Um caminho para o Brasil em tempos de pandemia
O cenário atual exige que medidas de combate aos efeitos da crise sejam radicais
A crise sanitária pela qual atravessa o país tem tido repercussões socioeconômicas dramáticas, ao paralisar diversas atividades, destruir postos de trabalho em massa e desestabilizar os fluxos de geração de renda na economia, de fundamental importância para a sobrevivência de muitos brasileiros que dependem da informalidade para garantir o seu sustento e de suas famílias.

O cenário atual exige que medidas de combate aos efeitos da crise sejam radicais. A intensidade de proliferação do vírus e o momento de descoberta da vacina é que deverão colocar os limites à política econômica a ser adotada, pois são esses fatores que moldarão e condicionarão o atual ciclo econômico. Já é possível perceber que os efeitos econômicos, sociais, psicológicos e comportamentais herdados dessa crise sanitária deverão alterar modos de comportamento social, hábitos de consumo e formas de organização do trabalho e da produção, devendo, então, destruir ou remodelar a forma de atuação de diversos setores de atividades e criar outros.
Os desafios são enormes para as forças democráticas e para as lideranças políticas que têm responsabilidade com o futuro do país. Entre estes desafios incluem-se os esforços políticos e institucionais para a implementação de políticas públicas que possam compatibilizar-se com a “nova” economia e a nova sociedade que virão, passados os traumas e dificuldades dessa crise sanitária, mesmo após o eventual desenvolvimento da vacina. Não há um modelo já definido e acabado sobre como serão estas políticas públicas. Daí a necessidade de abrirmos o debate.
Por isso, sugerimos aqui quatro medidas a serem adotadas já, agora, durante a pandemia, mas também depois dela. Primeiro, a criação de uma Renda Básica de Cidadania, com critérios definidos pelo Congresso Nacional, mas, por definição, na forma de transferências perenes (ou, pelo menos, de longa duração), sem contrapartida e com valores mais expressivos do que alguns programas de transferência de renda já existentes (como o Bolsa Família, por exemplo). Os efeitos positivos da iniciativa são inúmeros, como a redução da desigualdade e da pobreza, o aumento do poder de barganha de grupos com inserções mais vulneráveis no mercado de trabalho, e a introdução de um estabilizador automático dos ciclos econômicos.
Outra medida que julgamos importante é a ampliação e a consolidação de uma cadeia produtiva do setor de Saúde, que além do seu evidente caráter estratégico, tem ainda o condão de gerar muitos postos de trabalho de melhor qualidade e movimentar um conjunto expressivo de setores de atividade, além de aliviar as contas externas brasileiras, dado que o setor atualmente conta com elevado coeficiente de importações. Esta crise pandêmica reforça o caráter estratégico da cadeia produtiva do setor de Saúde, uma vez que os países que possuem os produtos e os equipamentos produzidos pelo setor muitas vezes não estão dispostos a exportar, seja por questões de mercado ou mesmo por motivos políticos.
A terceira medida que sugerimos é um pacote de investimentos em infraestrutura, de tal forma que o setor de construção civil aja como um poderoso dínamo para recuperar a economia pós-pandemia. Este pacote deveria começar pelo mais simples e óbvio: a retomada de obras paradas, seja pela Lava-Jato ou pela austeridade fiscal do governo federal, que vem sendo adotada de forma mais intensa desde o segundo mandato de Dilma Rousseff, e ainda mais radicalmente a partir da posse de Michel Temer. Além disso, seria necessário elaborar uma nova carteira de obras, a começar por obras de saneamento básico, o que potencializaria os eventuais resultados obtidos na área de Saúde Pública. Como fatores positivos adicionais de um pacote de investimentos em construção civil podemos destacar que o setor exibe alta propensão a criar empregos e um significativo efeito multiplicador sobre a economia, pois possui um elevado poder de encadeamento com outras atividades econômicas, e assim, de fortalecimento da demanda em outros setores e de robustecimento do mercado interno. Adicionalmente, deve-se registrar que as atividades de construção civil têm baixo percentual de importações, o que significa, além de promover o mercado interno, não executar pressão sobre o balanço de pagamentos.
Por fim, mas não menos importante, sugerimos a criação de uma carreira federal de médicos e médicas), enfermeiros e enfermeiras, fisioterapeutas, dentistas e psicólogos e psicológas, com o escalonamento de uma carreira em que os profissionais iniciassem em municípios de menor porte, com salários iniciais convidativos, e, paulatinamente, teriam progressões passando também a atuar em novas localidades, após certo tempo de serviço, até atingir o topo da carreira, em cidades maiores, caso desejassem. Esta carreira deveria conjugar salários, dimensão da jornada de trabalho, tempo para atualização em estudos e treinamento e horizonte convidativo para aposentadoria. Tal carreira profissional de Estado deveria ser constituída de forma articulada com as universidades federais, estaduais e confessionais de todo o país, de tal maneira que o Ministério da Educação e o da Saúde atuassem em sintonia. Universidades públicas que aumentassem o número de vagas em seus cursos de Medicina, Enfermagem e Psicologia poderiam ser premiadas, segundo critérios a serem definidos em conjunto com o Conselho Federal de Medicina, os demais Conselhos Federais profissionais e outros órgãos da sociedade civil, de tal forma que a ampliação do número de vagas nas referidas áreas fosse feita com garantia de investimentos e de forma a preservar (ou incrementar) a qualidade dos cursos inclusive respeitando as características demográficas, geográficas e epidemiológicas de cada região do país.
Concluindo, entendemos que esta crise pode se transformar em uma oportunidade para se refletir sobre outra forma de fazer política econômica e de desenhar políticas públicas no Brasil, independentemente da descoberta de uma vacina ou de pelo menos um remédio que possa mitigar os problemas decorrentes da contaminação pelo novo coronavírus.
No Brasil, crescem as vozes de economistas liberais cultos que estão a alterar seus discursos diante da realidade que se impõe. Os ensinamentos tragicamente evidenciados pelos anos de esvaziamento dos gastos sociais e mesmo de “satanização” dos gastos públicos mostram a gravidade da situação atual e dão margem à esperança de uma nova forma de se pensar a Economia e, em especial, as políticas públicas, que devem ser não apenas formas de “socorro aos mais pobres” mas também parte de uma engrenagem através da qual estas políticas façam parte de um novo padrão de acumulação e crescimento da atividade econômica em bases sustentáveis em termos sociais e ambientais.
Desta forma é que devem ser encaradas as nossas propostas de adoção de um robusto Programa de Renda Básica de Cidadania, do fortalecimento da cadeia de produção do setor de Saúde, de um pacote de investimentos públicos em infraestrutura e da criação da carreira federal de profissionais da área de Saúde. A opção por concentrar as ações na área de Saúde é mais do que a obviedade parece indicar, no auge da crise pandêmica. Mais do que a questão da Saúde Pública em si, entendemos que os esforços nas atividades econômicas relacionadas a esta área têm um efeito econômico importante, tanto para a recuperação econômica como também para a redução das desigualdades socioeconômicas.
Por fim, mas não menos importante, esta crise revela os efeitos perversos, em suas múltiplas dimensões, da enorme desigualdade social que infelizmente assola o nosso país e o distingue, negativamente, no cenário internacional. Ainda são precários os dados sobre a manifestação da doença (números de infectados, número de mortes etc.), mas é bem possível que, num futuro próximo, cheguemos à conclusão de que a condição social seja mais determinante, como “fator de risco”, do que a idade das pessoas ou as chamadas “comorbidades” de cada indivíduo. Que a nova forma de pensar e executar as políticas econômicas e as políticas públicas deem conta de enfrentar a nossa mais dramática “comorbidade”, a desigualdade socioeconômica.
*Este ensaio reproduz parcialmente reflexões que estarão presentes em capítulo do livro “Qual o Caminho do Brasil? instituições, cultura e política no século XXI”, organizado por Maria Alice Costa e a ser publicado pela Editora Appris.
Fernando Augusto Mansor de Mattos é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tiago Oliveira é economista e pesquisador de pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.