Tropicalizando as políticas públicas
Unifesp organiza evento internacional para discutir difusão de inovações sociais por meio da cooperação para o desenvolvimento
A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) organiza entre os dias 16 e 22 de maio a Conferência Internacional sobre Difusão de Políticas e Cooperação para o Desenvolvimento. O evento receberá especialistas de todas as regiões do mundo (Brasil, China, Camarões, Chile, Colômbia, Alemanha, Austrália, Inglaterra, França, Canadá, Estados Unidos, entre outros) e acontecerá em duas etapas, em São Paulo e em Brasília.
As ideias e modelos políticos circularam na história com fluxo intenso e frequente dos países do Norte em direção aos do Sul. Normas de direito público, formas de governo e sistemas de gestão, para nomear apenas algumas instituições provindas da Europa e dos Estados Unidos, foram adotados no Sul por imposição externa ou necessidade para se adequar à ordem internacional. A colonização foi um mecanismo importante para a difusão de modelos políticos. E depois da Segunda Guerra Mundial o mesmo pode ser dito sobre a hegemonia dos Estados Unidos e a ação das organizações internacionais, como as instituições de Bretton Woods e da OCDE. Configurou-se um processo de “importação de instituições de Estado” provindas do hemisfério Norte.
Nos anos 1980, o cenário da circulação internacional de ideias era protagonizado pelo Banco Mundial e pelo FMI. Eles pregavam a agenda da nova gestão pública, movimento que ficou conhecido pela aposta em mecanismos de redução do papel do Estado nas políticas públicas como ponto de partida para o aumento de eficiência. A partir da década de 2000, no entanto, essa conjuntura começa a mudar diante da necessidade de renovação desses modelos neoliberais e da pressão de movimentos sociais e do advocacy de grupos políticos que aspiravam outras formas de gestão pública.
Brasil, México e Índia, entre outros, se tornaram protagonistas nesse novo cenário. No Brasil, a transição para a democracia e a Constituição de 1988 marcam o surgimento de um campo fértil para inovações em políticas sociais. Os modelos que emergiram a partir dessa época foram construídos, muitas vezes, de forma experimental. Obrigados a endereçar situações de pobreza e vulnerabilidade social, governos produziram políticas em circunstâncias de falta de recursos, baixa capacidade de investimento estatal e elevado nível de burocratização. Além disso, o Brasil é um país de vasto território com forte heterogeneidade geográfica, climática e demográfica.
Algumas das inovações ganharam destaque internacional. No plano municipal, o Orçamento Participativo (OP) de Porto Alegre foi reconhecido em 1996 pelo Programa Habitat, da ONU, e o sistema de transporte de Curitiba ganhou destaque na América Latina por seu pioneirismo. No plano federal, o Bolsa Família foi recomendado pelo Banco Mundial, que incentivou distintos países a adotá-lo como as Filipinas, por exemplo, enquanto o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) passou a fazer parte da agenda da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).
Muitas organizações internacionais e países entenderam que as políticas públicas produzidas nos países do Sul, como no Brasil, eram mais idôneas para serem replicadas em países em desenvolvimento. Além disso, as políticas nacionais produzidas durante os governos do PT se beneficiaram de um marketing internacional. Nas palavras de Rômulo Paes de Souza, havia uma “diplomacia das políticas sociais”, uma forma de soft power utilizada como estratégia de inserção na política global. A propaganda acoplada aos resultados dessas políticas e à inovação dos modelos ajudou o país a obter reconhecimento no exterior e a se tornar referência para o mundo, sobretudo para os países do Sul.
O Brasil alcançou seu ápice como referência internacional neste campo no início da década de 2010. O processo de construção do Sistema Nacional de Participação Social é ilustrativo. Após o acúmulo com as experiências dos Orçamentos Participativos e dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas, John Gaventa, pesquisador do Institute of Development Studies, na Inglaterra, enfatizou a inovação na esfera participativa brasileira e a sua importância neste setor, servindo como um modelo para o mundo.
A expertise brasileira em matéria de políticas sociais também foi um componente importante para ajudar a transformar as relações, outrora de dominação, com as instituições de Bretton Woods. O Brasil não se tornou apenas importante ator para as transferências de políticas sociais para o mundo, mas também consolidou-se como um lugar de “peregrinação” de gestores do mundo todo, que vinham para conhecer ou ser capacitados a colocar em prática políticas em diversas áreas. Esse processo permitiu uma verdadeira tropicalização das políticas públicas em escala planetária.
O Ministério do Desenvolvimento Social recebia centenas de visitantes interessados nas políticas sociais brasileiras, como o Cadastro Único e os programas de segurança alimentar. O mesmo ocorria em Porto Alegre, com o OP. Sem tradição e experiência consolidada na difusão de políticas, recebimento de delegações e transferência das tecnologias sociais, o Brasil executou esse processo de troca, em muitos casos, de forma espontânea, sem instrumentos técnicos para organizar e orientar introdução, acompanhamento e avaliação. No plano das prefeituras, muitas vezes limitação orçamentária, carência de informações e ausência de quadros com competência e expertise na área internacional tornam a situação ainda mais desafiadora.
Essa realidade brasileira e dos países do Sul lança questões importantes para a academia e para aqueles que estão envolvidos diretamente com a prática das transferências de políticas por meio da cooperação internacional, usando mecanismos formais e informais.
No âmbito acadêmico é indispensável discutir e explorar melhor os distintos casos e a nova configuração de poder que foi criada entre países do Sul e do Norte nesse setor. Além disso, é fundamental trabalhar para construir epistemologias do Sul, de modo a poder conceituar, teorizar e explicar melhor esse fenômeno. Por fim, diante da situação de crise política e vulnerabilidade pela qual as políticas sociais passam nos dias atuais no Brasil e em outros países do Sul, é fundamental investigar seus efeitos para a difusão de inovações.
No que diz respeito à prática da transferência de políticas, é importante entender quais são os desafios para sua efetivação. Quais mecanismos facilitam e constrangem esses processos. Como gestores podem aprofundar e aprimorar estratégias de financiamento, mecanismos (formais e informais) de intercâmbio de experiências, construção de sistemas de informação e capacitação para atores e definir o papel dos cidadãos e da sociedade civil em processos dessa natureza.
Discutir essas questões é a proposta da Conferência Internacional sobre Difusão de Políticas e Cooperação para o Desenvolvimento. O evento receberá os maiores especialistas estrangeiros da área, muitos deles em sua primeira passagem pelo Brasil.
A Conferência acontecerá em duas etapas, entre os dias 16 e 22 de maio. A primeira será o debate acadêmico na Unifesp, em São Paulo, de 16 a 19 de maio. A segunda parte do evento ocorre na sede da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), em Brasília, nos dias 21 e 22 de maio, com a proposta de integrar discussões entre pesquisadores, gestores públicos e funcionários de organizações internacionais, promovendo diálogo e interação entre academia e prática. Uma parte do evento é aberta ao público e gratuita. Todas as informações estão disponíveis no site: www.policydiffusion.com.
*Osmany Porto de Oliveira é professor do Departamento de Relações Internacionais da Unifesp, coordenador da conferência e autor de Embaixadores da participação: a difusão internacional do Orçamento Participativo, Editora Annablume (2016), traduzido para o inglês como International Policy Diffusion and Participatory Budgeting: Ambassadors of Participation, International Institutions and Transnational Network, Ed. Palgrave McMillan, 2017.