Trump: o último sintoma da crise pós-moderna
É possível identificar quais atos de resistência representam riscos à convivência social e podem ser classificados como sintomas deste mal-estar global?
Desde que a página da pós-modernidade passou a ser escrita, particularmente nas últimas décadas do século XX, a “implosão” tornou-se o novo jargão intelectual. Já não era suficiente desestabilizar as estruturais sociais a partir de fora. Ao contrário, foi necessário minar a confiabilidade e implantar o caos no campo das ideias. A insegurança tornou-se um medo interno, agora estigmatizado, por um lado, pela própria fragilidade dos conceitos e, por outro, pela vigilância algorítmica que transita em todas as esferas do nosso cotidiano. É justamente este o último sintoma da crise pós-moderna: colocar o sujeito contra o domínio do próprio pensamento e ofertar oráculos onde possam depositar o pouco que ainda lhes resta.
A crise pós-moderna, como prenunciara Lyotard, na década de 1970, é produto de uma série de transformações sobre o monopólio do “saber”, isto é, o campo dos processos discursivos que foram esvaziando nossas identidades históricas. Isso, por um lado, tornou a independência intelectual um projeto robusto e ambicioso; mas, por outro lado, representou um risco civilizatório ao adentrar nos projetos políticos e culturais desenhados sobre a modernidade. É justamente ali que o risco da emancipação, portanto, emerge como crise – um movimento capaz de coletar atos de resistência e violência.
Naturalmente, alguns atos de resistência até podem ser benéficos por colocarem a crítica como instrumento de transformação social. Contudo, muitos desses atos estão camuflados por pétalas de tirania, perfumes de carnificinas e sabores de crueldade e violência. Mas é possível identificar quais atos de resistência representam riscos à convivência social e podem ser classificados como sintomas deste mal-estar global? Quais instrumentos políticos possuem legitimidade para colocar fim ao monopólio de quem gerencia este mal-estar? Ou, ainda: Sendo os sintomas deste mal-estar difusos e dinâmicos, poderíamos combatê-los com os mesmos discursos?
Enquanto o projeto da singularidade está cada vez mais próximo, como sustenta Ray Kurzweil, um dos principais futuristas do nosso tempo, os sintomas da pós-modernidade cotidianamente assumem novos contornos. E o primeiro deste sintoma é a crise instalada nas instituições, um espaço destinado à organização da vida civil. Governos, religiões e sistemas educacionais parecem ser incapazes de fomentar a credibilidade, minada sempre por escândalos de corrupção, esvaziamento moral e impotência diante dos recursos de aprendizagem. A razão dessa entropia das instituições púbicas acompanha, em seu oposto, o crescimento de redes descentralizadas, monopólios tecnológicos capazes de destruir a economia de países já marginalizados e, ainda, suplantar ideais de estabilidade e justiça social. As instituições estão repletas de pessoas, mas vazias de utopias. Tornaram-se locais incapazes de dialogar com o seu exterior, uma massa homogeneizada pelo trabalho e carente de um verdadeiro ócio criativo.

Um segundo sintoma da crise pós-moderna é o esgotamento da ideia de representação democrática. Afinal, como é possível que o poder de déspotas como Putin, Trump ou Maduro continuem ser legitimados pela vontade popular? Aqui, obviamente, precisamos separar a água do vinho. Em sistemas politicamente instáveis, ausentes de controle fiscalizatório, o jogo da farsa e da encenação sustentam a ideia de soberania popular. Já em sistemas políticos aparentemente estáveis, a legitimidade eclode da cristalização da estrutura de acesso: o último filtro é, não raras vezes, o clã familiar ou ideológico que sustenta o partido político. Os poucos mecanismos políticos e jurídicos de fiscalização apenas demonstram o quadro de insuficiência diante da gestão da vida pública: nos submetemos ao controle estatal sem minimamente termos consciência do que e como se dará sua atuação.
A estabilidade de um modelo econômico pode ser considerada um outro sintoma da crise pós-moderna. Desde que Marx implodiu, na segunda metade do século XIX, a ideia de um sistema capitalista capaz de garantir um equilíbrio duradouro, observamos uma sucessão de crises financeiras, desigualdade crescente e uma constante reconfiguração das relações de trabalho. Aliás, a própria ideia de trabalho tornou-se uma joia nas mãos da burguesia: a nova escravidão, quiçá também chamada de ‘escravidão voluntária’, permite instrumentalizar a mão-de-obra com baixíssimos salários. Enquanto pobres recebem o “mínimo”, a elite suspira logo abaixo do “teto”. Ao mesmo tempo, o efeito da bolha econômica, particularmente em alguns países da América Latina, África e Ásia têm movimentado o maior fluxo migratório da história humana. Mas como isso é possível? A inércia global diante deste quadro é sutilmente pensada – “por que equilibrar o quebra-cabeças econômico se isso implica perder privilégios e patrimônio?”.
Um quarto sintoma é expresso na crise ecológica. Não é suficiente explorar os recursos naturais, destruir uma variedade de espécies e acabar com as florestas. É preciso fazer tudo isso de forma imediata. A falta de consciência sobre o nosso futuro impõe riscos graves à civilização, mas isso é incapaz de deter a efígie do progresso, esta moeda podre da civilização tecnológica, como alerta o professor Jelson Oliveira em seu livro Moeda sem Efígie: a crítica de Hans Jonas à ilusão do progresso (2023). O incentivo de Trump à indústria do petróleo, a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris e o boicote aos acordos que pretendem limitar o aquecimento global são uma expressão de sadismo que se prolifera sobre a crueldade do sofrimento e o prazer da indiferença. Por isso, não deveríamos falar de uma crise ecológica, mas de uma crise sobre a ecologia, isto é, o esquecimento do ambiente como nossa “casa comum”.
E, por último, há o sintoma pós-moderno provocado pela crise religiosa e moral. Enquanto o fenômeno religioso é mercantilizado, substituindo a religiosidade pela barganha profética e pelos discursos conservadores, a moral enterra sua última virtude: a vergonha. Tornamo-nos indivíduos cada vez mais convictos das próprias crenças, mas órfãos no reconhecimento dos próprios erros. A morte do inimigo tornou-se triunfo a ser celebrado, agora sob o pretexto de que há apenas um lado da história – aquele contado e controlado pelo “Ministério da Verdade”, como escreveu G. Orwell no clássico 1984. Nesse novo mundo, imigrantes, refugiados, indígenas, pretos e pobres representam conceitos vazios, ofuscados pelo jargão de que ‘todos são iguais (…se forem iguais a nós)’. Trata-se de um tipo de alteridade que reconhece nos outros apenas a imagem dos próprios preconceitos, pois nesse mundo totalitário há vencedores e vencidos, heróis e vilões, otimistas e pessimistas, santos e ateus.
Para todos os efeitos, uma simples digressão à história das ideias deveria, por um lado, servir como antídoto ao mal-estar da agenda neoliberal e, por outro, tornar-se um alerta para o modo como somos capazes de colocar o nosso pensamento em certas armadilhas sem qualquer desconfiança. É por isso que algumas utopias deveriam ser perseguidas pelo seu objeto, e não pelo seu brilho. De todo modo, Trump representa, portanto, não o fim da história, mas um sintoma latente de um momento de desencantamento (e terror).
Léo Peruzzo é professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e da Escola de Direito da PUCPR.