Um assassinato cruel
Condena-se a sociedade às incertezas do mercado em todas as dimensões da vida social, da educação e saúde até a previdência social, o trabalho e a assistência social. O país perderá gerações – presentes e futuras –, que não terão nem condições de disputar a xepa da feira para sua sobrevivência imediata, enquanto poucos reinarão no mundo da ostentação vazia
Há quase cem anos instaurava-se no Brasil o seguro social previdenciário por meio das Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs – 1923). A justificativa centrava-se no argumento de que o trabalhador brasileiro era imprevidente, cabendo então ao Estado pensar na garantia de seu futuro. Muita água correu sob a ponte, e hoje o que se alega é que o trabalhador brasileiro é um privilegiado por contar com a Previdência Social, condenando-o a trabalhar até o fim de sua vida, na incerteza de poder fazer jus aos seus benefícios sociais. A cada um segundo sua capacidade de poupança, de sobreviver e viver no e do mercado!
Nessa inversão de 180º do significado essencial da instituição, e hoje da desconstrução da Previdência Social no país, há dolorosas coincidências. Entre elas, o fato de as CAPs terem sido instituídas pelo governo central quando a questão social era uma questão de polícia. E a proposta atual defronta-se com uma situação em que os movimentos sociais são criminalizados, os atos de assassinatos pelas forças policiais multiplicam-se e o Estado desresponsabiliza-se pela segurança dos cidadãos sob sua custódia. Questão social volta a ser de polícia.
Há ainda outra similitude nesse retrocesso representado pela proposta de reforma da Previdência Social: nas CAPs, o Estado não participava de seu financiamento. Atualmente, o que é atribuído ao déficit da Previdência Social é o não cumprimento pelo Estado da norma constitucional de ele ser corresponsável por seu financiamento.
Nos anos 1930 foram criados os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), não mais por empresas, como era o caso das CAPs, mas por categoria profissional dos trabalhadores do setor privado da economia. Nessa mesma década foram criadas as legislações trabalhista e sindical. Foi esse tripé que deu suporte ao projeto nacional de industrialização da economia brasileira, diante dos interesses agroexportadores dos cafeicultores. Vinculou-se então a instituição da Previdência Social no âmbito nacional a um projeto de desenvolvimento industrial do país. Claro que a burguesia foi contrária a essa legislação, uma vez que onerava seus gastos com mão de obra, o que fez Getúlio Vargas afirmar: “Estou querendo proteger os interesses desses burgueses, e esses burros ainda não perceberam”.1
Nessa trajetória de quase um século, alguns processos ficaram evidentes. O primeiro deles: a Previdência Social, tal como a legislação sindical, ao responder a necessidades dos trabalhadores, ao mesmo tempo os dividia, uma vez que aposentadorias, pensões e serviços assistenciais, inclusive os de saúde, eram diferenciados entre as distintas categorias profissionais. Isso porque, nesse processo de construção das instituições previdenciárias, diferenciaram-se o nível e a qualidade do funcionamento de cada IAP segundo a capacidade de mobilização e de defesa dos interesses de cada categoria. Isso, por sua vez, refletia a capacidade de arrecadação – compulsória – de cada um dos IAPs e também a importância do setor econômico em que cada categoria estava inserida; trabalhadores do setor de ponta da economia da época encontravam em sua luta pelos direitos um pouco mais de maleabilidade do Estado na regulação capital/trabalho. Aqui vale um esclarecimento: a contribuição para a Previdência nas CAPs era bipartite – empregadores e trabalhadores; nos IAPs passou a ser tripartite – Estado, empregadores e trabalhadores com carteira assinada, como é hoje. Contudo, o Estado, como já fizera na década de 1920, criava impostos específicos para financiar sua quota da Previdência Social. Com isso, criou-se uma regra de ouro nunca explicitada, mas sempre praticada: o Estado, quando financia a Previdência Social, o faz sem lançar mão de seus recursos orçamentários.
A partir do momento em que ocorreu um assalariamento em massa dos trabalhadores do setor privado da economia, o volume de recursos da Previdência Social aumentou exponencialmente. Foi então que eles passaram a ser objeto de desejo do Estado, que os utilizou de várias maneiras. Num primeiro momento, foi instituído o regime de capitalização, que consistia em investir os recursos previdenciários de forma “segura”, o que significava investi-lo em empresas estatais, que por sua vez consistia em investimento na construção de infraestrutura então estratégica para o processo de desenvolvimento industrial brasileiro. Foi assim com a Petrobras, por exemplo. Isso significa que a privatização atual desse complexo petrolífero indiretamente representa um repasse desses recursos dos trabalhadores para o capital estrangeiro. Outro caso é o da Companhia Vale do Rio Doce, privatizada no governo FHC. Além disso, o recurso previdenciário era utilizado em setores que apresentavam déficits, como o de moradia, caso do financiamento com recursos do IAPI na construção de conjuntos habitacionais urbanos no pós-guerra. Ou ainda durante FHC a proposta do então ministro do Planejamento, José Serra, de privatizar a Previdência Social conforme o modelo chileno, para alavancar investimentos na economia.
Dado o crescente peso econômico da Previdência Social como mecanismo de poupança individual dos trabalhadores do mercado formal de trabalho para investimentos na economia, as inúmeras tentativas governamentais de unificação dos IAPs encontraram resistência dos trabalhadores, que defendiam seus interesses específicos junto ao seu instituto, com a convicção de que a unificação lhes tiraria o já pouco controle que tinham sobre o destino dos recursos arrecadados e padronizaria o nível e a qualidade dos benefícios e serviços para baixo, representando uma perda, sobretudo para as categorias que mais haviam lutado por seus direitos. Foi assim em 1954 e 1960. Só a partir da ditadura civil-militar que a unificação foi possível e a Previdência ganhou um ministério só para si. Depois foi vinculada ao Ministério do Trabalho, e agora, na recentíssima reforma ministerial do atual governo ilegítimo, tem-se uma curiosa repartição das atividades: a parte “perdulária” dos gastos – o INSS –, responsável pelo pagamento dos benefícios, fica com o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário; e a parte da arrecadação, isto é, da receita, representada por superintendências, conselhos e câmaras, fica com o Ministério da Fazenda. Nada mais esclarecedor dos reais objetivos da reforma previdenciária em pauta.
Essa breve pincelada da trajetória histórica da constituição da Previdência Social no país revela sua íntima articulação, como política social, com os projetos de desenvolvimento econômico de cada momento, ao mesmo tempo que resposta a demandas sociais dos trabalhadores do setor privado da economia. Com base nessa articulação foram estendidos os direitos sociais dos trabalhadores com relação aos sinistros de seu futuro, seja por idade (aposentadoria), seja por doença ou morte (pensões). Enquanto isso, políticas não contributivas, como assistência social, ficavam à margem, já que se dirigiam ao segmento não incluso nas regras do mercado de trabalho, o que então era denominado “marginalidade social” e, hoje, “exclusão social” ou “vulnerabilidade social”. Quanto à saúde, a parte igualmente não contributiva consistia em medidas coletivas de prevenção (a tradicional Saúde Pública), a partir de meados da década de 1970, timidamente associadas à assistência médica do que hoje se denominaria atenção básica, mas notadamente voltada para pré-natal e puericultura, afora as doenças contagiosas, como tuberculose e hanseníase, ou socialmente perigosas, como doença mental. Já a assistência médica individual destinada aos trabalhadores e, portanto, financiada com recursos contributivos da Previdência Social era produzida em sua maioria pelo setor privado da saúde, contratado por meio de credenciamento desses serviços e, posteriormente, de convênios.
Dessa forma, a Previdência Social no país atuou muito mais como uma política social com funções essencialmente econômicas, como um mecanismo de arrecadação pelo Estado da poupança individual dos trabalhadores para financiar investimentos nos setores fundamentais da economia. No fim dos anos 1960 e durante a década de 1970, verificou-se que a Previdência Social possibilitou, como política social do Estado, a promoção da privatização radical dos serviços de saúde (assim como estava sendo feito com a educação) e previdenciários e, concomitantemente, a redução dos recursos orçamentários no investimento naquelas funções (saúde e educação). A assistência social continuou marginal. A partir da segunda metade dos anos 1960, porém, em pleno regime ditatorial, houve uma extensão dos direitos previdenciários para segmentos até então excluídos, como trabalhadores rurais e autônomos. Interessante notar que, excluída a necessidade de legitimação do regime vigente pela sociedade por meio das políticas sociais, já que sua sustentação se dava pela força e pela repressão, a extensão desses direitos tornou-se possível, assim como a unificação da Previdência Social, até então sempre malograda. Criou-se o Ministério da Previdência Social, já então o segundo maior orçamento federal, e dividiu-se sua composição em duas instituições – uma voltada aos benefícios e outra à assistência médica, INSS e Inamps. Este posteriormente ficou subordinado ao Ministério da Saúde e, num segundo passo, na construção do Sistema Único de Saúde (SUS), foi dissolvido e suas atribuições são agora regidas pela nova norma constitucional de 1988 – a saúde como direito de todos e dever do Estado.
Novos tempos (1988-2016)
Com a Constituição de 1988, tratou-se de construir a universalidade da Previdência Social, da assistência social e da saúde como direitos sociais, formando esses três elementos o modelo de seguridade social no país. A mudança foi radical: inspirada nos modelos nórdicos e europeus, a proposta foi que os direitos sociais, como tais, não sejam mais reflexo imediato da condição dos sujeitos sociais no mercado e, portanto, de sua capacidade contributiva, mas sejam direitos dos indivíduos, independentemente de sua condição no mercado. Para tanto, por exemplo, a assistência social não consiste mais num favor do Estado ou da ação das primeiras-damas, mas num direito social daqueles que não têm acesso ao mercado nem formas de sobrevivência financeira. A saúde não se distingue mais entre saúde previdenciária e saúde para os demais, no geral os pobres, no caso porque não possuem recursos para pagar pelos serviços médicos. E a Previdência Social estende-se para segmentos não contributivos, no que hoje se constitui, por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
No entanto, num país patrimonialista como o Brasil, a proposta desse modelo de seguridade social sofre fortes resistências, a começar pelo esquartejamento daqueles seus três componentes; a ação inicial foi o corte de repasses de recursos previdenciários pelo Estado para a saúde e para a assistência social. Isso no início dos anos 1990, durante o governo Collor. A ideia é sempre a mesma: reduzir os “gastos” nessa função para destinar seus recursos ao equilíbrio das contas públicas determinado pelas políticas de “ajuste”. Durante os governos FHC, as coisas assim continuaram, até que a partir de 2003 os governos Lula e, de forma menos acentuada, os governos Dilma passaram a imprimir em suas políticas sociais uma radicalidade no combate à pobreza e às desigualdades sociais.
A partir de 1988, nenhum benefício previdenciário ou assistencial poderia ser inferior ao valor do salário mínimo (diferente, por exemplo, do Bolsa Família, que não se constitui como direito social). Não só as políticas sociais tiveram uma expansão acentuada, como também a política de recuperação do salário mínimo com aumentos acima da inflação se tornou o principal instrumento de combate à pobreza e de distribuição de renda. E, como o salário mínimo consiste no parâmetro de definição do valor dos benefícios sociais, contributivos ou não, isso rebateu na Previdência Social, que acompanha a política salarial como fator redistributivo e a consolidação desses benefícios como direitos sociais.
A desconstrução radical dos direitos
A atual reforma da Previdência Social é, assim, um crime contra os direitos até então conquistados e consolidados pela Constituição de 1988. Enquanto o tripé legislação previdenciária, trabalhista e sindical foi o pilar central do desenvolvimento dos direitos sociais no Brasil, ao regular a relação capital/trabalho que sustenta o processo de desenvolvimento do país, em suas distintas versões ao longo de nossa história, agora, na ausência de qualquer projeto de país e nação, na vigência do predomínio da voracidade do capital sem limites como horizonte imediato num governo que tem a urgência de se saber fugaz, esses direitos são desconstruídos de forma sistemática e impiedosa.
Isso significa que, ao prevalecer a concepção de que expectativa de direito não se configura como garantia de direito, como quer se imputar ao caso da reforma da Previdência Social, quebrando um pacto de solidariedade intergeracional que permite o planejamento do futuro dos cidadãos, condição essencial dos direitos, condena-se a sociedade às incertezas do mercado em todas as dimensões da vida social, da educação e saúde até a previdência social, o trabalho e a assistência social. O país perderá gerações – presentes e futuras –, que não terão nem condições de disputar a xepa da feira para sua sobrevivência imediata, enquanto poucos reinarão no mundo da ostentação vazia.
Além de seu impacto social imediato e futuro, a reforma da Previdência proposta pelo atual governo em nome da austeridade fiscal cobrará um alto preço de toda a sociedade e demandará décadas de reconstrução de tudo o que vem sendo desconstruído na área social, com sucessivas e rápidas penadas. Talvez porque o atual governo, tendo o (caro) apoio do Legislativo e na confusão e embaralhamento dos três poderes, possa dispensar a sociedade. E assim, embora institucionalmente democrático, seu autoritarismo tem espaço para criminalizar a sociedade, sobretudo aqueles segmentos que tiveram seu aprendizado na dura luta pela conquista de seus direitos básicos, direitos esses cada vez mais ameaçados.
*Amélia Cohn é professora do mestrado em Direito da Saúde (Unisanta).
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 115 – fevereiro de 2017}