Um novo Estado desenvolvimentista?
No Brasil de 1950, 1960 e 1970 havia sinergia entre o investimento público, comandado pelas estatais, e o privado. O neoliberalismo, porém, deixou isso escapar, perdendo a oportunidade de criar grupos nacionais comprometidos com o desenvolvimento do país. Talvez essa possa ser uma das diretrizes políticas do pré-sal
O governo brasileiro de Getúlio Vargas reagiu à derrocada dos preços do café, causada pela crise de 1929, com políticas de defesa da economia nacional: a compra dos estoques excedentes e a moratória para as dívidas dos cafeicultores. Estas medidas e a desorganização do mercado mundial – provocada pela depressão e depois pela a guerra – ensejaram um forte impulso à industrialização do país. É a abertura do período “desenvolvimentista”.
O segundo conflito mundial ampliou as oportunidades de crescimento da indústria de bens de consumo não-duráveis (têxteis calçados, alimentos e bebidas) e de alguns insumos processados, como óleos e graxas vegetais e ferro gusa. Estes setores cresceram rapidamente não só para suprir a demanda doméstica, mas também para atender às exportações. Ainda durante a guerra, o presidente Getúlio Vargas negociou com os americanos a construção da siderúrgica de Volta Redonda. Este empreendimento, crucial para as etapas subseqüentes da industrialização brasileira, entrou em operação em 1946.
Terminado o conflito mundial em 1945, caiu a ditadura de Vargas. O governo eleito do general Dutra herdou reservas elevadas em moeda forte, acumuladas durante a guerra e queimou o dinheiro com uma política liberal de comércio exterior.
A grande Depressão dos anos 1930 e a 2ª Guerra Mundial foram experiências terríveis vividas pelas sociedades modernas no século XX. As lideranças políticas intelectuais e religiosas que sobreviveram aos dois cataclismos estavam dispostas a impedir a repetição da tragédia que levou milhões de pessoas à falência, ao desemprego e, depois, as submeteu ao terror do totalitarismo nazi-fascista e à morte.
Americanos e europeus, socialistas e democrata-cristãos concordavam, então, que o capitalismo e a democracia só poderiam conviver e sobreviver sob duas condições: 1) se as forças destrutivas que levaram ao colapso da economia fossem controladas pelo Estado e pela sociedade; 2) se os riscos e desigualdades produzidos pela operação dos mercados fossem contrabalançados por ações destinadas a criar e defender os direitos econômicos e sociais das classes não-proprietárias.
Nos países periféricos, predominantemente exportadores de produtos primários, acentuaram-se os movimentos em prol do desenvolvimento da indústria. A industrialização era vista como a única resposta adequada aos inconvenientes da dependência da demanda externa. A renda nacional dependia da exportação de produtos sujeitos à tendência secular de queda de preços e flutuações cíclicas da demanda.
A economia brasileira havia mudado e evoluído entre 1930 e 1945. O fazendão atrasado e melancólico do Jeca Tatu cedia espaço para a urbanidade industrial incipiente. Mas velha economia primário-exportadora deixou uma herança de deficiências na infra-estrutura – energia elétrica, petróleo, transportes, comunicações –, nas desigualdades regionais e na péssima distribuição de renda.
Eleito em 1950, Getúlio Vargas retomou o projeto desenvolvimentista. Lançou em 1951 o Plano de Eletrificação, criou o BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) em 1952, a Petrobrás em 1953. O avanço da industrialização só poderia ocorrer com a modernização dos setores já existentes e constituição de departamentos industriais que produzissem equipamentos, componentes, insumos pesados e bens duráveis.
Getúlio cometeu suicídio em agosto de 1954. As eleições de 1955 transcorreram num ambiente turbulento. As forças que levaram Vargas ao suicídio no ano anterior tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek, eleito em 1955. O golpe foi frustrado pela reação pronta do general Henrique Duffles de Teixeira Lott. Juscelino assumiu em 1956 e seu mandato foi ameaçado por novas tentativas de derrubada pelos militares
50 anos em 5
No poder, ele prometeu avançar 50 anos em 5. Pode-se dizer que cumpriu a promessa. Governou sob a orientação do Plano de Metas elaborado a partir de dois estudos: o da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e o da Comissão Mista BNDE-CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe).
O Plano de Metas contemplava cinco prioridades: energia, transportes, alimentação, indústrias de base e educação. O governo concentrou os gastos na infra-estrutura. A construção de Brasília e a abertura de estradas, como a Belem-Brasília, integravam o projeto de interiorização do desenvolvimento.
Ao mesmo tempo, foram constituídos os grupos executivos, coordenados pelo conselho nacional de desenvolvimento, compostos por empresários do setor privado e de técnicos do BNDE, com o propósito de coordenar os programas de investimento e a divisão do trabalho entre o capital estrangeiro e o nacional nas diversas áreas. Essa era a tarefa do GEIA (Grupo Executivo da Indústria Automobilística), do GEICON (Grupo Executivo da Construção Naval), do GEIPOT (Grupo Executivo da Indústria de Transporte), e do GEIMAP (Grupo Executivo da Indústria Mecânica Pesada). Em 1958 foi criada a SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) com o propósito de promover o desenvolvimento naquela região.
O Plano de Metas articulou, portanto, as ações do governo, do setor privado nacional e do capital produtivo internacional, que já experimentava uma forte expansão. A grande empresa americana movimentava-se dos Estados Unidos para a Europa, então em reconstrução. Ao mesmo tempo, as companhias europeias, em maior número, e as americanas transladavam suas filiais para os países em desenvolvimento dotados de estruturas produtivas mais avançadas e que apresentavam taxas de crescimento mais elevadas. O Brasil, entre 1956 e 1960 cresceu em média 7% ao ano.
Ainda me lembro que o seriado da Rede Globo JK atiçou nas novas gerações a nostalgia do Brasil que não viveram. Jovens que vão alem dos devaneios da telinha e se dão ao trabalho de escavar a história, não raro interpelam com suas angústias e esperanças os sobreviventes do desenvolvimentismo. Perguntam se “Juscelino foi ‘tudo aquilo’”.
A busca de um passado idealizado e mitificado, em sua maciça e massificante perplexidade, é a crítica ingênua de um presente atolado na mediocridade e na estagnação. Juscelino e suas circunstâncias foram tudo aquilo e mais alguma coisa.
Mais alguma coisa é o resíduo que a história não revela aos gênios da baixaria, vetríloquos do establishment nativo, sempre empenhados na cruzada contra o que chamam de populismo. São reencarnações sucessivas e inesgotáveis dos escribas do coronelato.
Seja como for, no período desenvolvimentista foram travadas as batalhas decisivas pela consolidação do processo de industrialização. Juscelino ganhou os duelos que Getúlio concebeu. O “desenvolvimentismo” como projeto de um capitalismo nacional cumpriu o seu destino através do Plano de Metas. A contrário do que pregam os caipiras-cosmopolitas – aquela malta que circula pelo mundo, sem entender nada do que acontece – o projeto juscelinista integrou a economia brasileira ao vigoroso movimento de internacionalização do capitalismo do pós-guerra. Por isso, os ultranacionalistas achavam que Juscelino perdeu as batalhas que Getúlio teria imaginado ganhar.
A análise do Plano de Metas explicita a concepção de um bloco integrado de investimentos na infra-estrutura, no setor de bens de capital e de bens de consumo duráveis. As inovações institucionais consubstanciadas nos Grupos Executivos conferiram plasticidade ao aparelho econômico do Estado. Juscelino tomou posse em 1956 e atravessou o mandato sob as ameaças do golpismo anti-nacional, o mesmo que foi frustrado pelo suicídio de Getúlio em 1954 e que conseguiu submeter o país na quartelada de 1964.
Diante da globalização
Disse alguém, certa vez: “os movimentos sociais e políticos são pegos pela voragem da história, não estão conduzindo a história, estão sendo instrumentos dessa voragem”. Temos de reconhecer: é uma avaliação concisa e brilhante do papel das ideologias e das certezas na história.
Nos anos 1990, os “renovados” da periferia, por exemplo, tiveram os seus dias de glória. Hoje o que vemos são cadáveres boiando na enxurrada da globalização. Quanto mais crédula foi a adesão às torrentes da mercantilização universal, mais rasa a poça d’água em que terminam por se afogar os clones de estadistas. Para os Fujimori, Menem e outros menos votados, as políticas nacionais de desenvolvimento pareciam sucumbir diante da maré montante da globalização e da integração dos mercados, sobretudo os financeiros. Apropriada pelos “renovados” da periferia, a estratégia de “desenvolvimento” do Consenso de Washington apoiava-se em cinco supostos: 1) a estabilidade de preços criaria condições para o cálculo econômico de longo prazo, estimulando o investimento privado; 2) a abertura comercial (e a valorização cambial) imporia disciplina competitiva aos produtores domésticos, forçando-os a realizar ganhos substanciais de produtividade; 3) as privatizações e o investimento estrangeiro removeriam gargalos de oferta na indústria e na infra-estrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência; 4) a liberalização cambial, associada à previsibilidade quanto à evolução da taxa real de câmbio, atrairia “poupança externa” em escala suficiente para complementar o esforço de investimento doméstico e para financiar o déficit em conta corrente; 5) o desbordamento da renda e da riqueza, promovida pelo novo dinamismo incitado pelos mercados e pela ação focalizada das políticas sociais, é a forma mais eficiente de reduzir a desigualdade e eliminar a pobreza.
Mas a crise do capitalismo financeirizado mostrou que as ilusões dos mercados eficientes não conseguiram suplantar o fetichismo do dinheiro e, portanto, não lograram escapar das armadilhas que se espalham ao longo do caminho dos que perseguem a acumulação de riqueza abstrata. Tudo indica que ainda está muito distante a prometida substituição das políticas nacionais por uma nova ordem global fundada exclusivamente nas forças do mercado.
Uma economia urbano-industrial, como a brasileira, formada há anos não pode apoiar o crescimento e a estabilidade na exportação de commodities, cujos efeitos sobre o emprego e sobre a renda são limitados. O crescimento da indústria é almejado porque impõe a diversificação produtiva e torna mais densas as relações intra-setoriais e inter-setoriais, proporcionando, ao mesmo tempo, ganhos no comércio exterior e na economia doméstica.
Reformas liberalizantes
No Brasil dos anos 1950, 1960 e 1970 havia sinergia – como em qualquer outro país – entre o investimento público, comandado pelas estatais, e o privado. Muito bem, promovemos a privatização. Mas desde o pós-guerra o gasto público é o componente fundamental das economias contemporâneas. Essa história de mais Estado, menos Estado é mal contada. Tanto nos países desenvolvidos quanto nos emergentes, apesar das reformas liberalizantes, o gasto do Estado não diminuiu. O volume elevado de investimento público em infra-estrutura é crucial para formação da taxa de crescimento.
Ainda pior: o neoliberalismo à brasileira dos anos 1990 deixou escapar a oportunidade oferecida pelas privatizações para criar grupos nacionais – privados e públicos – dotados de poder financeiro, com capacidade competição nos mercados mundiais, comprometidos com as metas de desenvolvimento do país e com a geração de moeda forte. Evaporou a sinergia virtuosa entre o gasto público e o investimento privado. Mas ela sinergia deve ser uma das diretrizes da economia política do pré-sal.
Na China, por exemplo, o investimento das multinacionais tem importância para a geração de divisas e para a graduação tecnológica das exportações, mas não para o volume do investimento agregado. O debate brasileiro dá a impressão de que, de um lado e de outro, não foi feito um esforço para compreender a natureza das transformações ocorridas nos últimos 30 anos. A esquerda continua prisioneira do estatismo míope e inibidor das decisões privadas de investimento, enquanto a direita aposta num liberalismo mítico, que nunca existiu.
Sei que o Brasil não tem condições de copiar ou de reproduzir a experiência chinesa de integração à economia global. Para começo de conversa, a China tem um Estado Nacional forte, em franca progressão para um Estado de Direito, conforme atesta o livro do insuspeito Institute for International Economics de Washington. Já por essas bandas produzimos um Estado que não é forte e muito menos de Direito, sempre enredado nas teias do particularismo e avassalado por burocracias descontroladas e irresponsáveis.
Os chineses ainda mantêm controle sobre a conta de capitais e administram corretamente as relações entre os fluxos externos e o sistema monetário e de crédito internos, porque os bancos são públicos. Afrouxam os controles quando é conveniente e apertam quando necessário. O mercado – ou seja, a concorrência – funciona a todo o vapor no estímulo ao enriquecimento privado, obtido como recompensa à capacidade de construir nova capacidade produtiva, inovar e gerar empregos. A política cambial – câmbio desvalorizado e estável – foi decisiva, não só para a baixa inflação como também para o crescimento das exportações e a atração do investimento estrangeiro. O Estado chinês fomentou as joint-ventures e sustentou políticas de estímulo para que suas empresas se transformem em protagonistas internacionais.
Ao invés de papagaiadas ideológicas, o pragmatismo chinês tratou de compreender a natureza das forças que movem hoje as transformações do capitalismo. Sabem, ademais, que vivem em um mundo em que prevalece a assimetria de poder, não só político, mas econômico. Os economistas se assustam: “Os chineses acumulam US$ 2 trilhões de reservas”. O Peoples Bank of China, em documento recente, esclareceu corretamente o objetivo de tal cometimento. A liberdade de gestão monetária capaz de promover a estabilidade do câmbio e dos juros depende, numa economia emergente de alto crescimento e da acumulação de reservas. Por sua vez, a acumulação de reservas, sem danos fiscais, só pode ocorrer com taxas de juros baixas. Essa é a regra do jogo hoje.
Por essas e outras, a política monetária do Banco Central brasileiro passou algum tempo lutando a guerra anterior. Nos anos 1970 e 1980, desenvolvidos e emergentes se debatiam para vencer inflação alta ou para evitar a hiperinflação. A batalha, hoje é outra. A concorrência global nos manufaturados foi exacerbada pela rápida ampliação da capacidade na Ásia, sobretudo na China. Se a isso se juntar uma desaceleração do crescimento americano, as tendências da economia global serão, sem dúvida, deflacionárias.
A política cambial, política fiscal e política monetária têm inter-relações muito profundas. A dívida pública cresceu de 1994 até 2007 e o investimento público minguou. E isso é muito grave em uma economia moderna.
O mau universalismo gera o péssimo particularismo como a banda podre de si mesmo. Na versão pós-moderna e “globalizada”, a dialética iluminista do universal e do particular se torna sofisticadamente cruel. Sua especialidade é o jogo do ilusionismo em que as subjetividades supostamente esclarecidas ou iluminadas são reduzidas a meras objetivações de processos que não controlam. Não por acaso, Marx, o velho Karl, gostava da expressão representar: os que se julgam espertos e sabidos são exatamente os que representam com maior vigor as forças sistêmicas que imaginam manipular. “Não sabem, mas fazem”, gargalhava o barbudo.
Na visão dos neoliberais, predomina a convicção de que o empresariado nacional é um mal desnecessário, apêndice incômodo do Estado munificente e do capital estrangeiro inovador e dinâmico. Foi a partir desta reflexão profunda que se consolidou outra convicção, a de que era preciso abrir a economia e deixar o capital estrangeiro encarregar-se do crescimento. Sem dúvida estávamos lidando com especialistas avant la lettre em voragens da história: enfraqueceram a economia do país e aprontaram uma enorme vulnerabilidade do balanço de pagamentos.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é economista, professor da Unicamp e presidente do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação.