias e 23 tribunais superiores serão eliminados em nome da “eficiência”. O Ministério da Educação está fechando colégios com menos de 200 alunos, considerados muito custosos. De acordo com os comentários do ex-ministro, Claude Allègre, a reforma “emagrece o mamute” e elimina mais de 15 mil cargos de professores por ano2.
Privatizações negadas
Esse é o novo imperativo categórico de um Estado proclamado “falido” pelo Primeiro Ministro francês François Fillon em setembro de 2007. No Ministério do Interior, prefeituras e subprefeituras estão se submetendo a uma “dieta”. Os concursos para a polícia nacional, previstos para setembro de 2009, foram cancelados e oito mil postos serão suprimidos até 20123.
O Ministério da Defesa também seguiu a mesma tendência: fechando quartéis e eliminando 45 mil empregos até 2014. O Ministério da Saúde adotou a postura de cortar as internações em maternidades públicas, consideradas muito onerosas, reduzindo-as a menos de 300 partos e 1.500 cirurgias anuais. Dezenas de consulados estão desaparecendo no Ministério do Exterior, e a pasta da Cultura está reestruturando os arquivos nacionais. O Ministério da Fazenda, por sua vez, está “racionalizando” seus serviços em todos os níveis.
A compressão do Estado inclui também a transferência de atividades públicas para o setor privado e a venda de várias empresas. Essas privatizações acontecem num clima de negação, por vezes em etapas ou caminhos indiretos, como mostram as reformas da France Telecom e da La Poste, apenas para citar dois exemplos. Outros mecanismos similares estão determinando as trajetórias da Gaz de France (GDF) e da Electricité de France (EDF), ou da Société Nationale dês Chemins de Fer (SNCF).
A saída do Estado começa cada vez que há uma separação estrutural entre as filiais de uma empresa pública. Dessa forma, a dissociação dos “correios” e das “telecomunicações”, em 1990, foi um marco nesse segmento de atividade para “se abrir à concorrência”. Desde então as empresas de telecomunicações parecem de fato uma atividade de alta rentabilidade, ao contrário do setor postal, que requer muita mão-de-obra4, famoso além disso pela combatividade sindical. A mudança para a iniciativa privada não ocorre de forma abrupta, mas geralmente de maneira suave e gradual. O que contribui para a eficácia dessa estratégia é que cada passo ou etapa deve ser visto como a extensão natural da anterior. A primeira abertura de capital da France Telecom ocorreu em 1997, e a segunda em 2000. Apesar do investimento de 78 bilhões de euros para sanar o déficit da empresa (devido ao estouro da bolha especulativa relativo à Internet e telefonia celular), o Estado passou a deter menos de 50% do capital em 2004, e, no ano seguinte, tornou-se acionista minoritário.
A grande greve de trabalhadores em 1994 já havia formalmente garantido a manutenção do estatuto dos funcionários, o qual não impede que uma empresa pública gradualmente e de forma contínua se torne privada. E a partir daí comece a implantar a gestão por objetivos, com a intensificação do trabalho e o downsizing, que teoricamente elimina a burocracia corporativa desnecessária. Os técnicos do setor eletrônico deveriam se transformar em vendedores de serviços. Diante da competição com a Bouygues, Cegetal SFR e a Free, a empresa que até pouco tempo atrás tinha como missão equipar o país com recursos de telecomunicações e desenvolver a região, tem agora como único objetivo lucros e retornos dos investimentos.
Mudanças na gestão
Com relação a La Poste e a SNCF, o corte dos serviços públicos assumiu uma feição diferente. A transferência de atividade para o setor privado está sendo realizada de maneira fragmentada e lenta, de acordo com vários objetivos. Para Hélene Adam, do sindicato SUD-PTT, “a abertura de capital ocorreu inicialmente priorizando a importância de cada setor. O ramo das entregas foi o primeiro a se abrir para a concorrência e o FeDex e o DHL penetraram os mercados domésticos, imprimindo seu estilo puramente comercial. A garantia, a velocidade, tudo é levado em conta. O Correio francês criou então uma filial, Geopost, para competir e gerar os mesmos critérios de rentabilidade. A forma jurídica escolhida é o formato de uma holding dirigida por um dos diretores do Poste. Essa holding ‘abraça’ diversas filiais como a Chronopost e conta com 19 mil agentes. O segundo setor ‘rentável’, o financeiro, também já passou pelo processo de ‘filialização’ através da criação de uma holding: o Banque Postale, que presta serviços como qualquer outro banco.”
No Pôle Emploi, a agência de empregos estatal, o modus operandi é semelhante. Já se nota a falta de recrutamento de funcionários públicos em prol de contratações temporárias via empresas privadas. “A situação dos funcionários da La Poste é bastante cautelosa. Eles estão divididos entre empregados públicos assalariados, com contratos privados em várias filiais interligadas por holdings. O recrutamento pelo Estado cessou em 2002. Não para trabalhadores do setor privado. O efeito tesoura, cortando funcionários antigos e suas aposentadorias, entrou em vigor com força total. Em 2003 o La Poste tinha 315.364 empregados: 200.852 públicos e 114.512 privados. Em 2008, dos 295.742 funcionários, 152.287 eram públicos e 143.455 eram privados. Neste ano as duas categorias estarão em pé de igualdade”, afirma Adam. A privatização do La Poste está em andamento: já se sabe da lei que vai abrir seu capital com sucessivas emendas e que acabará por transformar a empresa oficialmente em sociedade anônima.
Dentro desse cenário, não se pode esquecer a transferência de cargos às autoridades locais. A descentralização de 1982, e seu Ato II, impulsionado desde 2002 pelo primeiro ministro Jean-Pierre Raffarin – que o qualificou de “mãe de todas as reformas” – já tinha dado aos recém-eleitos em pleitos municipais várias competências novas: formação profissional, transportes, gestão do pessoal técnico, operários e serviços (TOS) de escolas secundárias etc. Embora muitas vezes isso não signifique que os meios alocados pelo Estado para tais competências sejam suficientes. Como indica Gilles Garnier, presidente do grupo comunista do conselho geral de Seine-Saint-Denis, “considerou-se que sobre uma série de direitos, tais como o rendimento mínimo [RMI], os contadores pararam no dia da transferência.
Em 1° de janeiro de 2004, todos os RMI devem ser pagos pela autoridade local, com as somas referentes, mas qualquer novo beneficiário torna-se um beneficiário que deve ser financiado”.
A vice-presidente verde do conselho regional de Ilê-de-France, Francine Bavay, faz a mesma observação com relação à formação sanitária e social: “10 milhões de euros sobre um orçamento de 160 milhões de euros não foram cobertos. E ainda estamos no mesmo lugar após três anos de discussões, caminhando a passos lentos, reavaliando os montantes transferidos. De fato não conseguimos nada além do já tinhamos.” Bavay conclui sobre a motivação da reforma: “não se tentou deixar as instituições mais inovadoras ou com mais direitos. Trata-se apenas de limitar a ação do Estado”.
Esse estreitamento multiforme do Estado se faz acompanhar de um movimento bem menos visível de autoritarismo por parte da ação pública, com a construção de hierarquias e de controle que pesam sobre os funcionários e ao mesmo tempo reforçam as cadeias de comando. Impor politicamente as novidades prioritárias às instituições não é nada fácil.
Pode-se nomear os cargos de confiança para a chefia das administrações – e os governos não se privam disso – mas sem garantia de efetividade das medidas. Por essa razão os funcionários encarregados de colocá-las em ação acabam por fazer uma reinterpretação, desenvolvimento e adaptação das mesmas dentro das rotinas profissionais5. Em outros casos, eles resistem: muitas vezes, médicos, professores, juízes e engenheiros argumentam que conhecem melhor que os ministros as prioridades de seus campos de atividades. Em meio a essa turbulência, o governo tenta introduzir nuances da reforma, com mediações que muitas vezes reduzem a radicalidade dos projetos iniciais.
A meta do equilíbrio financeiro
Essa é uma situação inadmissível para os políticos apegados às suas origens, mas também para altos funcionários do Ministério das Finanças que, depois de anos, tentam impor uma nova definição de juros reduzidos a fim de manter o “equilibro financeiro” face às reivindicações daqueles que eles chamam de ministros “gastadores”6. Até então, seu desejo foi parcialmente frustrado pelas regras de funcionamento da administração, que protegia certas áreas com autonomia. Como consequência, acolheram com entusiasmo os projetos políticos que colocam em funcionamento antigas estruturas colegiadas de decisão.
É o caso de hospitais. Um verdadeiro “prefeito sanitário”, designado por um conselho de ministros, ocupa hoje a chefia das novas Agências Regionais de Saúde (ARS), responsáveis por toda a rede de saúde em nível regional. Durante a primeira versão da lei conhecida como “Hospital, Pacientes, Saúde e Prefeituras”, votada em julho de 2009, podia-se escolher os diretores dos hospitais e destituí-los a qualquer momento. Além disso, eles não são mais necessariamente funcionários saídos da Ecole National de Santé Publique (ENSP), podem vir do setor privado e serem contratados por seu currículo. Outra novidade: os salários são indexados sobre os “resultados”, algo que não facilita o diálogo. Como afirma o professor André Grimaldi, chefe do setor de diabetes do Hospital Pitié-Salpêtriêre: “Antes estávamos numa lógica de co-gestão. O diretor devia envolver os médicos em suas decisões. Isso acabou, eles não terão nada a dizer”.
O movimento é incrivelmente similar no setor do ensino superior. A Lei Liberdade e Responsabilidade das Universidades (LRU), que instaura a “autonomia”, na verdade enfraquece todo o poder universitário. “Com as reformas, encontramo-nos dentro de um quadro de gestão administrativa autoritária”, explica o sociólogo Frédéric Neyrat. A lei dá aos presidentes consideráveis diante de seus pares universitários. Eles podem essencialmente recrutar funcionários ou contratar novos, ou caçar as decisões coletivas das comissões e conselhos universitários.
Uma dinâmica análoga está em ação no setor judiciário. Primeiramente com a Lei de 9 de março de 2004, que coloca os procuradores sob a autoridade hierárquica de seu ministro, conferindo a esse último um poder de intervenção e orientação de procedimento dentro de cada atribuição. Cabe agora aos juízes do Supremo limitar a independência pela “mobilidade”. Se eles não podem ser transferidos geograficamente, podem ser designados para funções diferentes de acordo com requisitos de gestão do tribunal. Como lembra o juiz Gilles Sainati: “Um juiz de liberdade e detenção, cujos casos podem parecer muito ‘leves’ em função de normas da prefeitura, pode ser facilmente deslocado para a vara de família ou de tutela”. Para coroar tudo, desde 2009, os juízes são minoria no coração do Conselho Superior de Magistratura (CSM), que é responsável por nomeá-los e discipliná-los, em detrimento de pessoas indicadas pelo governo federal e pelos presidentes da Assembleia Nacional e do Senado.
Esse aumento de controle também envolve a aquisição de setores que gozam de relativa independência. Como nos lembra Noel Daucé, secretário-geral do Sindicato Nacional Unitário – Pôle-Emploi, que descreve como “estatização” a fusão entre a Agência Nacional de Emprego (ANPE) e a Associação de Emprego da Indústria e do Comércio (Assédic) dentro desse novo quadro Pôle-Emploi, em janeiro de 2009. A primeira era um estabelecimento público de caráter administrativo, enquanto a segunda uma associação de direito privado, criada parcialmente pelas organizações patronais e sindicais. O agrupamento em nível local das duas estruturas reforça amplamente o peso dos atores estatais.
O Conselho de Administração da Pôle-Emploi inclui cinco representantes do Estado e duas personalidades qualificadas e escolhidas pelo ministro, além de cinco membros representantes dos empregadores e de cinco delegados dos empregados7. O delegado geral – atualmente Christian Charpy, membro do gabinete do Primeiro Ministro de 2003 a 2005, posteriormente diretor da ANPE – é nomeado diretamente pelo governador, sob o parecer do restante do conselho consultivo. Poderia-se igualmente citar o caso da gestão dos fundos de 1% – que recebeu algumas críticas pela falta de transparência –, mas que agora escapou das mãos dos parceiros sociais e passou para a tutela da administração.
Não faltam candidatos a esses postos de administradores públicos. Para serem aceitos é crucial que tenham ligações pessoais com Sarkozy ou seus assessores – que assim constroem uma clientela necessária. Essas nomeações não são apenas recompensas simbólicas: bônus e salários diretamente relacionados ao cumprimento dos “objetivos” completam ou substituem a escala salarial da função pública.
Sob formas e temporalidades variáveis, esse duplo movimento de reforma do Estado (enxugamento, privatizações, indicação e transferência de competências de um lado; estatização e aumento de controle por outro) afeta o conjunto dos serviços públicos. Em nome da “performance”, ergueu-se um novo fetiche da ação pública.
O desejo de controlar o governo não é novidade. O Parlamento, o Tribunal de Contas e a Fiscalização Financeira tentam há muito fazer o mesmo. Mas só recentemente que os “indicadores de performance” ganharam a corrida apesar de todas as considerações. Neste caso a lei orgânica sobre as leis de finanças (LOLF), aprovada em 2001, ressalta acima de tudo o triunfo da filosofia dos altos funcionários do Ministério da Fazenda, convertidos às ideias de gestão8. A LOLF impõe uma direção estratégica das administrações, com metas a serem atingidas e indicadores a serem informados. Os funcionários encarregados da ação pública devem apresentar um “projeto anual de performance” (PAP) pelo qual se tornam responsáveis9.
Na realidade toda a atividade é reduzida a uma lógica contábil, similar aos balancetes financeiros de uma empresa privada. Assim resume a situação o professor Grimaldi, em relação aos hospitais: “Criou-se artificialmente a ideia de que existem pacientes lucrativos e não-lucrativos.
O que é rentável? No fundo, é aquilo que é facilmente quantificado, numerado, vendável. São os procedimentos técnicos programáveis, nos lares que não têm problemas psicológicos e sociais, como a simples catarata, feita em série. E o que não é rentável? Tudo aquilo envolvendo alguma complexidade médica, como a patologia clínica, idosos, fatores psicológicos e sociais. Esquecemos simplesmente que o hospital também cuida de pobres e casos graves.”
Raízes profundas
As adaptações a esse ideal administrativo são conhecidas. Se o pessoal de supervisão consome muito do seu tempo e energia para seguir os indicadores, eles também aprendem a domesticá-los. Como ressalta esse alto funcionário e policial responsável pelo 32º congresso do sindicato de comissários e altos funcionários da polícia nacional (SCHFPN), ocorrido em Montluçon em 2003: “Não enganamos os números, mas podemos nos tornar malvados.” Dessa forma, para diminuir a delinquência e aumentar a eficiência de prioridades da polícia nacional, a imaginação dos funcionários é imensa: recusa em receber queixas, passar a denúncia de uma delegacia para a outra, reagrupamento ou reclassificação dos resultados, concentrando-se na atividade de serviços sobre os delitos mais “rentáveis” estatisticamente (entorpecentes e detenção de estrangeiros)10. A coerção para produzir “bons” números já extrapolou a polícia francesa: ela se impôs em todos os níveis da hierarquia do serviço público.
É preciso olhar para a história para compreender melhor a magnitude da modernização gerencial. Na Europa Ocidental, o desenvolvimento da administração era a condição para o nascimento de um Estado distinto da Monarquia. Foi assim que passamos de uma gestão privada e pessoal dos assuntos públicos (no palácio real) para uma administração coletiva e impessoal. A construção do Estado moderno se apoiou sobre a necessidade de uma visão do serviço público como atividade “desinteressada”, orientada para os fins universais11. É justamente essa representação que está no centro das discussões hoje. Com as redefinições das atividades, descartando o relatório de antigos profissionais experientes tidos agora como “serviços prestados”. Muitos funcionários estão convivendo dolorosamente com suas funções em uma situação artificial que envolve toda sua atividade profissional. O significado de seu trabalho (e de si mesmo com relação ao autodesempenho) entra em contradição com os novos critérios de avaliação. Cotidianamente, o exercício da profissão se torna uma missão impossível. O esgotamento profissional que se segue é incompatível com as diversas formas de “gerenciamento de objetivos”.
Como resultado, aumentaram as taxas de suicídios ou tentativas, faltas por doenças e uso psicotrópicos. “Chegamos todos os dias ao trabalho já em contagem regressiva para sair. A conversa entre os colegas é sempre sobre quanto tempo resta para se aposentar”, afirma Pierre Le Goas, do Serviço de Impostos sobre Pessoa Física de Lannion12. Isso é o colapso. “Os ambientes são extremamente tensos com o aumento da carga de trabalho e com os funcionários chorando em vários locais”, testemunha Delphine Cara, responsável pelo SNU-Pôle-Emploi13.
Mas a “modernização” do Estado já é uma realidade porque interfere nos atos mais simples dos funcionários públicos. Afinal, independentemente dos sacrifícios, do sofrimento, da desorientação e das tensões, os assalariados que se submetem a ela não têm outra escolha se não participar da mudança e colocá-la em ação a todo instante, convivendo com ela de todas as maneiras e acomodando-a. Melhor ainda: eles acabam encontrando, sozinhos, a melhor maneira para efetuar suas tarefas a fim de evitar situações insustentáveis. Entre outras coisas porque ainda são herança do Estado anterior, com uma forma de devoção que antes constituía a “missão do serviço público”. Sentimento esse leva Marie-Jo, como tantos outros funcionários, a salvar os seus arquivos de trabalho em seu pen-drive para revê-los em casa. Ainda persiste o sentimento nobre de cumprimento do dever do passado, “antes tínhamos pessoas, não arquivos e dossiês”, comenta Françoise do Pôle-Emploi de Grasse14.
A eficácia do desmantelamento do Estado encontra-se em um paradoxo: a situação anterior de realização do serviço público – a relação com a função, os dispositivos sociais (dedicação e envolvimento) que a constituem – permite a aplicação de reformas que estão destruindo as formas tradicionais de exercício e as razões para se envolver nas funções.
Essa transformação não pode, entretanto, ser reduzida numa mobilização das elites do Estado que a promovem e se vangloriam levantando bandeiras e mostrando saldos positivos. É evidente que a competição “para agradar” – o ministro, chefe de gabinete, Presidente da República – e as rivalidades entre todos, além do incessante movimento entre público e privado (e vice-versa) também contribuem para o quadro atual.
Mas o advento de um Estado gestor também resulta, a cada dia, em uma atividade incessante e cumulativa de milhões de funcionários públicos, que talvez não queiram, mas que realizam suas tarefas, seja qual for o custo, e os integram como podem “às suas coisas a fazer”.
Certamente há muitos protestos. Juízes, advogados e funcionários do setor judiciário estão mobilizdos. Cerca de 46 mil assalariados do Pôle-Emploi entraram em greve em outubro de 2009. Os professores universitários há muito recusaram a reforma em suas áreas. E no primeiro semestre, os médicos hospitalares protestaram para salvar os hospitais públicos. No entanto, cada categoria tem seus patrimônios (econômicos e culturais), suas origens sociais e formas de agir. Os professores de medicina não são carteiros, funcionários em agências de emprego, secretárias ou policiais. Como vão dialogar uns com os outros?
Ninguém parece poder apoiar ninguém e é isso que alimenta o sentimento geral de esmagamento. Ou talvez sejam precisamente os novos confrontos que vêm com a reforma – seja entre usuários e funcionários públicos ou entre funcionários públicos de diferentes níveis e de diferentes serviços – os responsáveis por retirar as forças daqueles que estão mobilizados.
*Laurent Bonelli é integrante do grupo de análise política da Universidade Paris 10 – Nanterre. Publicou La France a peur. Une histoire sociale de l’insécurité, Paris, La Découverte, 2008. Willy Pelletier é sociólogo, coordenador-geral da fundação Copernic.