Um novo impulso para qual Europa?
Primeiro apoiada na hegemonia norte-americana, depois incorporada ao capitalismo financeiro globalizado, a Europa está cada vez mais ameaçada de explodirEtienne Balibar
Europa morreu, viva a Europa? Desde o início deste ano, que verá as eleições no Parlamento europeu – investido pela primeira vez do poder de eleger o presidente da Comissão –, os paradoxos e as incertezas da construção comunitária não saem do noticiário.
De um lado, os pessimistas anunciam que a paralisia é uma ameaça permanente, já que nenhuma das receitas empregadas solucionou a contradição inerente a uma construção política cujo princípio diretor implica uma divergência de interesses de seus membros. Tais receitas perpetuaram a recessão, acentuaram as desigualdades entre nações, gerações e classes sociais, bloquearam os sistemas políticos e deram origem a uma desconfiança radical das populações em relação às instituições e à construção europeia em si.
Do outro lado, os partidários do pensamento positivo se valem de cada sinal “não negativo” para anunciar que mais uma vez o projeto europeu aproveita suas crises para se relançar, fazendo prevalecer o interesse geral sobre as divergências. O que, sem dúvida, enfraquece essas proclamações é que, olhando de perto, todos os sinais invocados (como a união bancária) dizem respeito a meias medidas, carregadas tanto de limitações como de inovações.
O que, no entanto, impede de tratá-los sob a ótica do ridículo é o argumento da necessidade subjacente: as economias das nações europeias são muito interdependentes, e suas sociedades, sujeitas demais aos mecanismos comunitários para não temer a catástrofe que o desmantelamento da União representaria. Mas, por sua vez, esse argumento tem por base o pressuposto de que na história e na política a continuidade sempre se impõe, o que também quer dizer que a atual crise seria de natureza simplesmente conjuntural.
No geral, esses julgamentos se anulam e só podem dar lugar a embates retóricos. O que lhes falta é mais profundidade histórica, de modo a compreender qual virada, num processo que já conta mais de meio século, marca a “grande crise”. É preciso mais análise das contradições que tal crise revela no cerne da construção institucional, especialmente naquilo que diz respeito à superposição das estratégias políticas e das lógicas econômicas. Enfim, mais radicalismo na apreciação das mudanças já produzidas, não apenas quanto à distribuição dos poderes, como também com relação à definição dos atores e do terreno de confrontação entre projetos alternativos. Eu não saberia cumprir um programa como esse; mas vou esboçar o que me parece constituir as três principais dimensões de análise da crise e de sua resolução.
A primeira dimensão diz respeito à história, sem a qual não compreenderíamos a que tendências reais corresponderia a transformação da Europa em um sistema pós-nacional nem por que motivo sua realização e sua própria forma permanecem incertas até o momento. Insistamos aqui sobre dois fatos, um bem conhecido dos historiadores e outro subestimado nos debates entre partidários e adversários do federalismo.
A história da construção europeia é suficientemente longa para já ter atravessado várias fases distintas, estreitamente ligadas às transformações do “sistema-mundo”.1 É cômodo identificá-las pela correspondência entre as sucessivas extensões do sistema europeu e da crescente complexidade das instituições que asseguram a ela a “integração”, administrando equilíbrios instáveis entre soberania nacional e governança comunitária. Vamos entrar num acordo, então, em relação a uma distinção de três fases: uma, da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca) até o que se verificou posteriormente aos acontecimentos de 1968 e à crise do petróleo (sem esquecer o golpe de Richard Nixon contra o Acordo de Bretton Woods);2 outra, do início dos anos 1970 até a queda do regime soviético e a reunificação da Alemanha, em 1990; a última, por fim, da ampliação do Leste Europeu até o momento de crise acionado pelo estouro da bolha especulativa norte-americana em 2007 e, no que se refere à Europa, pela insolvência da Grécia, isolada in extremis em 2010 nas condições que conhecemos.
Será que o presente momento marca a entrada numa nova fase? Penso que sim, porque as tensões, tanto nacionais como sociais, chegaram a um ponto de ruptura. Inaugurou-se um período de incertezas e de flutuações e, com ele, a possibilidade de uma bifurcação em termos ainda imprevisíveis.
Daí a importância do segundo ponto. É um erro acreditar que a evolução da construção europeia segue um trajeto linear, cujas únicas variáveis seriam o adiantamento ou o atraso em relação ao “projeto”. Pelo contrário, cada fase comportou um conflito entre vários trajetos.
A fase inicial, pós-1945, inscreve-se no contexto da Guerra Fria, mas também da reconstrução dos sistemas industriais e da instituição dos regimes de segurança social na Europa ocidental. Ela comporta uma forte tensão entre a integração à esfera de influência norte-americana e a busca de um renascimento geopolítico e geoeconômico da Europa (que se afina, de fato, com o aperfeiçoamento do modelo social europeu) – é essa segunda tendência que, na prática, predomina, num quadro capitalista.
O mesmo se verifica, com um resultado inverso, na fase recente, não em benefício de uma hegemonia norte-americana, hoje em declínio, mas da incorporação ao capitalismo financeiro globalizado. Foi na Alemanha que se jogou a partida decisiva, resolvida pela adesão do chanceler Gerhard Schröder (1998-2005) à competitividade industrial por salários baixos.
Entretanto, a questão determinante é compreender como foram feitas as escolhas e como se transformaram as relações de força na fase intermediária, a da coalizão franco-alemã e da “grande comissão” presidida por Jacques Delors (1985-1995). Foi nesse momento que se apresentou o projeto de um duplo avanço supranacional, pela criação da moeda única e pelo desenvolvimento da “Europa social”, tidos como constituintes dos dois pilares do “grande mercado”. Sabe-se que concretamente uma se tornou a instituição central da União (mesmo que nem todos os Estados-membros participem dela), enquanto a outra – à exceção de alguns bons relatórios de especialistas3 – se isolou em disposições formais do direito trabalhista. Seria necessária uma história detalhada dessa mudança que colocasse em evidência não apenas as responsabilidades individuais, mas as causas políticas objetivas – entre as quais, ao lado da pressão determinante do neoliberalismo, não se deveria esquecer a incapacidade do movimento sindical europeu de pesar sobre as decisões comunitárias, enraizado num provincianismo profundo de seus componentes. Lição importante para o futuro.
A construção europeia sempre apresenta alternativas. Entretanto, a possibilidade de sucesso depende de forças e de projetos que nem sempre honram seus compromissos.
A segunda dimensão é a economia, na condição de ser compreendida na totalidade de suas determinações. O que quer dizer, de um lado, que não há economia fora de uma dimensão social e das opiniões preconcebidas que ela implica: a favor ou contra tal correlação entre estrutura das desigualdades e dos investimentos, a favor de tal ou tal modo de produção, de relações sociais na empresa e de consumo, a favor ou contra a proteção dos trabalhadores e de suas qualificações contra os riscos da flexibilidade. E, consequentemente, não existe separação entre os problemas da economia e os da política: não apenas porque nenhuma política pode se definir independentemente de restrições econômicas, mas acima de tudo porque não há economia que não seja também uma política, um conjunto de escolhas (coletivas) e o resultado da correlação de forças.
Comprimir a renda, precarizar o trabalho
Evidentemente, é essa recíproca que o discurso neoliberal não para de negar, em nome da ideia de que “não há alternativa”. Entretanto, esse discurso é precisamente o instrumento das relações de força. Alguns decênios depois de sua aplicação, pela pressão dos mercados, pela conversão dos governos à “política da oferta” e pela ação concertada da Comissão Europeia, podemos observar os efeitos. Ela conduz a sociedade europeia à beira da explosão e uma parte de suas populações ao desespero, sem obter com isso, para sua economia, nenhuma vantagem real na concorrência internacional.
Tentemos ser mais precisos. Uma das fontes da rentabilidade dos capitais na Europa destaca de forma particular aquilo que certos marxistas chamaram de acumulação por desapropriação,4 de tal forma que os recursos em questão não retiram mais “bens comuns” tradicionais ou propriedades individuais, mas consistem em um conjunto de direitos e de acesso a serviços públicos que formam uma “propriedade social”.5
Desde o final do século XIX, as lutas de classes ou as políticas sociais vinham assegurando às classes operárias um nível de vida que ficava acima do mínimo definido pela “concorrência livre e não falsificada”, limitando as desigualdades sociais. O que se vê hoje, em nome da competitividade e do controle da dívida pública, é um movimento duplo em sentido contrário. É preciso compactar os ganhos reais do trabalho e instabilizá-lo de modo a torná-lo mais “competitivo”, estimulando o consumo de massa, contando com o poder de compra dos assalariados ou, na falta deste, com sua capacidade de endividamento. Sem dúvida, é possível imaginar que estratégias de “zoneamento” e de diferenciação social ou geracional permitem postergar a explosão da contradição entre esses objetivos incompatíveis. Porém, ao longo do tempo, tal contradição só tende a se agravar.
A integração europeia orientada no caminho de um neoliberalismo quase constitucional acarreta outro efeito, que sabota suas próprias condições políticas e morais. Uma vez que a possibilidade de superar os antagonismos históricos – no seio de uma construção supranacional na qual a soberania é compartilhada – suporia uma convergência no mínimo tendenciosa dos países, do ponto de vista triplo da complementaridade de suas capacidades, da equalização de seus recursos e do reconhecimento mútuo de seus direitos, o triunfo do princípio da concorrência deu origem a um aprofundamento das desigualdades e a um agravamento continuado das disparidades. No lugar de um codesenvolvimento das regiões da Europa, assiste-se a uma polarização que a crise acentuou de forma dramática. A distribuição das capacidades industriais, dos empregos e das chances de sucesso, dos canais educacionais, é cada vez mais desigual. A ponto de ser possível afirmar, observando-se a trajetória sobre o conjunto do continente a partir de 1945, que uma grande divisão entre o Norte e o Sul tinha substituído a divisão oriental-ocidental, mesmo que a separação não se materialize com um muro, mas, antes, numa drenagem unilateral dos recursos.
Qual é o lugar ocupado pela Alemanha dentro desse sistema fundamentado sobre o desenvolvimento desigual? Era previsível que a reunificação do país após meio século de dissensão acarretasse um ressurgimento do nacionalismo, assim como era previsível que a reconstituição de uma Mitteleuropa,na qual as empresas alemãs e seus subcontratantes puderam aproveitar ao máximo os recursos de mão de obra “barata e altamente capacitada tecnologicamente”,6 produzisse uma vantagem competitiva em relação aos demais países europeus. Entretanto, não era inevitável que esses dois fatores se transformassem em uma hegemonia política (mesmo “a contragosto”, segundo a expressão em moda).7
Isso se deve à posição de articuladora que a Alemanha passou a assumir entre a utilização dos recursos da economia europeia e a especialização de sua indústria no sentido da exportação para fora da Europa. Ela se encontra, assim – momentaneamente –, no ponto onde se concentram as vantagens nacionais do desenvolvimento desigual.
Mas o efeito da hegemonia tem outras razões, que vão da inexistência de mecanismos de deliberação e de elaboração coletiva das políticas econômicas “comunitárias” até a estupidez das atitudes defensivas dos outros governos. Resta que esse efeito de hegemonia vem se juntar à ruptura entre a “Europa dos ricos” e a “Europa dos pobres”: ele agora faz parte dos obstáculos estruturais à construção europeia. E não é a preocupação de “relançar a Europa” periodicamente, atribuída à chanceler Angela Merkel, que vai mudar alguma coisa. Ainda haverá por muito tempo uma “questão alemã” na Europa.
Soberania ou federalismo, um falso debate
No entanto, a situação atual tem algo de paradoxal, do próprio ponto de vista da ideologia e dos objetivos do neoliberalismo. No momento em que se esboçam mudanças conjunturais que visam a um retorno a condições anteriores e em que os economistas do FMI fazem coro aos críticos da austeridade – que produz a recessão e agrava a insolvência de países endividados –, pareceria que a Europa, como unidade econômica, seria uma das regiões mais mal localizadas do mundo para relançar sua atividade. Não há certamente uma explicação simples para esse paradoxo, mas é possível enunciar certas causas ideológicas.
Algumas remetem à projeção sobre a moeda única do modelo alemão de neoliberalismo (ordoliberalismo) da independência absoluta do Banco Central em relação aos objetivos da política econômica “real”. Outras remetem a um tipo de má consciência das classes dirigentes europeias, que, depois de terem feito mais concessões do que outras às políticas públicas de tipo keynesiano, percebem qualquer retomada da economia pela demanda e pela elevação do nível de vida das classes populares como um perigo mortal de recaída nas lógicas do capitalismo “social”.
Por fim, creio que não se deve excluir um cálculo de outro tipo, mais sinistro, ilustrado pela obstinação com que foram executados o desmantelamento e a colonização da economia grega sob o pretexto de “reformas estruturais”. É a ideia de que, por mais negativos que sejam os resultados da austeridade e do monetarismo em termos da prosperidade geral, eles preparam as condições de uma rentabilidade aumentada por certos investimentos mínimos: aqueles que, europeus ou não, já estão amplamente desterritorializados e podem deslocar instantaneamente suas atividades de um lugar para outro. É evidente que tal cálculo só é viável em termos políticos enquanto a “destruição criativa” não afetar o tecido social e a coesão das nações dominantes, o que não está garantido.
Aplicado à Europa, o projeto neoliberal não consegue a transformação de seu objeto: ele tende ao desaparecimento.
O exposto até agora já explica como as dimensões da crise se conjugam para conduzir a construção europeia a um ponto de inflexão que comporta a virtualidade de uma nova fase, embora segundo orientações radicalmente incompatíveis entre si. Entrementes, nem a cristalização do conflito nem sua evolução podem ter lugar fora de um espaço político de confrontação e representação. Em termos claros, elas dependem da forma como será resolvido um problema duplo de legitimidade e democracia. É a terceira dimensão, sobre a qual quero insistir. Como abordá-la de maneira realista?
Em primeiro lugar, é preciso sair do enfrentamento entre o discurso “soberanista” e o “federalista”, que opõem situações igualmente imaginárias: de um lado, a ideia de comunidades nacionais de alguma forma naturais, às quais seria sempre possível voltar para basear a legitimidade das instituições sobre a expressão da vontade geral; de outro, a ideia de um demos europeu virtual, de alguma forma chamado a se constituir e a se expressar quanto ao fato de que existe uma estrutura representativa no nível supranacional.
A primeira ideia não faz apenas abstração das condições nas quais a soberania nacional traduz um poder, para a maioria de um povo, de influenciar as escolhas dos governantes: ela alimenta também a ficção de uma legitimidade imutável do Estado-União como único quadro dentro do qual os cidadãos fazem valer seus direitos. De forma contrária, a segunda se atém a uma concepção processual da legitimidade. Ela só se pergunta quais processos políticos de fato investiram a representação democrática de uma função constituinte na história dos Estados-nação.
É preciso ter em mente que o sistema político europeu, por mais incoerente que possa parecer, já é um sistema misto, no qual existem vários níveis de responsabilidade e de autoridade. Esse sistema jamais foi estável, mas a crise atual o desestabilizou ainda mais, fazendo surgir em seu seio uma instância quase soberana: o Banco Central “independente”, situado na articulação das finanças públicas dos Estados e do mercado financeiro internacional. Ora, o crescimento de seu poderio não reflete o simples desenvolvimento da tecnocracia nem apenas a dominação do capitalismo privado. Trata-se, antes, de uma tentativa de “revolução pelo alto”, na época em que o poder político não se separa mais do poder econômico e, sobretudo, financeiro.8 A questão é saber se ela pode chegar a um novo regime de soberania e que alternativas podem ser propostas a ela.
Daí uma segunda confusão que precisa ser esclarecida, referente às relações entre legitimidade e democracia. Se nos ativermos a uma definição realista, não ideológica, da legitimidade dos sistemas políticos, será impossível sustentar que a única legitimidade efetiva é aquela que os procedimentos democráticos conferem: a história demonstra o contrário. Sabe-se que é nas situações ditas de exceção que estruturas autoritárias de diversos tipos tendem a reivindicar e a obter a delegação de poder das populações, com ou sem procedimento constitucional. No entanto, na conjuntura atual, é impactante que a urgência de lidar com os ataques especulativos contra a moeda única e, correlativamente, de regular minimamente um sistema financeiro que escapou a todo o controle não tenha trazido nenhuma nova legitimidade à Comissão de Bruxelas. Consequentemente, diante das iniciativas “extraordinárias” do Banco Central Europeu (BCE) e de seu presidente, os governos ou os chefes de Estado puderam se apresentar como representantes isolados da soberania popular e dos direitos dos povos a dispor deles mesmos. A democracia foi desbastada pelos dois lados de uma só vez e o sistema político em seu conjunto deu um passo no caminho da “desdemocratização”.
Tal experiência impõe uma volta aos mecanismos e às causas históricas que tinham sustentado o privilégio dos Estados-nação em matéria de legitimação do poder. Em poucas palavras, uma parte dessas causas remete ao poder afetivo da ideologia nacional ou ela própria nacionalista, em particular nas sociedades que (como no Leste Europeu) forjaram sua consciência coletiva na resistência aos imperialismos sucessivos inclinados à anulação de sua identidade e ao apagamento de sua história.
Entretanto, com o recuo, outro fator adquiriu um significado estratégico, na medida em que ele mostra ao mesmo tempo por que a forma nação não possui uma capacidade de legitimação absoluta e por que a legitimação democrática do Estado-nação permanece suspensa por condições sociais e econômicas, e não apenas por formas do procedimento representativo ou pela ideia de “soberania do povo”. Esse fator advém – especialmente nos países da Europa ocidental – do fato de que a transformação do Estado policial em Estado social assumiu a forma da constituição de um Estado nacional-social, em que a conquista dos direitos sociais se combina intimamente com a reconstrução periódica da vinculação nacional (como foi o caso específico na deflagração das duas guerras mundiais e, na França, das guerras coloniais).9 Isso explica ao mesmo tempo por que a massa de cidadãos viu na nação o único contexto de reconhecimento e de integração à comunidade e por que essa dimensão cívica da nacionalidade se desgasta (ou degenera em “populismo” baseado na exclusão de estrangeiros) quando o Estado se põe a funcionar, na prática, não como envoltório da cidadania social, mas como o espectador impotente de sua degradação ou instrumento diligente de sua desconstrução.
A crise da legitimidade democrática da Europa hoje deriva, portanto, do fato de os Estados nacionais não possuírem os meios nem a vontade de defender ou de reconstituir o “contrato social” e de as instâncias da União Europeia não contarem com nenhuma predisposição para pesquisar as formas e os conteúdos de uma cidadania social no nível superior – salvo se um dia fossem para ali empurradas por uma insurreição das próprias populações ou pela tomada de consciência dos perigos a que a Europa está exposta pela conjunção de uma ditadura exercida “do alto” pelos mercados financeiros e de um descontentamento antipolítico alimentado “de baixo” pelo empobrecimento das condições de vida, pelo descaso do trabalho e pela degradação das perspectivas de futuro.
No entanto, a descrição desse impasse comporta ainda algumas lições, mesmo que muito aleatórias, quanto aos meios de sair dele. Sejam quais forem a duração do tempo e o amargor das ocasiões faltosas, o pessimismo da experiência não vai abolir integralmente os recursos da imaginação – que resultam também de uma inteligência mais elaborada. A introdução de elementos democráticos nas instituições comunitárias já constituiria um contrapeso para a “revolução conservadora” em andamento.10 Ela, porém, não exerce suas próprias condições políticas. Estas só ocorrerão mediante um empurrão simultâneo das opiniões públicas majoritárias em favor de uma modificação das prioridades da Europa, fazendo prevalecer o emprego, a inserção das gerações jovens na sociedade, a redução das desigualdades e a repartição igualitária dos encargos fiscais sobre a rentabilidade financeira. E esse empurrão só tomará corpo se os movimentos sociais ou as “indignações” morais, transpondo as fronteiras, se fortalecerem o suficiente para reconstituir uma dialética de poder e de oposição no conjunto da sociedade europeia. A “contrademocracia” deve vir em socorro da democracia.11
Nações em busca da identidade perdida
A legitimidade da construção europeia não pode ser decretada nem mesmo inventada por meio de uma argumentação jurídica. Ela só pode resultar em termos de tendência daquilo que a Europa vier a ser a partir da disputa e do contexto dos conflitos sociais, ideológicos, passionais – em resumo, políticos –, que dizem respeito a seu próprio futuro. Uma Europa suscetível de se governar é, sem dúvida nenhuma, democrática, em vez de oligárquica e tecnocrática. Entretanto, uma Europa democrática não é a expressão de um demos abstrato: é uma Europa na qual as lutas populares abundam e colocam barreiras ao confisco do poder de decisão.
Resistir à desdemocratização não basta para cristalizar uma liderança histórica, mas é uma condição necessária para “refazer a Europa”.
A crise da Europa atual, de bom grado qualificada de existencial, porque confronta seus cidadãos com escolhas radicais e finalmente a “ser ou não ser”, foi sem dúvida preparada pelo fato de que suas instituições e seus poderes foram sistematicamente desequilibrados em detrimento das possibilidades de participação dos povos em sua própria história − aquilo que Spinoza chamava de “medo das massas”. No entanto, o que a precipitou foi o fato de ela ter sido colocada para funcionar deliberadamente não como um espaço de solidariedade entre seus membros e de iniciativa perante os riscos da globalização, mas como um instrumento de penetração da concorrência no coração do espaço europeu, impedindo as transferências entre os territórios e desencorajando as empresas comuns, fazendo de cada Estado-membro o predador em potencial de seus vizinhos.
Dessa espiral autodestrutiva evidentemente não é possível sair substituindo uma concorrência por outra – por exemplo, substituindo a concorrência pelos salários, os regimes de imposição e as taxas de empréstimo por uma concorrência pela desvalorização, como propõem certos partidários do retorno às moedas nacionais.12 Só se pode dela sair pela invenção e pela proposta obstinada de outra Europa que não a dos banqueiros, dos tecnocratas e dos acionistas da política. Uma Europa dos conflitos entre modelos de sociedade antitéticos, e não entre nações em busca de sua identidade perdida. Uma Europa alterglobalizada, capaz de inventar para si mesma e, se for o caso, de propor ao mundo estratégias de desenvolvimento revolucionárias e formas ampliadas de participação coletiva – mas também de acolhê-las e de adaptá-las ao seu próprio uso se porventura acontecesse de elas serem propostas em outro lugar. Uma Europa dos povos, quer dizer, do povo e dos cidadãos que o compõem.
*Étienne Balibar é filósofo. Última publicação: Europe, crise et fin? [Europa, crise e fim?], Le Bord de l’Eau, Bordeaux, 2013.