Um novo espírito utópico?
Depois de descrever as grandes transformações da modernidade, Valéry conclui que “dois perigos não cessam de ameaçar o mundo: a ordem e a desordem”Adauto Novaes
O filósofo Francis Wolff começa assim sua conferência no ciclo sobre O novo espírito utópico: “Precisamos de utopias. Elas são para a comunidade aquilo que os sonhos são para os indivíduos. Uma utopia é um refúgio em direção a um ideal irrealizável quando o real parece insuportável. É a aspiração do impossível. Sim, qualquer comunidade, qualquer época, qualquer geração precisa de utopias”. A utopia é isto: seres e imagens sem objetos, ou melhor, aquilo que não existe, mas sem o qual não conseguiríamos viver como humanos nem lutar contra as trevas da realidade social e política. O real hoje é insuportável, todos sabem. Por que, então, a utopia é relegada ao esquecimento e acusada de coisa ilusória e irracional? Tentemos breves respostas.
1. Durante meio milênio (Utopia, de Thomas Morus, foi publicado em 1516), essa bela palavra, que quer dizer “não lugar”, mas também se pode traduzir por eutopia – “lugar da felicidade” –, fez um longo percurso cheio de enigmas. Promessa, esperança, simulação antecipadora, horizonte de nossos desejos, a utopia tem um destino comum: a “severa e lúcida crítica da realidade”. Assim, entendemos por utopia não necessariamente uma ação imediata, uma vez que seu trabalho incessante não se aplica a produzir diretamente a coisa, “mas a produzir aquilo que produzirá a coisa”. É isso que a distingue da ordem e da desordem. Ou melhor, a utopia é ponto de permanente contradição tanto diante da ordem como da desordem do mundo. O fundamento da utopia é, pois, a permanente criação do novo. Mas vemos hoje a construção de certo silêncio não só sobre o desejo utópico como também em torno do seu pensamento. É como nos adverte Miguel Abensour no ensaio O novo espírito utópico: um dos lugares comuns da nova opinião consiste em dizer que quem pensa a democracia deve fazer o luto da utopia; inversamente, quem insiste em pensar a utopia afasta-se da democracia. Nada mais danoso para a política e para o pensamento: “Essa hipotética contradição entre o pensamento do político e o pensamento da utopia faz pouco caso de toda uma tradição da filosofia política moderna; é preciso utopizar a democracia e democratizar a utopia”, escreve Abensour. O ódio da utopia alimenta-se do ódio à emancipação. O pensamento conservador vai além e tenta justificar esse ódio de maneira sinuosa, desqualificando a utopia com mais um lugar comum: “a política é pensamento; a utopia é ilusão”. Pensando assim, utopia não pode, portanto, pertencer ao mundo do pensamento e muito menos ao mundo da política. Eis uma das razões que fazem a utopia se tornar uma das noções mais “esquecidas” hoje. Deliberadamente esquecida. Além da tendência a ligá-la à fé supersticiosa e ao fanatismo político, uma das causas essenciais da recusa da utopia está, certamente, tanto no modelo científico desenvolvido e difundido por certas ideologias – entre elas a de uma sociedade absolutamente pacificada, mito da sociedade reconciliada (o que não representa necessariamente o pensamento de Karl Marx como querem alguns) – como no domínio da visão científica e técnica do mundo hoje. A tecnociência dispensa o pensamento e a imaginação.
2. Em um dos mais impressionantes ensaios, Prefácio às Cartas persas de Montesquieu, o poeta Paul Valéry define assim a origem de nossa desordem: a barbárie é a era do fato e é necessário que a era da ordem seja o império das ficções uma vez que “não existe potência capaz de fundar a ordem apenas por meio da repressão dos corpos pelos corpos. São necessárias forças fictícias. A ordem exige, pois, a ação de presença de coisas ausentes. Um sistema fiduciário ou convencional se desenvolve, introduz entre os homens ligações e obstáculos imaginários cujos efeitos são muito reais. Eles são essenciais à sociedade”.
Depois de descrever as grandes transformações da modernidade, Valéry conclui que “dois perigos não cessam de ameaçar o mundo: a ordem e a desordem”. Não seria difícil demonstrar a desordem do mundo hoje: atuando de maneira metódica, a civilização ocidental nos legou no século XX mais de 200 milhões de mortes em guerras e massacres; pôs em baixa os valores e a sensibilidade ética. Tal barbárie continua em todos os continentes – basta lembrar a tragédia dos imigrantes na Europa – em nome do “realismo político”. Vale citar Robert Musil: a política em nossos dias é o contrário absoluto do idealismo, quase sua perversão, e “temos nela todas as desvantagens de uma democracia de fatos”. “O homem que especula por baixo sobre seu semelhante e que se intitula político realista só tem por reais as baixezas humanas, única coisa que considera confiável”. A ordem instituída e a desordem social andam juntas. O trabalho da utopia hoje consiste em desfazer esse nó.
3. O espírito utópico contemporâneo, contudo, enfrenta um desafio maior: se é próprio da utopia pensar o social em toda a sua amplitude, como imaginá-la em um mundo que tem como fundamento o individualismo exacerbado, mundo descrito por Musil como o “egoísmo organizado”, mundo do “espírito de butique universalmente expandido”, como diz ainda Friedrich Engels ao criticar a utopia de Charles Fourier no Anti-Dühring? Como pensar, enfim, a utopia quando vemos o predomínio de uma nova forma de determinismo expresso no controle e no autocontrole pelos novos meios eletrônicos que impedem o indivíduo de desenvolver sua singularidade?
4. Um ciclo de conferências que relaciona mutações e utopia nos remete, de imediato, a discutir também as perspectivas criadas pela revolução tecnocientífica e biotecnológica ou, mais precisamente, ao futuro pensado pelo que se convencionou chamar de advento do pós-humanismo: seria isso a utopia-pesadelo de que fala Norbert Elias? 2030 será a data da grande virada, triunfo da inteligência artificial superior à inteligência biológica. Para os humanistas, a primeira e a mais evidente das consequências de tais experiências consistiria no apagamento da memória: isso dá a entender que o espírito, diz o filósofo Francis Wolff, é uma caixa na qual se podem pôr e da qual se podem tirar representações à nossa vontade: “Ora, nossa memória não é uma memória de computador. Ela vive na primeira pessoa, ela é mobilizada hic e nunc, nas relações que teço com outrem. Ela não está em mim. É uma relação contextualizada com o mundo que construo em função do que vivo no presente”.
O novo espírito utópico pretende, pois, percorrer os dois mundos da utopia: o mundo do humanismo e o mundo dos pós-humanos.
Seja qual for o mundo, fiquemos com o humanista Alain: é preciso que as coisas tragam nelas mesmas sonhos, porque é no presente que imaginamos – “quero sonhar de novo de olhos abertos. Assim, desfaço e refaço… Aquele que fixou seu gesto não sonha mais… Enfim, despertar no sonho e não do sonho”.
Adauto Novaes, ex-jornalista e professor, foi, durante vinte anos, diretor do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Artes. Atualmente é diretor da Artepensamento.