Um país repartido
Os partidários do impeachment, como se sabe, venceram folgadamente nas duas Casas Legislativas, na opinião pública e, é bom que fique claro, nas ruas. Mas o que aconteceu com as duas posições e seus argumentos quase um ano depois daquele 12 de maio em que Dilma foi afastada da Presidência da República?
Quase um ano sem Dilma. Desde 2015 o Brasil vem lidando com o problema da legitimidade das forças que disputam o controle do centro do poder político. Em 2015, as posições colidiam ao redor da questão sobre se o PT tinha legitimidade para governar o Brasil ante a crise econômica e moral para a qual havia arrastado o país. A eleição de outubro de 2014, dividida e polarizada, não resolveu o problema da crise de legitimidade do governo do PT, antes o aguçou. Dilma ganhou aquela eleição já quase perdendo-a, como se viu. Em 2016, a questão passou a ser se um mandato presidencial atribuído em eleições livres e limpas pode ser abatido em pleno voo pelo sistema político. O impeachment e a reacomodação e redistribuição do poder político que se seguiram à posse de Temer, com a formação de uma nova maioria parlamentar, obviamente não resolveram a questão nem fecharam as feridas, antes criaram uma fratura dolorosa e, ao que parece, permanente na vida política brasileira.
A fonte de legitimidade política nunca vem simplesmente dos fatos e ações, mas de argumentos, mais ou menos elaborados, por meio dos quais tentamos justificá-los. E argumentos não faltaram. Decantado o ódio e a insanidade temporária que parece ter dominado muitos neste período desafiante, o que nos resta é um desacordo moral, razoavelmente argumentado, relacionado à legitimidade de quem governava em 2015 e 2016 e de quem governa em 2017. Um desacordo que não dá ares sequer de ter arrefecido, quanto mais de vir a ser dissipado por meio de alguma reconciliação futura. Convém, portanto, prestar atenção aos argumentos: os de antes e os de hoje.
Quem foi a favor do impeachment deve ter já decorado a lista de boas razões pelas quais ficamos melhor sem Dilma e que se reduzem a algumas boas notícias em economia, pinçadas com muita boa vontade aqui ou ali. Tudo foi apostado em uma melhora econômica que está demorando a vir. A este ponto, é claro até para os mais hipócritas que o impeachment foi meramente punitivo e que, uma vez punido o governo eleito, a questão sobre “o que vem depois” já não emociona nem compromete a maior parte dos envolvidos na busca do justiçamento político de Dilma. Por outro lado, os que foram contra o impeachment, além de terem na ponta da língua as evidências da deterioração das práticas políticas e das condições do país, têm a própria lista das interpelações aos “impitimistas” de 2015 e 2016, que consiste em demandar-lhes coerência na punição à corrupção e na fúria moral contra os desmandos da vida pública em patamar compatível com o ponto, gravíssimo, a que se chegou com o impedimento. Na verdade, há uma certeza arraigada de que tudo não passou de uma grande farsa para permitir que um governo e um projeto sucessivamente surrados nas urnas pudessem chegar ao poder por meio de um atalho.
Voltemos, porém, a 2015-2016, quando o partido do impeachment que argumentou publicamente sua posição se apoiou em três postulados. O primeiro argumento dizia que o governo do PT havia quebrado o país e provocado uma crise econômica sem precedentes, cujas consequências mais evidentes eram inflação, desemprego e perda de renda. Claro que isso, em sã consciência, não justificaria o impeachment, mas se queria acreditar que havia no Brasil uma situação de urgência que demandava medidas excepcionais. O segundo argumento afirmava que os governos do PT planejaram, implantaram e mantiveram um sistema de corrupção público-privado de altíssimo resultado e absolutamente escandaloso em razão: a) da dimensão da rede dos envolvidos; b) do volume dos recursos, em cifras astronômicas; c) do efeito devastador sobre as empresas públicas (o famoso argumento da “quebra da Petrobras”). Dada a dimensão do malfeito, a urgência e a excepcionalidade das medidas estariam mais do que justificadas e a retirada de Dilma do governo era um imperativo. Notem que são dois argumentos em que os fatos relatados precisam ser elevados à escala máxima de gravidade, urgência e consequências trágicas para o país, pois, sem um consenso sobre o “princípio de excepcionalidade” a coroar os argumentos, eles não teriam força retórica e moral suficiente para que um ato extremo como o impeachment fosse considerado uma pena razoável e proporcional.
O terceiro argumento consistia em dizer que a presidente praticou crime de responsabilidade ao assinar decretos sem previsão de recursos e por praticar as chamadas pedaladas fiscais. Terceiro? Não deveria ser a primeira, aliás a única, razão para o impeachment? Estudei cuidadosamente a fala pública (monitorando redes sociais digitais) e os discursos dos representantes na Câmara e no Senado, e a imputação de crime de responsabilidade praticamente desapareceu diante de argumentos políticos meramente estratégicos e dos argumentos 1 e 2 apresentados. No máximo, apareceu no Senado, subsidiariamente, a versão de que as pedaladas fiscais “teriam causado” a crise econômica (o desemprego, “a quebradeira”).
O partido divergente (composto por petistas, formalistas democráticos e por quem simplesmente não gostava da turma nova que viera a ocupar o centro do poder político) compartilhava uma ou mais destas convicções: a) em mandatos obtidos em eleições livres e limpas não se toca, exceto quando há gravíssimos crimes cometidos pelo mandatário, condição que não se cumpre nesse caso; b) quem ganha a eleição tem o direito de governar, de forma que quem tem outra agenda que espere na fila até ser eleito; c) o impeachment de Dilma serve apenas aos jogos internos de poder do sistema político, e não ao interesse público; d) a qualidade moral e democrática tanto dos atores políticos diretamente envolvidos na produção do impeachment quanto de seus apoiadores é tão baixa, vil e perturbadora que é impossível alinhar-se a eles.
Os partidários do impeachment, como se sabe, venceram folgadamente nas duas Casas Legislativas, na opinião pública e, é bom que fique claro, nas ruas. Mas o que aconteceu com as duas posições e seus argumentos quase um ano depois daquele 12 de maio em que Dilma foi afastada da Presidência da República?
As duas posições ainda se mantêm impermeáveis. Os argumentos passam uns pelos outros, mas não chegam às trincheiras adversárias: os lados não podem convencer uns aos outros da superioridade de seu ponto de vista. Por quê? Minha hipótese é que os lados reivindicam a legitimidade de seus argumentos, mas se apoiam em bases muito diferentes, de forma que ambos se sentem certos e justificados, mas apenas no horizonte normativo que escolheram para lutar argumentativamente. Incomoda-se com o impeachment apenas quem cavou sua trincheira em uma perspectiva normativa de democracia; defende-o quem cravou suas convicções na pragmática política.
Quem raciocina em termos exclusivamente pragmáticos não tem problemas de consciência com o impeachment. Para ele, tratou-se de um legítimo ato político, previsto por uma brecha constitucional, por meio da qual uma nova maioria parlamentar interrompeu um governo que: a) se tornou uma reduzida minoria nas Casas Legislativas federais; b) tinha contra si dois terços do apoio popular; c) tinha sido colocado nas cordas pela opinião publicada. Estão fora do alcance dos que pedem que se envolva no pedido de impeachment do atual governo em virtude da corrupção: o governo Temer não se mantém porque é santo, mas porque tem ampla maioria no Congresso.
Quem raciocinou com base em um princípio de “excepcionalidade em função da gravidade” continua achando que tudo teve ao menos legitimidade “suficiente”. Por mais que se escandalizem os formalistas democráticos, a maior boa parte dos brasileiros não viu e continua não vendo nenhum problema na violação de seu sacrossanto direito de exclusividade na escolha de quem governa. Nem está no horizonte de sua avaliação o que isso significa como precedente para o desrespeito a resultados eleitorais. Acho que a sensação geral não foi de um padrão para o futuro, mas de um ajuste de contas. O que o impeachment representou em termos de violência à democracia simplesmente não importa. O espantoso e escancarado jogo de poder que urdiu e tramou o impeachment não é uma questão. A qualidade moral e intelectual dos que perpetraram o impeachment tanto faz: eles estavam, simplesmente, “consertando o Brasil”. O PT foi punido, a alma foi lavada; ficamos assim, por enquanto.
*Wilson Gomes é professor de Comunicação e Política da Universidade Federal da Bahia e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}