Um novo marxismo para um novo mundo
A ordem social moderna comporta não uma, mas duas forças sociais dominantes: ao mundo dos “capitalistas” articula-se o dos gestores privados e públicos. É a essas duas forças que deve se opor o conjunto das “classes fundamentais populares”
Em meio à tormenta da globalização neoliberal, a esquerda entrou em recessão. A França, país que supostamente poderia constituir uma exceção, alinha-se a uma situação praticamente generalizada: um enfraquecimento histórico do antagonismo entre pretensões políticas rivais. Assumindo o discurso da direita reacionária e uma política econômica liberal, Nicolas Sarkozy conseguiu ser ouvido pelas camadas populares mais fragilizadas. Ele conseguiu convencê-las de que detém os meios de concretizar as esperanças que a esquerda encarnava, arregimentando seus ideólogos e neutralizando suas lideranças. A derradeira convergência teria levado a melhor na “luta final”?
O desafio de um poder de esquerda, sustentado por décadas de luta, tinha, ao final da Segunda Guerra Mundial, se concretizado no “compromisso social-democrata”, em suas múltiplas variantes, dos centros às periferias. O capitalismo continuava a se desdobrar em guerras coloniais e destruições ecológicas, mas as prerrogativas da propriedade capitalista haviam diminuído: baixas taxas de juros reais, exíguas distribuições de dividendos, alta moderada da Bolsa, predomínio do setor não financeiro. E no lugar entravam as indústrias nacionais, os serviços públicos, a seguridade social, as políticas de emprego e de desenvolvimento. Toda uma dinâmica “socializante”, por vezes veiculada pelas forças políticas de esquerda, conhecendo seu auge em 1968.
De repente, o elã arrefeceu. No final dos anos 70, os capitalistas retomam a capacidade ofensiva. Iniciam um novo ciclo histórico, neoliberal. Três décadas mais tarde, o assunto parece resolvido. Do passado, fizeram tábula rasa. O caminho traçado parece sem volta. A incerteza atinge a própria idéia de esquerda, não apenas quanto à exeqüibilidade de seus projetos, mas quanto ao futuro que ela anunciava. Uma sensação de vazio, como a perda de uma crença. Um desespero dissimulado, que paralisa.
O que falta então para a “esquerda” compreender sua própria história, fazer um balanço – da sua irresistível ascensão ao seu declínio histórico – e ter condições de vislumbrar uma saída, por mais difícil que seja?
Ao mesmo tempo em que recorremos a Marx, afirmamos que é o próprio marxismo que devemos culpar. Pois foi ele que consagrou, na cultura comum, esta divisão em dois campos: trabalho contra capital. Ora, esse mito fundador introduz um viés falacioso. A ordem social moderna comporta não uma, mas duas forças sociais dominantes: ao mundo dos “capitalistas” articula-se um outro, dos organizadores, dos gestores privados e públicos, dos especialistas de todo tipo – os “diretores-e-competentes”.* [*Cadres-et-compétents, expressão que joga com as palavras cadre e compétence: “cadre”, que designa também o “revolucionário profissional”, refere-se a funcionários assalariados em cargo de direção, concepção ou controle que constituem a espinha dorsal da organização; e “compétences”, suas capacidades e atribuições gerenciais. (N.T.)] É a essas duas forças, ligadas e no entanto antagônicas, que faz face o conjunto das “classes fundamentais populares”. É a partir disso que se pode compreender a moderna luta de classes – um jogo a três, não a dois.
No “compromisso social-democrata” que prevaleceu durante os Trente Glorieuses, estabeleceu-se uma aliança entre as classes fundamentais e os diretores-e-competentes, diversamente representada por partidos socialistas ou comunistas. As classes fundamentais constituíam sua força motriz; os diretores-e-competentes, a mola propulsora. A inspiração provinha dos dois componentes. O Estado-nação tornou-se o Estado social. A gestão das empresas e das políticas escapava em grande parte aos detentores do capital. Falava-se de economia mista, entre capitalismo e socialismo. Resta definir o perfil desse objeto e compreender em que condições ele desapareceu.
Matriz mercante
Para fazê-lo, retomemos a análise feita por Marx. Sua idéia central é de que a estrutura de classes, no mundo moderno, não remete, como nos sistemas anteriores, à pretensão de uma superioridade natural de alguns, mas à afirmação da liberdade e da igualdade de todos, tal como estas supostamente se dão em uma economia de mercado. Entretanto, explica Marx, esse sistema só se realiza fazendo do próprio trabalhador uma mercadoria explorável. Essa economia é, portanto, capitalista, e não apenas mercante. O mercado, em si mesmo, não é uma relação de classes, mas é seu fator, em última instância. Ele dá lugar à propriedade privada dos modos de produção. É, diz Marx, com essa matriz mercante que é preciso acabar, porque ela condiciona todo o resto.
Ora, acrescenta ele, vemos emergir no seio da empresa moderna um outro princípio racional de coordenação, suscetível de se generalizar em escala social e de marginalizar, depois substituir, o mercado: a “organização”, o equilíbrio a priori e não mais a posteriori das decisões de produção. É daí que a classe operária extrairá sua força ascendente; os funcionários acabarão por se apropriar das empresas; a revolução abrirá uma era pós-mercante, fundada na organização acertada entre trabalhadores livres e iguais.
Essa “longa narrativa” resume a grande utopia do século XX, inspiradora de revoluções heróicas, lutas e reformas emancipadoras, que mudaram o destino do mundo. Referência teórica fundamental, ela abriga, contudo, uma face obscura, pois oculta que também a organização, a exemplo do mercado, é um fator de classe: o outro fator. E que a forma moderna de sociedade repousa sobre esses dois pilares. A dominação de classe nisso depende de duas forças relativamente distintas, uma que opera por meio da propriedade capitalista, outra pela via da “competência” – que garante a organização econômica, administrativa, cultural.1
Esse paradigma, que chamamos de “neomarxismo”, implica uma revisão importante da análise das estruturas de classe proposta pelo marxismo clássico. Coloca para ela a questão de saber por que lhe escapa essa dualidade da dominação, registrada pelas sociologias e acessível ao senso comum. Por que essa idéia é estranha a sua abordagem, que trata a burocracia como uma patologia, sem discernir na organização um fator de classe?
A razão
repousa no fato de o marxismo clássico também ter emergido historicamente, diante da propriedade capitalista, como o discurso de um acordo tácito, e um tanto oculto, entre os diretores-e-competentes e as classes populares. E é por isso que ele pôde se constituir como doutrina oficial do “movimento operário”, tanto dentro do “socialismo real” quanto no seio do “socialismo dentro do capitalismo”. Nessas correntes históricas, afirma-se uma identidade de classe ambivalente, constantemente negada, orientada para um compromisso entre a “classe operária” e o pólo do grupo diretivo econômico e cultural. O acerto entre todos (a “associação dos trabalhadores”, objetivo oficial) aí assume, em diversos graus, a forma de uma economia organizada, sob a égide das instituições públicas. O poder de todos tende a se identificar com o poder dos organizadores.
A história do capitalismo no século XX é assim governada pela alternância, nos píncaros do poder, de duas forças socialmente dominantes. As “finanças” predominam até 1933 (início do New Deal nos Estados Unidos). Depois, o grupo diretivo organizacional, até os anos 70. Por fim, novamente as finanças. Quando estas levam a melhor, impõem aos organizadores a dinâmica da mudança social que lhes é própria. Quando prevalece o pólo da organização, é porque este se aliou, contra as finanças, às classes populares.
Esse quadro interpretativo explica os destinos díspares, e no entanto paralelos, do capitalismo e do socialismo real. Ele põe em evidência, de um lado, o fortalecimento de um “poder gerencial” no lado ocidental, verificável no nível das empresas, das grandes sociedades e dos Estados, e, de outro, a “revolução proletária” no lado oriental, que rapidamente deixou o poder se concentrar nas mãos dos organizadores, promovidos a classe dirigente única. O paralelismo dos fenômenos leva a pensar que ambos dependem das mesmas determinações estruturais profundas, inerentes à forma moderna de sociedade. A ponto de a convergência dos sistemas, ou a passagem de um para o outro, ser constantemente objeto de debate.
Combates do terceiro mundo
Essa aliança histórica entre classes populares e diretores-e-competentes assumiu formas diversas, reforçando-se até os anos 60-70. Ela foi decisiva nos combates do Terceiro Mundo, nas manifestações revolucionárias latino-americanas, nos movimentos estudantis e operários pelo mundo afora. Para falar só da França, a juventude estudantil – financeiramente já bem estabelecida com a posição hierárquica que seus diplomas lhe reservavam na sociedade – sacudia em 1968 os velhos contextos culturais sobre os quais as forças da direita tradicional firmavam seu poder de classe. Arrebatada por esse elã, a classe operária lançava uma última investida: quarenta dias de greve mais ou menos nacional. Dizia-se que isso era apenas o começo…
Por que desde então a história tomou um outro curso e houve um repentino regresso das finanças?
Porque o represamento dos poderes e rendimentos das finanças dentro do compromisso social-democrata não havia passado despercebido. Os ideólogos das classes capitalistas, de Friedrich von Hayek a Milton Friedman, haviam desde o início compreendido a natureza do processo, tanto no plano nacional quanto no internacional. As finanças retomaram sua combatividade (a lembrança da crise de 1929 se apagava), seu poder se reconstituía, notadamente com o surgimento de um novo sistema financeiro, o dos mercados europeus, ao abrigo do controle dos bancos centrais.
Cada obstáculo que o compromisso do pós-guerra encontrava em seu caminho – a começar pela crise do dólar, no início dos anos 70 – fragilizava os seus fundamentos. A incapacidade dos compromitentes de enfrentar a crise estrutural dos anos 70, especialmente a decolada da inflação, favoreceu a emergência de poderes, os encarnados por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que combateram com determinação – “de ferro” – as resistências operárias. Em 1979, as taxas de juros haviam se elevado a níveis sem precedentes, um sopro de ar fresco para as classes capitalistas cujo rendimento estava em baixa. Crise no Terceiro Mundo endividado. Uma nova disciplina impunha-se aos trabalhadores e gestores.
As grandes tendências capitalistas à globalização comercial e financeira, que a ordem social anterior havia conseguido domesticar com políticas de desenvolvimento, retomavam assim o seu curso, em condições renovadas por certos “avanços” tecnológicos. A globalização mudava de natureza. Impunha uma nova divisão internacional do trabalho, sob a hegemonia americana, que relançou a exploração colonial e pôs em concorrência todos os trabalhadores do mundo. O milagre chinês iria esconder as feridas da América Latina.
Nesse processo, os diretores-e-competentes foram novamente cooptados pelas finanças. Destituídos da capacidade de iniciativa e desviados dos objetivos pelos quais se pautavam no contexto do Estado-nação, mostraram-se incapazes de restabelecer suas lógicas no plano continental, como na Europa. Passaram do compromisso social-democrata ao compromisso neoliberal. Uma arregimentação que contou com maior ou menor empenho segundo os contextos históricos, encontrando mais entusiasmo nos Estados Unidos ou no Reino Unido do que na França.
No momento em que algumas figuras políticas representativas dos diretores-e-competentes se arregimentam em torno das opções neoliberais, não existe traição individual. Para além da ambigüidade das carreiras, as condições históricas que haviam conduzido à emergência do compromisso social-democrata desapareceram. Feu la gauche! – a esquerda está morta. E a questão se impõe então às classes fundamentais: como retomar a iniciativa política?
Para respondê-la, é preciso primeiro elucidar um segundo ponto. Como passar de um jogo a três para um jogo a dois? Como o esquema ternário, de classes, se materializa na forma binária (direita/esquerda) que governa o cenário político? Dentro do esquema democrático de governo da maioria, a esquerda constitui o lugar político problemático da aliança entre as classes fundamentais e os diretores-e-competentes. Na virada do século XIX para o século XX, revolucionária ou reformista, ela historicamente se constituiu quando os assalariados se voltaram para as camadas da “competência”, da direção e da cultura, arrastando-as em sua dinâmica histórica. Os intelectuais e organizadores de todos os gêneros desempenharam então um papel-chave, posicionando-se voluntariamente na vanguarda do “movimento operá
rio”.
Sem dúvida, a “organização” encerra um imenso potencial de tirania, mas esta apenas se exerce enquanto tal ao se expor publicamente: ela se expressa em projetos conjuntos, articulando fins e meios. Por outro lado, o “mercado”, enquanto tal, não possui nenhum plano comum a revelar ou a submeter à crítica coletiva. Embora requeira publicidade e propaganda, não possui mais nada a oferecer aos cidadãos além da promessa de uma prosperidade inscrita nos mecanismos do lucro e do interesse individual. Não é portanto indiferente a ser governado pela esquerda ou pela direita.
Mas a “esquerda” é um vocábulo que designa algo instável, cujo conteúdo varia conforme os diretores-e-competentes estejam engajados em um compromisso social-democrata à esquerda ou em um compromisso à direita. A Esquerda maiúscula, a “esquerda da esquerda”, não é uma instituição naturalmente garantida. É um acontecimento, que se produz quando a corrente popular consegue arrastar os diretores-e-competentes na dinâmica de emancipação que lhe é própria. Em uma tal situação, a ligação natural entre os dois componentes da dominação de classe se distende, o torno que aperta a maioria se afrouxa.
A situação hoje é bem outra. O mundo operário perdeu sua centralidade, seu lugar estratégico na produção, que fazia dele um elemento motor. A aliança com os diretores-e-competentes tornou-se problemática. As classes fundamentais encontram-se em uma sinuca histórica.
A dificuldade reside, por um lado, no fato de que a força necessária para a marginalização da propriedade capitalista se constrói mediante a aliança com um parceiro que pode encontrar aí suas próprias razões, mas que ao mesmo tempo continua – do alto de suas prerrogativas de expertise e direção – um adversário de classe. Porque a dominação é dupla, o combate tem de ser travado nas duas frentes.
Fracionamento congênito
É claro, por outro lado, que as classes fundamentais só podem preponderar se concretizarem a unidade política das frações entre as quais tendem a se dividir. Esse fracionamento congênito se manifesta em sua dispersão sobre o tabuleiro político. A direita “proprietária” fascina os trabalhadores independentes e as camadas mais frágeis da classe assalariada. A esquerda “organizadora e competente” aspira a um salário público e, mais comumente, àqueles que ambicionam uma ascensão social pelas vias da competência. Essas tensões delineiam vagamente as exigências de um programa de união popular. É essa política de unidade e de aliança que marcou a história moderna com momentos plenos de emancipação, reformas ou revoluções. Não existe nenhuma estrada real, alternativa. Não existe outra escolha de porvir a não ser desenvolvê-la do mais local às escalas mais vastas, da Europa ao espaço-mundo. A não ser radicalizar seus objetivos.
Não se trata apenas da propriedade comum de determinados modos de produção e da distribuição apropriada da renda. Trata-se, ao mesmo tempo, das condições da vida em comum, ou seja, da relação entre os sexos, da ecologia, do trabalho, da saúde, da educação, da pesquisa, do urbanismo etc. A luta contra o capitalismo, cuja lógica é o acúmulo do lucro, a riqueza abstrata, sempre foi uma luta por condições concretas de existência, por uma ascendência da vida social sobre a produção.
Como as classes fundamentais podem retomar a iniciativa? Ainda que necessária, uma forma de organização que lhe seja própria, a do “partido”, mesmo no plural, não saberia responder ao conjunto dos problemas. Apenas uma variedade de movimentos autônomos, perenes ou circunstanciais, é suscetível de travar no cotidiano o combate nas duas frentes: contra os golpes sempre renovados do capitalismo e contra a propensão da “elite” de tirar proveito do elã das lutas populares. Portanto, é de uma simbiose, de uma conivência intelectual, moral e política entre partidos e movimentos que emergirá uma Esquerda maiúscula, capaz de enfrentar o poder capitalista.
O “sistema do mundo” capitalista não deve ser compreendido dentro da perspectiva do Estado-nação, no qual se desenvolve a estrutura de classes aqui descrita. Ele opõe centros e periferias. Transforma as relações de classes em relações assimétricas, de dominação e de guerra. Mas o movimento histórico que viu a lógica moderna de produção e de governo se desdobrar nos Estados-nações clássicos, hoje em escala continental, conduz, com o tempo, à reprodução dessa mesma matriz na forma de um Estado-mundo em gestação. Com todo o seu poder militar, econômico e cultural, os Estados Unidos, centro mundial sistêmico, imperialista, esforçam-se por se impor como o ator dominante desse “estatismo” de classe global em processo de formação.
Em grande medida, com sucesso. A oposição de dois mundos, própria à guerra fria, ou a de uma “tríade” – Estados Unidos e Canadá, União Européia e Japão – foi substituída por uma hierarquia hegemônica imperialista unipolar, um pólo de concentração de capitais, comandando sua reexportação para o resto do planeta. Contra essa nova forma de concentração de poder mundial incipiente forja-se a unidade das lutas e das resistências, esboça-se a convergência entre lutas de classe, de raça e de gênero.
Rachaduras do neoliberalismo
Essa consciência ainda é bastante frágil, ao mesmo tempo estimulada pelas rachaduras do neoliberalismo e ameaçada pelas contradições que alimentam nacionalismos e sectarismos de todo tipo. Não se pode aqui contar com os partidos para organizar a Internacional. É a forma do movimento que prevalece. Em busca de suas bases sociais, de sua “mundialidade”, também de sua ideologia, um novo marxismo, para um novo mundo, ainda está longe de ser inventado.
*Gérard Duménil é economista e diretor de pesquisa do Centre Nacional de la Recherche Scientifique (CNRS).