Um golpe mortal no bem-estar social
Aproveitar-se da cooperação econômica no interior da União Europeia para acelerar a dissolução das solidariedades nacionais: e se o sonho dos burocratas de Bruxelas se tornasse realidade?Frédéric Panier
Enquanto manifestantes protestavam contra um novo acordo de livre-comércio entre a União Europeia e Washington,1 os chefes de Estado e de governo europeus, reunidos em Bruxelas nos dias 19 e 20 de dezembro de 2013, avaliavam a aplicação de uma nova ferramenta: os acordos de natureza contratual, firmados entre a Comissão Europeia e os Estados-membros. Uma vez colocado em prática, o dispositivo poderia ser a mais poderosa arma já confiada às instituições europeias para desmantelar o Estado de bem-estar social.
Embora a medida ainda esteja em discussão, o presidente do Partido Socialista Europeu (PSE), Sergei Stanishev, garante que ela poderia “suprimir as disposições sociais em todos os Estados-membros, um após o outro, medida após medida”.2 Temendo uma explosão de euroceticismo caso a Europa seja autorizada a intrometer-se nos Estados para realizar reformas estruturais, Guy Verhofstadt, líder dos liberais no Parlamento Europeu, declarou, de modo lapidar, que o sistema era o anúncio da “morte da Europa”.3
Também conhecidos pelo nome de instrumentos de convergência e competitividade (ICC), os acordos contratuais assentam sobre um princípio simples: em troca de incentivos financeiros, os Estados europeus seriam convidados a assinar contratos de reformas macroeconômicas com a comissão. Esses compromissos abrangeriam a área social, econômica ou fiscal, independentemente das competências das instituições europeias. Assim, dadas as prioridades atuais da Comissão Europeia, podemos facilmente imaginar que a concessão de “benefícios financeiros” possa estar condicionada à supressão de medidas de proteção ao emprego, cortes nas despesas sociais ou presentes fiscais para as empresas…
Até o momento, as competências sociais, econômicas e fiscais permanecem em grande parte sujeitas à regra da unanimidade dos 28 governos, o que freia a aplicação de reformas estruturais. A intervenção das instituições europeias muitas vezes se limita a simples recomendações que, com muita frequência, não são seguidas. Em preparação para a cúpula de dezembro, Jörg Asmussen, membro do Conselho de Governadores do Banco Central Europeu (BCE), lamentava que “apenas 10% das recomendações da comissão [tinham] sido postas em prática até então pelos Estados-membros”.4 Para seus promotores, em especial o governo alemão e seus aliados, as reformas estruturais não avançam nem suficientemente depressa nem suficientemente longe: é preciso ganhar mais velocidade.
Os “arranjos” parecem diretamente inspirados nos empréstimos condicionados do Fundo Monetário Internacional (FMI), que obrigaram muitos países em desenvolvimento a abrir sua economia. O método já foi usado pela Troika (BCE, FMI e Comissão Europeia) no contexto da “ajuda” a países encurralados: Grécia, Chipre e Portugal, principalmente, submeteram-se a grandes programas de privatização. Assim, em breve será possível estender os “benefícios” dessa estratégia a qualquer Estado europeu, inclusive fora de situações de crise. A Comissão Europeia pode até imaginar um momento em que sua nova ferramenta seja imposta a todos os países da zona do euro…
Falta entrar em acordo sobre os “benefícios financeiros” que seriam concedidos em troca. Na cúpula de dezembro, os dirigentes europeus não chegaram a um acordo sobre o assunto. Originalmente, a comissão propôs criar um fundo alimentado por novas contribuições dos Estados-membros ou pelo produto das futuras taxas europeias, em especial a taxa sobre transações financeiras – taxar os mercados financeiros para liberalizar a economia: uma ideia brilhante… Mas um documento interno da comissão, que veio à tona pouco antes da cúpula,5 indica que os dirigentes europeus parecem estar agora trabalhando em outra direção: empréstimos europeus com taxas preferenciais, ou seja, uma primeira aplicação do mecanismo de mutualização das dívidas nacionais exigido desde o início da crise pelos países em dificuldade. A emissão de empréstimos públicos europeus permitiria aos países mais fracos tomar dinheiro emprestado a taxas de juros (menos elevadas) que beneficiam as economias mais robustas da União Europeia.
Pode-se ver o poderoso efeito alavanca que esse mecanismo daria à Comissão Europeia. Para os países em questão, a escolha seria a seguinte: prosseguir com as reformas exigidas pela comissão ou desistir de recursos financeiros valiosos. Aos olhos dos dirigentes italianos e espanhóis, que pagam taxas aproximadamente 2% superiores às cobradas da Alemanha, o acesso a empréstimos europeus resultaria em economias substanciais, colocando a comissão em uma posição de força para impor seus pontos de vista. Enquanto a mutualização das dívidas públicas tinha a vocação de dar uma lufada de ar fresco aos Estados em dificuldade, os arranjos contratuais ameaçam transformar os empréstimos europeus num novo modo de domesticação dos governos nacionais.
Portanto, associado a importantes recursos financeiros, o novo arsenal poderia ameaçar mais ainda os mecanismos de solidariedade nacionais do que o próprio tratado orçamentário. Apesar da camisa de força que é, este último deixa os Estados-membros bastante responsáveis pelos meios empregados para respeitar a trajetória orçamentária que devem seguir. Já os arranjos permitiriam à Comissão Europeia exercer uma pressão inédita sobre os recalcitrantes.
A cúpula de dezembro foi encerrada com um acordo de princípio. A decisão sobre o restante do tema foi adiada para as próximas reuniões, e o presidente do Conselho Europeu deve apresentar um relatório sobre a questão em outubro de 2014. Com o apoio do presidente do conselho, a chanceler alemã Angela Merkel prometeu acompanhar o andamento desse projeto “milímetro por milímetro”.6
A proposta gerou forte ceticismo em alguns Estados europeus, incluindo aliados tradicionais da Alemanha, e as resistências no Conselho Europeu continuam fortes. Portanto, uma mobilização social, mesmo moderada, encontraria espaço internamente para impedir a aprovação do projeto (ou pelo menos livrá-lo de seus aspectos mais problemáticos). Assim, a campanha da eleição que definirá o novo Parlamento Europeu, marcada para os dias 22 a 25 de maio de 2014, oferece uma rara oportunidade de ação às esquerdas europeias, que, reagindo com excessiva frequência a posteriori, acumulam derrotas desde o início da crise iniciada em 2007.
* Frédéric Panier é economista da Universidade Stanford (Califórnia, Estados Unidos).