Um governo de juízes?
Enquanto o general e ex-presidente Pervez Musharraf era acusado de traição por impor um estado de exceção em 2007, a Suprema Corte do Paquistão consolidava seus poderes em todas as direções. Porém, após estabelecer o estado de direito, ela se arroga cada vez mais prerrogativas e preocupa os democratasChristophe Jaffrelot
Habituado a golpes militares de Estado, o Paquistão viu um Parlamento democraticamente eleito chegar ao término do mandato e ser substituído por outro este ano: algo inédito em sua história. No entanto, o retorno ao estado de direito tinha se construído anteriormente não tanto pelos partidos políticos, mas pelos juristas, que haviam levado o general Pervez Musharraf, autor de um golpe em 1999, a realizar eleições em 2007-2008. Entre eles, o presidente da Suprema Corte, Iftikhar Mohammed Chaudhry, merece menção especial. Nomeado para o cargo por Musharraf em 2005, ele criou uma coluna vertebral para um aparelho judiciário que, no passado, validou repetidas vezes todo tipo de atentado ao direito e viveu na sombra confortável do poder.
De início, Chaudhry estabeleceu sua reputação com uma questão envolvendo dinheiro: o projeto de privatização da Pakistan Steel Mills, que o Estado estava pronto a ceder a um preço aviltado a um parente do primeiro-ministro da época, Shaukat Aziz. Mas foi com aquilo que se costuma chamar de “os casos de desaparecidos” que ele alcançou a fama. A Suprema Corte se preocupou verdadeiramente com os nacionalistas balúchis vítimas de execuções extrajudiciais e se interessou pelos islamitas liquidados da mesma maneira ou entregues à CIA “a preço de ouro”.1
O ativismo de Chaudhry irritou de tal forma Musharraf que, em março de 2007, este o convocou para forçar sua demissão. Em vão. O general o suspendeu então de suas funções para fazê-lo comparecer diante do Conselho Superior de Justiça (Supreme Judicial Council, SJC) e nomear um novo chefe da Suprema Corte. Mas os advogados se mobilizaram em defesa do magistrado deposto. As associações de membros da justiça desempenharam papel importante, e seus participantes não hesitaram em sair às ruas, com o risco de serem maltratados pela polícia.
Imunidade presidencial contestada
Algumas semanas mais tarde, em 5 de maio, Chaudhry foi a Lahore a convite da associação de membros da justiça daquela cidade. Partindo de Islamabad, seu cortejo, composto de 2 mil carros, levou 24 horas para percorrer o trajeto, normalmente seis vezes menos demorado. Ele foi recebido por 50 mil pessoas: um movimento único nos anais do Paquistão. Nesse momento, os grandes partidos de oposição, o Partido do Povo Paquistanês (PPP), de Benazir Bhutto, e a Liga Muçulmana do Paquistão-Nawaz (PML-N), de Nawaz Sharif, estavam privados de seus dirigentes, ambos no exílio – eles só puderam voltar no final de 2007, graças ao movimento dos homens da lei. Preenchendo um vazio, Chaudhry e os advogados transpuseram então uma etapa decisiva na afirmação do Poder Judiciário. Para o bem e para o mal.
Uma vez iniciada a transição democrática pelas eleições gerais de fevereiro de 2008, os juízes, contra qualquer expectativa, retomaram o movimento: o PPP, que tinha ganhado a eleição, não se decidia a recolocar Chaudhry em suas funções. O novo homem forte, Asif Ali Zardari, viúvo de Benazir Bhutto – assassinada em dezembro de 2007 –, temia que o ativismo do magistrado se voltasse contra ele. No entanto, diante da pressão das ruas, onde se mobilizavam os advogados, a oposição e seu aliado circunstancial, Sharif, ele foi forçado a ceder em 2009.
Recolocado no cargo, o juiz concentrou seus esforços nos casos de corrupção que envolviam o presidente Zardari. A corte pediu ao primeiro-ministro Yussuf Raza Gilani que escrevesse às autoridades da Suíça a fim de que elas retomassem a investigação com base nas contas suíças da família Zardari-Bhutto, provavelmente alimentadas por substanciais gratificações. Gilani respondeu que não faria nada a respeito, posto que Zardari desfrutava imunidade presidencial. Mas esta foi contestada pela Suprema Corte, e Gilani foi condenado em 26 de abril de 2012 por ter-lhe desobedecido. A determinação da Suprema Corte o levou finalmente à demissão em 19 de junho. Não somente o PPP, mas também certos juristas viram nisso um “golpe de Estado judiciário”, que minava a democratização em curso.
Contudo, os políticos não foram o único alvo de Chaudhry, que notavelmente reabriu um velho dossiê que questionava o ex-chefe do Exército, Mirza Aslam Beg, e o ex-diretor dos serviços secretos (Inter Services Intelligence, ISI), Asad Durrani, em um caso de financiamento oculto dos opositores de Benazir Bhutto em 1990 – entre os quais Sharif. Beg e Durrani lhes teriam distribuído milhões de rúpias. O caso tinha se tornado público desde meados dos anos 1990, mas o presidente da Suprema Corte da época não tivera condições de prosseguir no exame do dossiê após o retorno ao poder, em 1997, de Sharif, que o forçara a se demitir.
Em março de 2012, a Suprema Corte retomou a investigação. Ela chegou a forçar o comparecimento dos dois principais protagonistas. Enquanto Gilani tinha se sentido humilhado ao ser convocado pelos juízes em duas ocasiões, Beg comunicou com veemência à corte, em audiência, que estava “exasperado”, antes de ser firmemente convidado a mudar de tom. Ele negou as acusações em bloco. Durrani, em contrapartida, forneceu novos detalhes quanto à repartição desses fundos ocultos.
Nunca a justiça tinha exposto de tal forma as práticas fraudulentas do Exército. A decisão da Suprema Corte chegou a ser tornada pública, enquanto ela adotava um tom inédito para falar da instituição militar. Lia-se na sentença que os generais Aslam Beg e Asad Durrani tinham “agido violando a Constituição” e “manchado a reputação do Paquistão, de seu Exército e de seus serviços secretos aos olhos da nação”.2
Quanto a Musharraf, depois de ter deixado o Paquistão no dia seguinte à sua demissão, ele foi objeto de quatro queixas pela detenção de juízes – entre eles Chaudhry –, em seguida à imposição do estado de exceção em novembro de 2007; por sua responsabilidade no assassinato de Benazir Bhutto e no de Akbar Khan Bugti, o veterano dos nacionalistas balúchis; e enfim pelo ataque à Mesquita Vermelha, onde, em 2007, haviam se refugiado os islamitas (numa operação com uma centena de vítimas).
Humilhação sem precedentes para o Exército
Ao fim de quatro anos de exílio – depois de Benazir Bhutto e de Nawaz Sharif, que ele havia mandado para fora do país, agora cabia a ele partir –, o ex-general-presidente voltou em março de 2013 para concorrer nas eleições, apesar dessas acusações. Porém, sua candidatura foi rejeitada sob um pretexto ou outro pelos representantes da Comissão Eleitoral nas quatro circunscrições onde ele desejava concorrer. Musharraf foi então detido e colocado em prisão domiciliar. Depois, ele conseguiu ser libertado provisoriamente em cada um dos quatro casos que o envolviam. Mas, mesmo que esses processos não tenham tido sucesso – o general pode acabar por se retirar do jogo político ou retomar o caminho do exílio –, o tratamento que lhe foi infligido constitui desde já uma humilhação sem precedentes para o Exército.
No entanto, a ação da Suprema Corte rapidamente irritou muitas figuras antigas do movimento dos juristas. A primeira linha de ruptura foi política: os advogados próximos ao PPP foram os primeiros a mostrar suas reservas quando seu partido foi atacado. Os homens da lei partidários do Pakistan Tehrik-e-Insaf I (PTI), o partido de Imran Khan, o ex-campeão de críquete que chegou em segundo lugar nas últimas eleições,3 continuaram por sua vez a apoiar Chaudhry.
Para além desse rompimento ligado às afiliações políticas, muitos dirigentes e simpatizantes do movimento dos juristas desaprovaram a maneira como a Suprema Corte tratava um governo oriundo de eleições democráticas. Desde 2012, a presidente da Associação dos Membros da Justiça da Suprema Corte. Asma Jahangir, cofundadora da Comissão dos Direitos Humanos do Paquistão, uma ONG das mais respeitadas, preocupou-se com a maneira como a Suprema Corte minava a autoridade parlamentar. Quando a sorte de Gilani foi selada, em 8 de agosto de 2012, ela falou de “dia negro” para a justiça paquistanesa, antes de cutucar: “Queremos uma justiça forte, não uma justiça poderosa”.4
Em 27 de agosto do mesmo ano, a Suprema Corte concedeu um prazo suplementar para que o substituto de Gilani, Raja Pervaiz Ashraf, escrevesse sua carta às autoridades suíças. Por fim, a mensagem nunca foi enviada, e a corte preferiu relaxar à pressão, sem dúvida para não interferir no processo eleitoral que se aproximava. Mas a imagem de Chaudhry como populista, e não mais como vítima ou salvador, predomina atualmente nos comentários dos editorialistas paquistaneses.
Uma das reservas expressas pelo setor de inteligência em relação a ele tem a ver também com suas ligações com certos meios islâmicos. Estas se juntam em torno da questão dos desaparecidos, que mobilizou ex-militares dos ISI. Um deles, Khalid Khawaja, criou uma ONG batizada de Human Rights Defence Council, que, em novembro de 2006, organizou manifestações diante da Suprema Corte. Em resposta, Chaudhry ordenou uma investigação, que resultou, em agosto de 2007, quando ele estava suspenso, na libertação de islamitas detidos ilegalmente pelos ISI.
Mas até mesmo alguns juízes se preocupam hoje. Em agosto, a associação dos membros da justiça de Lahore, cadinho da mobilização em seu favor cinco anos antes, denunciou a maneira como o presidente da Suprema Corte abusava da noção de “ultraje à corte” em relação aos políticos, vendo aí um entrave à liberdade de expressão. Além disso, criticou a maneira pela qual ele sabotava a autoridade da Comissão Eleitoral. Encarregada de organizar todas as votações, ela havia fixado a data da eleição presidencial para o começo de agosto. Como isso não lhe convinha, o primeiro-ministro Sharif, vencedor das eleições gerais da última primavera paquistanesa, embargou a Suprema Corte. Esta decidiu adiantar a votação em alguns dias, em lugar de validar o calendário da Comissão Eleitoral ou de se declarar incompetente. A decisão levou três partidos, entre eles o PPP, a boicotar a votação, e o chefe da Comissão Eleitoral, um juiz aposentado, a pedir demissão.5
É verdade que Chaudhry deu dignidade a um aparelho judiciário que no passado havia se colocado muitas vezes a serviço dos dirigentes civis ou militares. Ele até chegou, pela primeira vez, a atacar o Exército, através de alguns de seus antigos chefes. Mas não pôde evitar abusar de seu poder – um pequeno defeito que muitos chefes do Executivo paquistanês levaram a seu mais alto grau. Assim, Chaudhry abriu mão de seus antigos apoios mais sinceros no seio do ambiente judiciário.
Ele vai atingir a idade da aposentadoria nas próximas semanas. Ninguém duvida que utilizará o tempo que lhe resta para impulsionar sua vantagem nos assuntos em curso e colocar seus fiéis nos postos-chave do aparelho judiciário. Além da nomeação do próximo chefe do Exército prevista para antes do fim de 2013, a do novo presidente da Suprema Corte deve ser acompanhada com uma atenção especial.
Christophe Jaffrelot é Pesquisador do Ceri-Sciences Po/CNRS e autor do ensaio Le syndrome pakistanais [A síndrome paquistanesa], Fayard, Paris, 2013.