Um ano depois de junho – parte 2
A segunda parte segue com o debate sobre as características de uma luta orientada por pautas, a questão do vandalismo e a inversão de seu lugar na narrativa, a reconquista das ruas e os efeitos institucionais das jornadas. As seções são autônomas, mas o contexto só se explica por sua abordagem conjuntaJoão Brant
A luta orientada por pautas
As manifestações realizadas em junho de 2013 tiveram como foco muito mais a defesa de pautas – em especial relacionadas a políticas públicas – do que o ataque a políticos com mandato. Os prefeitos, os governadores e a presidente da República apareciam como adversários na luta por questões específicas (como a revogação do aumento da tarifa), não como inimigos a serem derrotados. Essa observação é importante para entender por que, de modo geral, as manifestações não podem ser consideradas de oposição a esse ou àquele governo.1
Isso não significa que os manifestantes aceitassem o cenário político atual e o modo de atuação da classe política. Eram comuns – e contumazes – as críticas ao sistema de representação.2 Não havia, contudo, um foco de que o problema era esse ou aquele político. Todos eles, em especial os do Legislativo, levaram notas baixas da população.3 O subtexto das manifestações era: o problema é o sistema de representação e participação política. De fato, “ambiente político” foi o segundo tema mais mencionado pelos manifestantes entre os motivos para estarem na rua.
O fato de as pautas, e não os políticos, ocuparem o centro das manifestações fez que a legitimidade para chamar as atividades estivesse nas organizações e coletivos que são reconhecidos pela atuação naqueles temas. Mais ainda, é possível dizer que a revogação das passagens só aconteceu porque os grupos de esquerda que iniciaram as manifestações em defesa da pauta, em especial o Movimento Passe Livre (MPL), ao mesmo tempo criaram condições para a ampliação dos reivindicantes, mostraram a legitimidade da pauta e dos argumentos e se beneficiaram de uma conjunção de fatores que levou centenas de milhares de pessoas às ruas em defesa da redução da tarifa. Até que se efetivasse a revogação, essa era a pauta com mais legitimidade.
Nesse sentido, o MPL trabalhou numa perspectiva arriscada. Por um lado, precisava criar um espaço convidativo que ampliasse a adesão à pauta e às manifestações. Por outro, precisava evitar que esse espaço convidativo se tornasse amplo demais, a ponto de fragmentar a pauta e diluir a importância do debate sobre a redução da tarifa. O quadro que se consolidou permitiu as duas coisas. A adesão em massa da população aos protestos até o dia 17 de junho e o caos urbano gerado pela inação da polícia no dia 18 criaram as condições para a revogação da tarifa no Rio e em São Paulo no dia 19. As manifestações do dia 20 vieram ainda na esteira da luta pela revogação das tarifas, mas já traziam diversas outras pautas.
O foco nesses temas trouxe alguns resultados concretos, além da revogação das tarifas. Até 28 de junho, podem ser identificadas as seguintes medidas tomadas como consequência das jornadas:
− Câmara aprovou redução de PIS-Cofins na tarifa dos transportes;
− Câmara aprovou 25% dos royalties do petróleo para a saúde;
− Câmara aprovou 75% dos royalties e 50% do Fundo Social do petróleo para a educação;
− Senado aprovou corrupção como crime hediondo;
− Deputados decidiram por maioria absoluta arquivar a PEC 37;
− Presidente Dilma Rousseff anunciou apoio a uma reforma política;
− Em SP, Polícia Militar anunciou que não vai mais usar balas de borracha em manifestações.4
Como já observado na primeira parte desta análise, boa parte das reivindicações era genérica e não vinculada a uma pauta concreta, mas em sua tentativa de mostrar serviço o Congresso Nacional logo interpretou as pautas em diálogo com sua agenda política.
A reconquista das ruas
Um dos efeitos políticos mais visíveis das jornadas de junho, e certamente um dos motivos de seu crescimento, foi a sensação de reconquista das ruas como espaço privilegiado da expressão e ação política.
O mote “O gigante acordou”, usado por muitos manifestantes, refletia exatamente a sensação de retomada da perspectiva de que o poder emana do povo (e não da própria classe política). Era como se fosse um momento de reafirmar que a população é maior que os políticos que a representam.
Nessa linha, replicando Hannah Arendt, Paulo Arantes nomeou as jornadas de junho de “explosão de autonomia popular”.5 O cientista político Leonardo Avritzer ressaltou que as manifestações representaram uma democratização do espaço público e do espaço midiático, “ambas as dimensões simbolizadas pela ideia de ‘ocupar as ruas’”. Na visão dele, “no capitalismo global com monopólio midiático que nós vivemos, a rua é o único espaço que não tem nenhum controle econômico e nenhuma interpretação preconcebida. Ela é o único local onde a democracia pode ser exercida na sua plenitude”.6
Roseli Goffman, do Conselho Federal de Psicologia, em reunião realizada no dia 21 de agosto, atribuiu essa “explosão” à capacidade de ampliar o desejo e levá-lo para as ruas nas manifestações, o que ela descreve por meio do conceito do conatus, do filósofo Espinoza. Nos termos explicados pela Wikipédia:
“Os indivíduos (mentes e corpos) se esforçam em perseverar sua existência tanto quanto podem (prop. 6 da parte 3 da Ética). Eles sempre se esforçam para ter alegria, isto é, um aumento de sua potência de agir e de pensar, e eles sempre se opõem ao que lhes causa tristeza, ou seja, aquilo que diminui sua capacidade de manter as proporções de movimento e repouso características de seu corpo. O esforço por manter e aumentar a potência de agir do corpo e de pensar da mente é o que Espinoza chama de desejo (conatus)”.
Essa reconquista das ruas se deu, em parte, como reação à violência policial, em um círculo virtuoso no qual a mídia tradicional teve papel-chave por sua súbita mudança no perfil da cobertura e na maneira de tratar o vandalismo, a partir do dia 14 de junho.
O “vandalismo” e a inversão de seu lugar na narrativa
Um dos sinais mais visíveis na virada da cobertura midiática foi o enfoque sobre as ações violentas nas manifestações. Desde o início dos protestos, houve dois tipos de ação violenta, de diferentes matizes e intensidades. A mais importante delas foi a violência policial. Desde a primeira manifestação realizada em São Paulo, e certamente desde o início em quase todas as cidades, a polícia reprimiu os manifestantes com o uso da força. As polícias militares, responsáveis pela manutenção da ordem, são comandadas pelos governos estaduais, o que torna a abordagem assumida em cada estado dependente das orientações dos governos locais.
Também desde o início dos atos, alguns manifestantes atacaram bens privados e públicos, especialmente bancos e grandes lojas, com pedras e outros materiais. Houve depredação de ônibus e estações de metrô. Em parte, essas ações podem ser identificadas como reação à violência policial. Em outra parte, são fruto de uma cultura de enfrentamento ao capital e às forças da ordem. De forma geral, é possível afirmar que no início das manifestações essas atitudes eram minoritárias em um cenário de mobilização mais amplo.
O fato de ser minoritária, no entanto, não a tornou menos visível; ao contrário. Até o dia 11 de junho, a cobertura jornalística dos grandes meios de comunicação focou justamente esses casos, em um discurso que colocava o vandalismo no centro da narrativa. As manifestações eram descritas pela ocorrência de ataques aos bens privados e sua obstrução ao trânsito da cidade.
O dia 13 de junho foi marcado por um ponto de virada nessa cobertura. A violência policial extrema, que não poupou nem jornalistas no exercício de sua função, mudou a percepção de parte da sociedade sobre os protestos7 e fez que a cobertura dos meios de comunicação invertesse o lugar dos “vândalos” na narrativa: de regra, tornaram-se exceção.
A frase mais ouvida nos telejornais (em especial o Jornal Nacional, da Rede Globo) passou a ser: “Uma manifestação que começou pacífica terminou em violência depois da ação de alguns vândalos”. O subtexto também mudou. De condenadas a priori, as manifestações passaram a ser apoiadas, ainda que com a ressalva crítica à ação dos vândalos.
A partir do momento em que as manifestações cresceram, depois do dia 17 de junho, passou-se a um cenário que misturava a violência ativista com saques e depredações realizados por aproveitadores. Na manifestação realizada no dia 18 em São Paulo, por exemplo, um homem tentou invadir a Prefeitura. Na sequência, foram realizados saques em lojas do centro da cidade. Casos semelhantes ocorreram no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em várias outras cidades do país. Em muitos desses casos, a polícia demorou a agir. A opção dos prefeitos Fernando Haddad e Eduardo Paes por reduzir as tarifas no dia 19 pode ser creditada também à percepção de que a situação estava completamente fora do controle – tanto de ativistas quanto das forças policiais.
A questão da violência seguiu pautando parte das narrativas sobre as jornadas, especialmente a partir da entrada em cena dos Black Blocs, ativistas mascarados e vestidos de preto, atuando em grupo para destruir bens privados e públicos. Essa formação se deu de forma organizada a partir do final de junho no Rio de Janeiro e do início de julho em São Paulo. Passado o auge das manifestações em junho, as pautas se diluíram e as ações dos Black Blocs ganharam centralidade na narrativa.
Efeitos institucionais
Os efeitos políticos mais imediatos das jornadas de junho foram a queda de popularidade dos governantes em todas as esferas de poder. Em pesquisas realizadas pelo Datafolha no final de junho de 2013, foi constatada a queda da avaliação positiva do governo Dilma Rousseff (PT), do governo estadual de Geraldo Alckmin (PSDB) e da prefeitura de Fernando Haddad (PT), para ficar apenas nos casos de São Paulo. Dilma viu sua avaliação positiva cair 27 pontos em três semanas (57% para 30%) e a negativa subir 16 (9% para 25%).8 Da mesma forma aconteceu com Alckmin (52% para 38%) e com Haddad (34% para 18%).9
A queda na aprovação de todas as esferas do poder público mostra que os protestos abalaram a confiança da população nos políticos. Não foi um ou outro dirigente que obteve prejuízos à imagem depois dos protestos. É como se as jornadas de junho tivessem evidenciado a crise de representação e desvelado todos ao mesmo tempo.
A grande queda de popularidade mostra também que a percepção da população sobre os governos é construída sobre bases que vão muito além da avaliação concreta e objetiva de suas políticas. Ela se baseia em impressões subjetivas que demonstram grande volatilidade em momentos de crise.
Ao mesmo tempo, passada a crise, há uma tendência de que a popularidade se recomponha parcialmente. No dia 12 de outubro, por exemplo, a popularidade do governo Dilma alcançava 38% de avaliação positiva e 19% de negativa, tendo retomado cerca de um terço dos índices pré-jornadas.
Uma interpretação possível para essa queda de popularidade da presidente e dos governantes locais é que as jornadas de junho quebraram uma narrativa triunfalista sobre o Brasil. Desde o governo Lula, em função das melhorias objetivas nas condições de vida da população, mas também da direção geral do discurso político, prevalecia um clima de otimismo acompanhado de um discurso de que o país estava finalmente dando certo.10
As jornadas mexeram um pouco com esse otimismo. Pesquisa realizada pelo Ibope nos dias 19 e 20 de junho revelou que 59% da população considerava que as manifestações eram a melhor maneira para conseguir melhorias, mas 68% acreditavam que elas trariam pouca ou nenhuma mudança para o Brasil.11 Ainda assim, a hipótese de que as jornadas de junho tenham quebrado essa perspectiva triunfalista, embora precise de confirmação empírica, parece explicar bem o fato de o governo federal não ter conseguido recuperar seus índices de aprovação. No vácuo dessa narrativa, ganhou espaço um discurso mais pessimista, que parece ter se tornado hegemônico neste 2014, mesmo sem muitos fatos novos que o sustentem.
João Brant é doutorando em Ciência Política na USP e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.