Um limite aos rendimentos
Se a pobreza provoca uma indignação unânime – é preciso combatê-la para tornar o mundo mais justo –, a fortuna raramente é percebida como um problema. Mas, com a tempestade financeira, a ligação entre ambas novamente emergiu. Assim como uma ideia surgida nos EUA há mais de um século: limitar a renda dos mais ricosSam Pizzigati
Entre as reivindicações dos militantes do movimento Occupy Wall Street, há uma que busca suas raízes na história dos Estados Unidos: a instauração de um teto para os altos rendimentos. Desde a época de ouro, após a Guerra Civil, as grandes mobilizações a favor da justiça econômica sempre formularam essa solicitação, hoje chamada de “salário máximo”. Essa fórmula não engloba apenas o salário, mas a totalidade dos rendimentos anuais; e permite criar uma relação de familiaridade com a noção de “salário mínimo”.
Foi o filósofo Félix Adler – conhecido sobretudo por ter fundado e presidido, no início do século XX, o National Child Labor Committee – que, em primeiro lugar, fez essa reivindicação. Segundo ele, a exploração de trabalhadores, jovens e velhos, gera imensas fortunas privadas que exercem uma “influência corruptora” sobre a vida política norte-americana. Para limitar essa influência, ele propôs introduzir um sistema fiscal fortemente progressivo podendo atingir, além de um determinado patamar, 100% da renda. Essa taxa deixaria ao indivíduo “tudo o que pode realmente servir à realização de uma vida humana” e lhe tiraria “o que é destinado à ostentação, ao orgulho, ao poder”.1
Se o New York Times deu ao apelo de Adler uma grande atenção, a noção de “salário máximo” não conheceu uma tradução legislativa antes da Primeira Guerra Mundial. A fim de financiar o esforço do conflito, os progressistas propuseram então taxar em 100% os rendimentos superiores a US$ 100 mil. O grupo que apoiava essa medida, o American Committee on Finance War, reuniu uma rede de 2 mil voluntários em todo país. Publicou nos jornais cupons destacáveis que os leitores podiam assinar, comprometendo-se assim “a trabalhar para a promulgação rápida de uma lei” sobre a limitação dos rendimentos: um “recrutamento da riqueza”, segundo as palavras do Comitê. “Se o Estado tem o direito de confiscar a vida de um homem para satisfazer o interesse geral, então ele deve certamente poder requisitar a fortuna de qualquer um pelas mesmas razões”, declarou seu presidente, o advogado Amos Pinchot, diante do Congresso, antes de ressaltar que 2% dos norte-americanos detinham 65% do total das riquezas do país. Pinchot e seus colegas progressistas não obtiveram ganho de causa, mas sua campanha modificou profundamente o sistema fiscal norte-americano: as taxas máximas sobre os rendimentos que superavam US$ 1 milhão passaram de 7% em 1914 para 77% em 1918.
O “Medo Vermelho”2 que seguiu a Primeira Guerra Mundial destruiu as esperanças de uma América mais igualitária. De volta ao poder, a direita fez novamente dos Estados Unidos uma nação acolhedora para os plutocratas. Os anos 1920 assistiram a um processo rápido de concentração da riqueza. No Congresso, democratas e republicanos lutavam para obter uma diminuição das taxas sobre os altos rendimentos. Em 1925, as taxas máximas de imposto eram de 25%.
Mas a crise de 1929, que levou a economia à beira da ruína, mudou novamente a situação. Em 1933, um quarto dos trabalhadores norte-americanos estava desempregado. A reivindicação de um teto para os rendimentos reapareceu. Na Luiziânia, o jovem e entusiasta senador, Huey P. Long, lançou o movimento “Dividamos nossa riqueza”, que se disseminou pelo país. Propôs a instauração de um teto de US$ 1 milhão para os rendimentos anuais individuais – o que representaria mais de US$ 15 milhões em 2010 – e de US$ 8 milhões para o patrimônio.
Em junho de 1935, o presidente Franklin Roosevelt escandalizou a América afortunada ao anunciar sua intenção de “fazer os ricos pagarem” para resolver a crise. Criou então uma taxa de 79% sobre os rendimentos superiores a US$ 5 milhões (cerca de US$ 78 milhões em 2010). Essa decisão – e o assassinato de Long em agosto de 1935 – afastou por um tempo a ideia do rendimento máximo. Mas esta ressurgiu em abril de 1942. Roosevelt, inspirado por vários sindicatos, propôs criar um rendimento máximo em tempos de guerra, fixado em US$ 25 mil por ano (cerca de US$ 350 mil em 2010). O Congresso não foi tão longe. Em 1944, fixou a taxa máxima de imposto dos rendimentos superiores a US$ 200 mil em um nível sem precedentes: 94%.
No decorrer das duas décadas seguintes – um período de grande prosperidade para a classe média norte-americana –, a taxa máxima do imposto girou em torno dos 90%, antes de cair para menos de 70% durante a presidência de Lyndon Johnson (novembro de 1963 a janeiro de 1969). Sob Ronald Reagan, essa taxa diminuiu ainda mais, atingindo os 50% em 1981, depois 28% em 1988. Hoje, subiu para 35%. Já é demais, segundo algumas pessoas. Mas, felizmente para elas, a maior parte das rendas declaradas pelos mais ricos provém dos ganhos de capital, dos lucros realizados graças à compra e à venda de ações, de obrigações e de outros ativos, os quais são taxados a apenas 15%. Uma estatística resume essa evolução: em 2008, os quatrocentos contribuintes mais ricos embolsaram US$ 270,5 milhões cada um, e pagaram 18,1% de imposto ao governo federal; em 1955, haviam ganho US$ 13,3 milhões (em dólares constantes, levando em conta a inflação) e pago 51,2% de impostos.
Mudança de alvo
O debate se deslocou. Hoje, os herdeiros de Adler, Pinchot e Long se concentram mais nas empresas do que nos indivíduos. Segundo eles, os diferentes níveis do poder (local, estadual e federal) deveriam tirar proveito do fato de que as companhias privadas recebem dinheiro público – sob a forma de encomendas do Estado, subvenções para o “desenvolvimento econômico” ou vantagens fiscais – para exigir delas novas políticas salariais. Nenhum dólar proveniente dos impostos deveria ir para os caixas de empresas que pagam a seus dirigentes dez, vinte, até cinquenta vezes mais que a seus empregados.3
O objetivo final? Um verdadeiro “salário máximo”, indexado sobre o salário mínimo, que tomaria a forma de um imposto fortemente progressivo, assim como Adler havia proposto há um século. O máximo seria definido como um múltiplo preciso do mínimo e qualquer rendimento superior a dez ou 25 vezes esse mínimo estaria sujeito a um imposto de 100%. Essa disposição encorajaria e alimentaria quase imediatamente uma forma de economia solidária: pela primeira vez, os mais ricos teriam um interesse pessoal e direto sobre o bem-estar dos menos ricos.
Antes do movimento Occupy Wall Street, tal perspectiva pareceria um fantasma político. Não agora. Sinal dos tempos: dois eminentes acadêmicos norte-americanos, um jurista de Yale e o outro economista de Berkeley, acabaram de publicar no New York Times uma defesa convincente de uma reforma fiscal que limitaria o rendimento médio dos 1% de norte-americanos mais ricos a 36 vezes o rendimento médio.4 Nós consideramos hoje o salário mínimo uma conquista social. Por que não o salário máximo?
*Sam Pizzigati é pesquisador associado do Institute for Policy Studies (Washington DC) e editor do semanário Too Much. Autor de The Rich Dónt Always Win: the forgotten triumph over Ploutocracy, 1900 – 1970, that created the classic American middle class `{ Os ricos não vencem smpre: o esquecido triunfo sobre a plutocracia, 1900-1970, que criou a classe média americana}, Seven Stories Press, Nova York, com lançamento previsto para o final de 2012.