Um nome e um endereço
Há anos, um banco fornece à administração norte-americana seus mais influentes funionários encarrgados principalmente da liberalização dos mercados
Imaginemos um francês não muito castigado pela vida. Ao acordar, ele manda. Uma empregada esfregou os azulejos de seu banheiro e passou suas gravatas. O cheiro do café que sua esposa comprou, preparou e serviu roça suas narinas. Ele o inala e sorri… Algumas horas depois, em seu local de trabalho, as coisas mudam. No momento de entrar no elevador, ele dá passagem para seu diretor. Interiormente, ele se repreende: a conversa que considera dever ter com o chefe evapora. Reencontrando a intimidade de seu escritório, ignora o jovem estagiário que lhe diz bom dia.
No restaurante, nos salões de jogos ou durante a refeição em família, ele se sente todo-poderoso. Quando um policial o para ou o desemprego ameaça, ele volta a ser frágil. Dominados num instante, dominantes no seguinte, como esse senhor, nós encarnamos e sofremos cada vez mais um poder difuso, que emana menos de nossas próprias qualidades do que dos espaços sociais que percorremos. Na cozinha ou na fábrica, na escola ou no tribunal, uma mesma lógica: ambientes distribuindo suas hierarquias internas aos indivíduos que os frequentam. Locais de poder dotando momentaneamente alguns dos poderes do local.
Mas essa constatação não invalida outra: de ministérios aos espaços conjugais, de salões particulares àsredações de grandes jornais, alguns homens (e, numa escala menor, algumas mulheres) dominam mais do que outros. Essa propriedade emanaria de faculdades particulares? Eles chegam a acreditar nisso: “Os privilegiados detestam pensar que são apenas privilegiados”, escreveu o sociólogo norte-americano Charles Wright Mills. “Eles passam rapidamente a se definir como intrinsecamente dignos do que possuem; passam a se considerar uma elite ‘natural’e até, na verdade, a ver seus bens e privilégios como extensões naturais de seu eu superior.”1
Mas os mitos visam menos descrever a realidade do que adaptá-la a certas crenças. Não é sua natureza, mas seu nascimento, sua rede e seu patrimônio que colocaram essas pessoas nos cargos mais eminentes das instituições que estruturam nossas sociedades. Falávamos ontem de “burgueses”, agora estamos mais para “tomadores de decisões”. Apesar disso, eles mudaram realmente?
Capitalismo coletivo
Em 1956, Mills salientava a responsabilidade política desse grupo. Enquanto o mundo curava as feridas da Segunda Guerra Mundial, o intelectual perguntava: o que aconteceu? Seria preciso ler a história como algo “à deriva” e reduzir o conflito a um simples “acidente”? Não, afirmava Mills, existem responsabilidades. O curso dos acontecimentos provém de “decisões humanas” tomadas pelos que “podem realizar suas vontades, mesmo que outros se oponham a isso” – uma “elite do poder”.
Sessenta anos depois, uma crise financeira destrói as sociedades ocidentais. Desemprego, regressão social, pobreza… Essa catástrofe não ceifa vidas, as despedaça. A questão de Mills continua atual. Mas, e sua resposta?
Em 1998, o sociólogo Manuel Castells proclamava que a globalização tinha transformado a situação. “Não há mais, nem sociologicamente nem economicamente, classe dominante”, explicava, sugerindo que, de agora em diante, “um capitalismo coletivo, sem rosto, composto de fluxos financeiros administrados por redes eletrônicas”2 presidiria o destino do mundo. Em suma, uma dominação transnacional e numérica tinha substituído a anterior. “Plural”, o poder teria, dessa forma, se tornado “pluralista”,já que ninguém sonharia em fazer convergir interesses tão distintos quanto os de milhares de “fluxos” que descrevia Castells. E, no entanto…
Os centros do poder
Háanos, um banco fornece à administração norte-americana seus mais influentes funcionários, encarregados principalmente da liberalização dos mercados financeiros. Ele aconselha os governos endividados (como a Grécia, a quem ajuda a maquiar as contas), mas também seus credores. Seus dirigentes precipitaram a crise dos subprimesao inundar seus investidores comtítulos “podres”; depois, garantiram lucros fecundos ao apostar em sua baixa. Esse banco tem um nome – Goldman Sachs – e um endereço – 200 West Street, em Nova York.
Na Europa, uma instituição cujos membros não são eleitos acaba de ser dotada do poder de modificar os orçamentos de países soberanos, com o objetivo de lhes impor o respeito às regras que ela mesma desenvolveu anteriormente. Essa instituição tem um nome – Comissão Europeia – e um endereço – 200, Rua de la Loi, em Bruxelas.
Mas outro poder surge, diferente dos precedentes e com capacidade para derrubá-los. Ele também tem um nome – povo –, quando toma a Bastilha ou a Praça Tahrir. E, neste momento, ele tem apenas um endereço: todos os lugares.