Um lugar que chora
A expressão “terra arrasada” não parou de vir e voltar à minha cabeça. Essa expressão descreve um lugar, ou alguns lugares, onde tudo, tanto no sentido material como imaterial, foi decapado, removido, varrido, assoprado, desviado, tudo, exceto a pobre terra palpável
Alguns dias depois do nosso retorno de onde acreditávamos ser, até recentemente, o futuro Estado da Palestina, e que hoje é a maior prisão (Gaza) e a maior sala de espera do mundo (Cisjordânia), eu tive um sonho.
Eu estava sozinho, em pé, despido até a cintura, num deserto de arenito. Depois a mão de alguém apanhava no chão um punhado de terra e jogava no meu peito. Esse gesto estava marcado por consideração, e não agressividade. Antes de me atingir, a terra ou o cascalho se transformavam em pedaços de tecidos rasgados, provavelmente de algodão, que se enrolavam, como faixas em torno do meu dorso. Depois, esses pedaços de tecido se transformavam novamente e viravam palavras, frases. Escritas não por mim, mas pelo lugar.
Ao me lembrar desse sonho, a expressão “terra arrasada” não parou de vir e voltar à minha cabeça. Essa expressão descreve um lugar, ou alguns lugares, onde tudo, tanto no sentido material como imaterial, foi decapado, removido, varrido, assoprado, desviado, tudo, exceto a pobre terra palpável.
Existe na periferia oeste de Ramallah uma pequena colina de nome Al Rabweh, ao final da rua Tóquio. O poeta Mahmoud Darwish está enterrado perto do topo da colina. Não é um cemitério.
É nesse centro que Darwish leu alguns de seus poemas pela última vez – apesar de ninguém supor que fosse aquela a última vez. O que significa a palavra última nos momentos de desolação?
Fomos visitar seu túmulo. Há uma pedra sepulcral. A terra cavada ainda estava nua, e as pessoas, em luto, deixaram ali pequenos ramos de trigo verde – como ele sugere em um de seus poemas. Havia também anêmonas vermelhas, pedaços de papel, fotos.
Ele queria ser enterrado na Galileia, onde tinha nascido e onde ainda vive sua mãe, mas os israelenses o proibiram.
No momento do enterro, dezenas de milhares de pessoas se reuniram aqui, em Al Rabweh. Sua mãe, de 96 anos, falou para a multidão: “Ele é o filho de todos vocês”.
Exatamente em qual arena falamos quando evocamos entes queridos que acabam de morrer ou ser assassinados? Nossas palavras parecem ressoar num momento presente, mais presente que aqueles que vivemos normalmente. Um momento comparável ao de quando fazemos amor, estamos diante de um perigo eminente, tomamos uma decisão irrevogável, dançamos um tango. Não é na arena do eterno que ressoam nossas palavras de luto, mas poderia ser num pequeno alpendre dessa arena.
Sobre a colina agora desertada, eu tentava me lembrar da voz de Darwish. Ele tinha a voz calma de um apicultor: “Uma caixa de pedra / onde os mortos se movem na argila seca / como abelhas cativas no raio de mel de uma colmeia / e a cada vez que o cerco se fecha / elas desertam as flores e fazem uma greve de fome / e pedem ao mar para indicar a saída de emergência.”
Lembrando-me de sua voz, senti a necessidade de me sentar na terra palpável, no pasto verde. Foi o que fiz.
Em árabe, Al Rabweh significa “a colina coberta por pasto verde”. Suas palavras tinham voltado ao lugar de onde vieram. E não há nada além. Um nada compartilhado por quatro milhões de pessoas.
A colina seguinte, a 500 metros dali, é um depósito de lixo. Corvos fazem círculos ao redor. Crianças vasculham o lixo.
Passaram-se os meses, cada um com seu lote de maus presságios e de silêncio.
Agora os desastres estão fluindo juntos para um delta que não tem nome, que só terá um quando os geógrafos que virão mais tarde, muito mais tarde, lhe derem um. Não há nada mais a fazer no momento a não ser tentar andar sobre as águas amargas desse delta sem nome.
Gaza, a maior prisão do mundo, se transforma em abatedouro. Dia e noite, pelo ar, pelo mar e sobre a terra, as Forças de Defesa israelenses lançam bombas de fósforo e obuses, dirigem armas radioativas GBU39 e tiros de metralhadoras a uma população civil de 1,5 milhão de pessoas. O massacre será rapidamente acompanhado por uma peste: a maioria das habitações não tem nem água nem eletricidade, os hospitais carecem de médicos, remédios e geradores. O massacre vem depois de um bloqueio e um estado de sítio.
Vozes cada vez mais numerosas se elevam no mundo para protestar. Mas os governos dos ricos, com sua mídia internacional e o orgulho de suas armas nucleares, asseguram Israel de que irão fechar os olhos em relação ao que as Forças de Defesa estão perpetrando.
“Um lugar que chora entra no nosso sono”, escreveu o poeta curdo Bejan Matur, “um lugar que chora entra no nosso sono e não parte nunca.”
Estou em Ramallah – isso foi há quatro meses – num estacionamento subterrâneo desativado que serve de ateliê para um pequeno grupo de artistas plásticos palestinos, entre eles uma escultora chamada Randa Mdah. Olho uma instalação que ela concebeu e realizou, intitulada “Puppet Theatre” (Teatro de Boneco).
Trata-se de um grande baixo-relevo de 3 x 2 metros, erguido como um muro. Diante dele, no chão, três figuras esculpidas.
O baixo-relevo, composto por ombros, rostos e mãos, foi realizado sobre uma armação de arame, poliéster, fibra de vidro e argila. Suas superfícies são coloridas – verde escuro, marrom e vermelho. A profundidade de seu relevo é mais ou menos a mesma de uma das portas em bronze de Ghiberti para o batistério de Florença, e os traços e perspectivas foram tratados com semelhante maestria. (Eu nunca teria adivinhado que essa artista era tão jovem. Ela tem 29 anos.) O muro do baixo-relevo é como uma “cerca” com o qual a plateia de um teatro se assemelha, quando se vê do palco.
Sobre o palco, diante do muro, erguem-se três personagens em tamanho natural, duas mulheres e um homem. Eles são feitos do mesmo material, mas suas cores são mais pálidas.
Um se encontra ao alcance da mão do público, outro, dois metros mais longe e o terceiro, ainda duas vezes mais distante. Eles usam roupas de todo dia, as que escolheram colocar naquela manhã.
Seus corpos estão amarrados com cordas que pendem de três bastões horizontais suspensos no teto. São marionetes, acionadas por alguém ausente ou invisível.
A multidão de figuras sobre o baixo-relevo olha para o que veem diante delas e torce as mãos. Suas mãos são como galinhas. Impotentes. Elas se torcem porque não podem intervir. As figuras estão em baixo-relevo e não em três dimensões, portanto elas não podem entrar no mundo real, substancial, nem intervir nele. Elas respeitam o silêncio.
Os três personagens sólidos, palpitantes, amarrados às cordas dos condutores invisíveis, são lançados ao chão, primeiro pela cabeça, com os pés no ar. Outra e outra vez, até que suas cabeças se partem. Suas mãos, dorsos, rostos, se convulsionam em agonia. Uma agonia que não tem fim. Nós a vemos a seus pés. Ainda e ainda.
Eu poderia andar entre os espectadores impotentes do baixo-relevo e as vítimas espalhadas pelo chão. Mas não vou. Há uma força nessa obra como eu nunca vi em nenhuma outra. Ela se apropriou do chão sobre o qual se ergue. Ela tornou sagrado o campo entre os espectadores tocados pelo horror e as vítimas agonizantes. Ela transformou o chão de um estacionamento em “terra arrasada”.
Essa obra profetizava a faixa de Gaza hoje.
O túmulo de Mahmoud Dawish na colina de Al Rabweh foi, depois disso, fechado e coberto por uma pirâmide em vidro, seguindo decisões tomadas pela Autoridade Palestina. Não é mais possível sentar no chão perto dele.
Suas palavras, contudo, chegam aos nossos ouvidos e podemos repeti-las.
Tenho um trabalho a fazer sobre / a geografia dos vulcões / da desolação às ruínas / do tempo de Lott ao de Hiroshima / como se eu nunca tivesse vivido / com uma sede que me falta conhecer / talvez Hoje se distanciou / e Ontem se aproximou / então eu tomo a mão de Hoje para andar à margem da história / e evitar o tempo cíclico / com seu caos de cabras da montanha / Como pode meu amanhã ser salvo? / Pela velocidade do tempo eletrônico / ou pela lentidão das minha caravanas do deserto? / Tenho trabalho até o meu fim / como se não fosse ver amanhã / e tenho trabalho para hoje que não está lá / Então escuto / suavemente, suavemente, / o batimento de formiga do meu coração…
*John Berger, romancista inglês, é também poeta, pintor e crítico de arte. Seu último livro lançado no Brasil é Aqui nos encontramos (Ed. Rocco, 2008).