Um presidente negro que a história esqueceu
Se tivesse nascido uns trinta ou quarenta anos antes, Lobato provavelmente teria sido convidado para fazer parte da Fabian Society, que tinha entre seus membros H. G. Wells e Bernard Shaw, pregava o socialismo científico ou utópico e previa o progresso da humanidade por meio da ciênciaFábio Fernandes
Agora é oficial: Barack Obama é candidato à presidência dos Estados Unidos. Dizem observadores norte-americanos que, mesmo que ele não chegue à Casa Branca, já fez história, pois é o primeiro negro a chegar tão perto desse objetivo, como candidato do Partido Democrata.
Coincidência ou não, a Editora Globo, que começou o bem-vindo relançamento de toda a obra adulta de Monteiro Lobato no ano passado, acaba de publicar seu livro mais polêmico: O presidente negro. Publicado originalmente em 1926, portanto há 82 anos (e, curiosamente, no mesmo ano em que Hugo Gernsback, editor luxemburguês radicado nos EUA, iniciou a publicação da revista pulp Amazing stories e cunhou a palavra scientifiction, logo modificada para uma expressão mais fácil de pronunciar e que se tornaria imensamente mais popular, science fiction), foi o único romance para adultos de Lobato, e um livro explicitamente de ficção científica.
Não era de se espantar: Monteiro Lobato era fã de Henry Ford, defendeu o progresso industrial do Brasil, foi preso por Getúlio Vargas por insistir na exploração de petróleo em território nacional numa época em que isso não era interessante financeiramente para o Estado Novo, e era leitor de escritores de literatura de antecipação, como H. G. Wells, autor de A máquina do tempo. (Lobato, aliás, foi o primeiro tradutor de Wells no Brasil, bem como de Dashiell Hammett – foi dele a tradução de O falcão maltês – e da autobiografia de Henry Ford).
O porviroscópio
Entretanto, O presidente negro passou a ser uma imensa pedra no sapato de sua literatura, particularmente a partir da década de 1960, quase vinte anos após sua morte (e, convenientemente, quando não podia mais se defender), quando foi acusado de racismo.
Numa primeira leitura mais apressada, não é difícil chegar a essa conclusão (particularmente se o senso comum motivado por essas acusações já está no ar): afinal, a história do futuro, conforme descortinada pela máquina fantástica do dr. Benson, mostra um século 23 em que o conflito racial é resolvido por intermédio da eugenia, e um esforço da raça branca para erradicar completamente a raça negra, às vésperas da eleição para a presidência, disputada por uma mulher branca e um homem negro.
A história, entretanto, é mais complexa do que um breve resumo pode abarcar: em 1926, o carioca Ayrton Lobo sofre um acidente de automóvel (na época considerado a epítome do moderno e do progressista) na estrada Rio-Petrópolis e é socorrido por um recluso cientista, o dr. Benson, e sua linda filha Jane. Num longo período de convalescença, Ayrton (que logo se apaixona pela moça) se torna amigo e confidente do dr. Benson, um idoso filho de ingleses que inventou o porviroscópio, um aparelho capaz de ver o futuro como uma espécie de televisão holográfica. Benson mostra alguns vislumbres dos tempos que virão ao apalermado Ayrton, empregado submisso da firma Sá, Pato & Cia., cujos principais interesses são subir na vida e, depois de conhecer a filha do cientista, conquistar o seu amor.
O porviroscópio, legítimo dispositivo fantástico, é o mecanismo por intermédio do qual os personagens conseguem ver o futuro distante – por motivos que o próprio cientista desconhece, ele não vai além do ano 3527. Mas a época em que a história se detém é o ano de 2228, ano da eleição do 88º presidente dos Estados Unidos.
Dublê de Sherazade
A narrativa propriamente dita dos eventos relacionados a essa eleição é particularmente interessante, em primeiro lugar pela óbvia semelhança com o ano de 2008, em que uma mulher branca e um homem negro disputaram não ainda a presidência dos EUA, mas a candidatura de um dos principais partidos – e, como no livro, o negro vence. No livro, Jim Roy, o forte candidato negro, é considerado (até mesmo pelos brancos) uma espécie de novo Lincoln, que agora libertará de vez seus companheiros de raça do jugo branco ao qual têm sido submetidos há quatro séculos.
Evidentemente, isso provocará uma reação que se mostrará devastadora – tanto do ex-presidente, mr. Kerlog, quando da candidata derrotada, Evelyn Astor. O presidente negro não pode de forma nenhuma assumir o poder, e nesse caso, maquiavelicamente, para os brancos tudo é justificável.
O segundo ponto que me chamou particularmente a atenção na narrativa de 2228 é que ela não nos é demonstrada pelo porviroscópio: poucas semanas depois do acidente de Ayrton, o dr. Benson morre, e sem ele seu aparelho deixa de funcionar. Quem conta a história do que se passou em 2228 é a inteligente Jane, que teria ficado dias e dias acompanhando o desenrolar dos acontecimentos futuros no porviroscópio. Mas Ayrton, embora tenha visto previamente uma demonstração do aparelho, jamais vê o que realmente aconteceu com o presidente negro. Ouve e absorve sem pensar tudo o que a diligente e espertíssima Jane, dublê de Sherazade, vai lhe contando todos os domingos, sempre interrompendo a narrativa em pontos críticos para atiçar em Ayrton (como se ele precisasse) o desejo de voltar para vê-la.
Humor e ironia
Essa história fantástica que Ayrton Lobo ouve, mas cuja veracidade nunca comprova (nem lhe passa pela cabeça, pois está apaixonado por Jane), apresenta fragmentos de uma certa futurologia, como na passagem em que Jane descreve a Ayrton o que conheceríamos décadas depois, como o trabalho a distância, graças à ação do rádio. Mas não apenas trabalhará sem sair de casa, como mostra o seguinte comentário de Jane/Lobato:
– -No futuro o senhor Ayrton fumará a distância. Veja quanta economia de tempo e esforço humano!
Se tivesse nascido uns trinta ou quarenta anos antes, Lobato provavelmente teria sido convidado para fazer parte da Fabian Society, que tinha entre seus membros H. G. Wells e Bernard Shaw, pregava o socialismo científico ou utópico e previa o progresso da humanidade por meio da ciência (certamente não é coincidência alguma que o ministro da Eqüidade do governo Kerlog se chame Berald Shaw).
Mas, seguindo o bom espírito de Groucho Marx (de quem foi contemporâneo, e que dizia que não entrava para clube que o aceitasse como sócio), provavelmente a rejeitaria, seria um enfant gaté; certamente um enfant terrible. Pois, vivendo num país que rejeitava o progresso e ainda vivia no atraso tecnológico, Lobato reagia com uma arma poderosíssima, que os brasileiros sempre souberam usar muito bem (e ele mais do que todos): o humor.
Quem já viu os filmes de Kevin Smith e Quentin Tarantino vai entender melhor essa linha de raciocínio. Em O balconista, primeiro filme de Smith, dois funcionários de uma drugstore/locadora de filmes, sem ter o que fazer na loja às moscas, passam a discutir sobre o filme Guerra nas estrelas. Mas não é uma discussão qualquer: um deles inicia um discurso pseudomarxista sobre a condição dos operários que estavam construindo a Estrela da Morte no momento em que o bando de rebeldes liderado pelo mocinho Luke Skywalker a destrói. A argumentação do balconista é que, no fundo, o vilão é Luke, porque ele chega de supetão e deflagra um ataque terrorista, matando muitos pais de família que estavam ganhando seu pão honestamente construindo uma estação espacial. Com franqueza, senhores e senhoras meus leitores: alguém pode levar esse tipo de argumentação a sério?
Cabe lembrar que Lobato não era apenas leitor de Wells e Shaw, mas também de Jonathan Swift – que, além de escrever As viagens de Gulliver, também foi o autor de um panfleto satírico que muita polêmica causou na Irlanda de 1729: em A modest proposal, ele propunha que, para matar a fome, os irlandeses comessem seus próprios filhos. Houve quem acreditasse.
Acusações insensatas
O presidente negro tem semelhanças com dois tipos de narrativa de ficção científica: a narrativa “evolucionária”, como a escrita por Wells, em Things to come, e Olaf Stapledon, contemporâneo de ambos, autor de um clássico da FC esquecido entre nós, Last and first men. A diferença fundamental do livro de Lobato com essas duas histórias é que O presidente negro é uma distopia, ou seja, um livro que preconiza uma realidade anti-utópica, indesejável e muitas vezes aterradora. Nessa categoria, O presidente negro rivaliza com um livro escrito seis anos mais tarde, em 1932: Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, que parte de premissa semelhante: a depuração genética da raça humana (apenas para brancos, excluindo negros e indígenas, não nos esqueçamos).
Mas alguém realmente acredita que Lobato queria a erradicação dos negros?
Falta a um crítico que eventualmente analise mais a fundo esse único romance adulto de Lobato a percepção do contexto histórico em que ele foi escrito. Uma época muito anterior ao nazismo, em que se acreditava na eugenia primordialmente como uma questão de saúde pública (e era com essa questão que Lobato mais se importava, como quando escreve sobre o Jeca Tatu; num primeiro escrito, Lobato chega a acreditar que o Jeca é como é por uma questão genética, e nisso é preconceituoso; mas em pouco tempo se convence de que seu preconceito é uma bobagem, e que o caipira é “preguiçoso” devido a uma série de doenças que, se combatidas, tornarão o caipira um cidadão produtivo como qualquer outro).
As críticas eventuais a um pretenso racismo odioso de Lobato lembram a biografia de Bing Crosby escrita por seu filho em 1977, em que ele acusava o pai (recém-falecido) de ser uma pessoa descontrolada… porque batia nos filhos com cinto! Crosby de fato fez isso… na década de 1930, num tempo em que os pais, avós ou bisavós de vários que lêem este texto sofriam o mesmo tipo de castigo físico. Isto é uma defesa de Bing Crosby e de seu método de educação dos filhos? De jeito nenhum. É uma constatação de que naquela época isso era o que o senso comum ditava. Hoje nossa visão de mundo nos diz que isso é errado. Mas deve-se medir uma pessoa dos anos 1920 pela régua do século 21? Não é a toa que algumas das melhores biografias (como a de Einstein escrita por Ronald Clark) têm como subtítulo His life and times; ou seja: Sua vida e sua época. Porque analisar a vida de uma pessoa pelos nossos paradigmas é, além de insensato, um tantinho covarde (porque acusar é fácil, ainda mais a quem já morreu e não pode replicar).
Não deixemos o senso comum ditar a nossa opinião sobre o livro de Lobato.