Trump e o fechamento das fábricas da Ford no Brasil
Tendência é abandonar a produção nos países onde se buscava incentivos fiscais e arrocho dos direitos trabalhistas e voltar a instalar montadoras nas sedes das empresas
A vitória de Trump em 2016 à presidência dos Estados Unidos representou o declínio da globalização nos moldes que ela emergiu na segunda metade do século passado. Eric Hobsbawm já havia previsto no livro Globalização, democracia e terrorismo que “as desigualdades geradas pela globalização descontrolada dos mercados livres, que crescem muito rápido, são incubadoras naturais de descontentamentos e instabilidades. Os que no passado beneficiaram-se desproporcionalmente de uma economia de mercado globalizada podem deixar de fazê-lo, e os pioneiros da globalização podem tornar-se suas vítimas”. O fenômeno global que presenciamos é exatamente esse, o efeito colateral da globalização afeta agora os setores que mais se beneficiaram dela no passado.
As empresas dos países mais ricos e desenvolvidos se tornaram multinacionais à medida em que se instalavam em outros países buscando incentivos fiscais e mão de obra sem direitos trabalhistas. Em boa parte do século passado, nos países de primeiro mundo, o Estado de bem-estar social estagnou o lucro das empresas capitalistas por promover direitos trabalhistas e cobranças de impostos.
Mas essa transferência de fábricas do primeiro para o terceiro mundo gerou um problema de desemprego, já que a mão de obra dos países desenvolvidos foi trocada pelos estrangeiros. Nos Estados Unidos, os trabalhadores começaram a sofrer cada vez mais com o fechamento de fábricas que migravam para a Ásia e América Latina. A China passou a se beneficiar da globalização e a entrar na economia norte-americana, ganhando espaço na economia global. Lutar contra esse efeito colateral da globalização e do próprio capitalismo foi o trabalho de Trump, que aumentou o protecionismo já típico dos Estados Unidos.
O trabalhador branco norte-americano típico se viu desalentado com as sucessões de fechamentos de fábricas em seu país, empresas de automóveis e telemarketing empregavam agora trabalhadores latinos ou asiáticos no exterior. A promessa de gerar novos empregos e reverter esses efeitos colaterais da globalização foi componente importante para a vitória de Trump. Até antes da pandemia, os dados econômicos eram promissores: o desemprego caiu para 3,5% em setembro de 2020, a menor taxa desde dezembro de 1969.
Com o avanço da globalização e o crescimento da China, cresceu a competição entre as empresas norte-americanas e chinesas, já que muitas vezes os produtos asiáticos possuem qualidade próxima e preços mais acessíveis.
Como no caso de produtos eletrônicos, setor em que a China conquista cada vez mais espaço no mercado internacional. O sucesso de celulares da Xiaomi e Huawei aumentou a concorrência de empresas como Apple, que sempre buscou dominar o mercado. Foi nesse cenário de competição industrial, perda de espaço na economia mundial e desemprego que Trump adotou uma postura protecionista. A sua tática contra os efeitos colaterais da globalização o fez entrar numa guerra comercial contra a China, ao impor taxações a uma série de produtos visando beneficiar as empresas nacionais.
No processo original da globalização, à medida que essas multinacionais instalavam fábricas no Brasil em busca de incentivos fiscais e mão de obra barata, seria possível dizer que nos beneficiávamos por conta da oferta de novos empregos. Porém nessa nova fase da globalização, acompanhada de fenômenos políticos como Trump, a situação está se tornando inversa.
A Revolução Industrial 4.0 altera completamente a dinâmica de produção. A mão de obra está sendo substituída por máquinas de alta tecnologia, que operam por inteligência artificial. A automação fornece uma forma de produção nova e menos dependente do trabalhador operário. Esse impacto do avanço tecnológico na natureza do trabalho e nos números de empregos está sendo muito discutido, já que a tendência é a substituição do trabalho humano por máquinas e o consequente desaparecimento de empregos. Isso nos leva a outra tendência inversa à antiga globalização: agora montadoras multinacionais não se preocupam tanto em buscar mão de obra barata para exploração nos países subdesenvolvidos da Ásia e América Latina, já que podem utilizar robôs para baratear a produção. Agora a tendência é abandonar a produção nesses antigos países onde se buscava incentivos fiscais e arrocho dos direitos trabalhistas e voltar a instalar montadoras nos países sede dessas empresas.
Martin Khor, diretor executivo do centro de estudos South Centre, comentou o relatório de Oxford que investiga a situação: “as novas tecnologias causarão perturbações incontroláveis e aumentarão o descontentamento social e a agitação política no Ocidente que alimentou os votos contra o sistema para o Brexit e Donald Trump. […] o aprofundamento do uso da automação causará uma ruptura generalizada em muitos setores e até mesmo em economias inteiras. Pior, estima-se que os países em desenvolvimento são os que mais perdem, e isso agravará as já grandes desigualdades globais”.
O relatório feito pela Oxford-Citi estima que o risco da automação para empregos em países em desenvolvimento seja entre 55% e 85%. Mas os países em desenvolvimento serão mais particularmente afetados pelo fenômeno. Martin Khor explica que “enquanto a tecnologia do século XX permitiu que empresas mudassem para o exterior para tirar vantagem de mão de obra barata, os recentes desenvolvimentos em robótica e fabricação aditiva agora permitem que elas localizem a produção mais perto de mercados domésticos em fábricas automatizadas”. Em suma, a automação está provocando um processo de retorno das multinacionais ao seu país de origem. Esse é o outro fenômeno que acompanha os efeitos colaterais da globalização.
Agora, nessa tendência reversa, a Ford fecha suas fábricas no Brasil, apesar de obter incentivos fiscais do governo e ter no país menos empecilhos trabalhistas. Essa decisão afetará diretamente a vida de milhares de trabalhadores. Desde 1919 operando no país, estima-se que 5.298 empregos diretos serão perdidos.
Apesar do presidente Bolsonaro dizer que “faltou à Ford dizer a verdade, querem subsídios”, o caso não é uma mera questão de subsídios, que a montadora sempre teve no Brasil. A questão remonta à nova revolução industrial. A Ford busca se atualizar dentro de um mercado cada vez mais competitivo; munido de alta tecnologia, inteligência artificial, veículos autônomos, transformações digitais e carros híbridos e elétricos. Essas novas tecnologias estão desencadeando um processo de transformação na indústria automotiva.
A Ford ficou para trás nesse processo de transformação. De 2015 para 2019, a empresa passou de quarta maior montadora do Brasil para a sétima. Sua participação no mercado foi de 10,24% para 7,14%. Empresas mais adiantadas tecnologicamente, como a Tesla, ganham espaço. No Brasil, a sul-coreana Hyundai ultrapassou a Ford e se tornou a quarta maior montadora.
Agora, a Ford está procurando se atualizar e para isso precisará investir uma enorme quantia de dinheiro. Mesmo com ampliação dos incentivos fiscais (num país de moeda desvalorizada, com custo alto de produção e com consumo diminuindo), essa busca de reorganização da empresa levaria ao fechamento das montadoras, levando em conta o custo dos novos investimentos para reestruturação no mercado global. A competição aumentou, novas empresas dominam cada vez mais o mercado, munidas de alta tecnologia. Empresas tradicionais como a Ford ficaram para trás e buscam se reestruturar no mercado para atenuar as desvantagens. O fechamento das fábricas no Brasil faz parte de um processo de mudança no mundo de produção, de retração da globalização e das escolhas inevitáveis dessas empresas para reparar seus próprios atrasos.
Gabriel Dantas Romano é estudante de Ciência Política na USP, ativista ambiental e pelo direitos dos animais.