Um programa educacional transformador
No lugar da revolução pela economia, especialmente por meio da propriedade estatal do capital e por um Estado onipresente e autoritário, o educacionismo propõe uma saída pela igualdade no acesso de cada pessoa à educação de qualidade, tendo em vista sua emancipação e capacidade de participação em um projeto libertário
O desemprego não permite a espera por uma reorientação ideológica. Por isso a saída para o atual colapso global ainda será keynesiana. Entretanto, é preciso que seja um tipo de keynesianismo adaptado à realidade dos novos tempos, a favor da solução para o conjunto das crises que o mundo atravessa, não só a financeira e a econômica, mas também as outras.
Um caminho é um keynesianismo social no lugar do keynesianismo tradicional. O keynesianismo tradicional consiste na busca de ampliação da demanda agregada, usando recursos públicos para empregar mão-de-obra – ainda que para produzir bens sem finalidade para as necessidades do consumidor, como monumentos suntuosos e tanques de guerra. Assim, o trabalhador ganha apenas para comprar os produtos que dinamizam a oferta privada. Já o keynesianismo social propõe usar os recursos do Estado para financiar o emprego de mão-de-obra, com o objetivo de produzir bens públicos que a população precise. Nesse caso, a ampliação da demanda por bens privados vem como consequência da produção de bens e serviços públicos de interesse da população.
Um exemplo de keynesianismo social é o Bolsa Escola, programa pelo qual o governo cria demanda pagando às famílias pobres para agirem como promotoras da frequência escolar de seus filhos: cria-se a demanda econômica, mas como consequência da ampliação do serviço público de educação, desde que, obviamente, sejam feitos os investimentos necessários no setor. O Bolsa Família, por outro lado, não apresenta o mesmo compromisso educacional e é um programa próximo do keynesianismo tradicional: a família recebe a renda, compra comida e bens de baixo custo sem gerar uma oferta pública que solucione seus problemas, apenas mantendo-as vivas.
O conceito de keynesianismo social está formulado no livro A segunda abolição – uma proposta para a erradicação da pobreza no Brasil, publicado em 19991. Nele são propostos diversos instrumentos de política pública capazes de empregar a população pobre para produzir o que a mão-de-obra pobre precisa dispor para sair da pobreza, ao mesmo tempo ampliando a demanda agregada, necessária para dinamizar a economia. Os gastos públicos são, ao mesmo tempo, instrumento de dinâmica econômica e vetor para a solução das outras crises. Por exemplo: o emprego de verba para o reflorestamento, a recuperação de rios, a construção de sistemas de água e esgoto e a limpeza urbana, além de gerar renda, também levou a uma redução na degradação ecológica. E é sobretudo na educação que o keynesianismo-social pode ter seu maior impacto.
Listo a seguir algumas ações educacionistas para um programa baseado no keynesianismo social:
a) Abolição do analfabetismo
O Brasil tem cerca de 16 milhões de adultos analfabetos. É possível mudar essa situação em apenas quatro anos. Bastaria contratar 100 mil alfabetizadores e colocar outras 10 mil pessoas no apoio necessário. Esses profissionais a serem contratados já existem: são jovens desempregados que concluíram o segundo grau.
O Brasil pode, ao mesmo tempo, erradicar a tragédia do analfabetismo e ainda executar um programa de geração de emprego muito maior do que é possível no setor industrial, a um custo muito menor. Países como a Venezuela e a Bolívia têm iniciativas desse tipo que independem da crise econômica e que estão vinculadas ao compromisso ético com suas populações. Nenhum incentivo em qualquer área da economia, salvo a construção civil, seria capaz de criar 120 mil empregos, como ocorreria de imediato com um programa de alfabetização. Pagando um salário de R$ 800 para um trabalho de apenas dez horas semanais, o custo total seria inferior a R$ 1 bilhão por ano.
b) Bolsa Escola
Para transformar o programa Bolsa Família do keynesianismo tradicional, econômico, para o keynesianismo social, bastaria complementá-lo com os necessários investimentos em educação. Com rigor no controle da frequência às aulas em escolas de qualidade, o programa não funcionaria apenas como transferência de renda, mas teria impacto sobre a demanda e a produção de bens populares. E, sobretudo, teria um efeito transformador na sociedade.
c) Salário do professor
O puro e simples aumento do salário do professor, sem melhor formação e maior dedicação, seria apenas um gesto de aumento da demanda agregada, keynesianismo tradicional. Porém, se esse incremento salarial vier acoplado a uma melhora na qualidade, haverá um efeito imediato na transformação social do país. Para obter-se um aumento na demanda agregada, simultaneamente com a melhoria na quantidade e na qualidade da educação, bastaria, de início, um salário adicional – o 14o salário condicionado – para os professores, vinculado ao avanço no índice Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) da escola.
Se todos os 2 milhões de professores do Brasil conseguissem a elevação no Ideb, o Brasil daria um enorme salto na qualidade de sua educação a um custo de R$ 2 bilhões por ano. Lamentavelmente esse custo será muito menor, porque nem todas as escolas conseguiriam essa elevação. Mesmo assim, é uma ação de keynesianismo social beneficiando a demanda exercida pelo professores e elevando qualidade da escola.
d) Formação do professor
A qualidade da educação depende, sobretudo, da formação do professor aliada a sua dedicação. Com um investimento de R$ 1 bilhão por ano nas universidades brasileiras seria possível orientar programas intensivos, presenciais e à distância para a formação de professores.
e) Construção e reforma de escolas
A visão tradicional de ampliação da demanda agregada pelo investimento na construção civil como forma de aumentar a massa salarial dos trabalhadores é um programa eficiente, tanto do ponto de vista da moradia quanto da economia, para a crise no sistema. Mas o efeito na demanda pode vir associado a outro imediato na transformação social, se os recursos financeiros forem usados para a construção de escolas, levando ao enfrentamento na crise do sistema. A um custo médio de R$ 250 mil por unidade escolar é possível reconstruir e fazer reformas, construir quadras esportivas e auditórios em cada unidade escolar. Com R$5 bilhões por ano seria possível mudar completamente a realidade das 200 mil escolas brasileiras em um prazo de dez anos.
f) Equipamento e transporte escolar
Mais uma vez fica explícita a diferença entre a visão tradicional e a visão transformadora, quando se imagina crédito para financiar equipamentos e automóveis para atender a demanda privada e quando se
investe na compra de equipamentos e transportes escolares para atender a demanda pública das escolas. A um custo de R$ 1 bilhão por ano é possível obter o equipamento necessário (computadores, vídeos, televisão, internet) para todas as escolas brasileiras em um período de 10 anos, incluindo a compra de softwares e o treinamento de professores. Com R$ 2 bilhões é possível comprar anualmente até 60 mil veículos leves de transporte escolar, dinamizando a indústria automobilística e criando um sistema eficiente para a mobilização de alunos.
g) Custo total
O custo total desse programa keynesiano social, educacionista e transformador seria de R$ 12 bilhões por ano. Apenas pouco mais de 1% do orçamento do setor público brasileiro, valor muito inferior aos bilhões que estão sendo gastos para tentar recuperar a venda de produtos para atender a demanda privada, enfrentando a crise no sistema, no lugar da crise do sistema.
Essa é uma alternativa keynesiana-educacionista que o presidente Obama está, em parte, executando, ao reservar cerca de 25% de seu Programa de Recuperação para Investimentos em Educação. Já o presidente Roosevelt tinha em seu programa, de 80 anos atrás, investimentos em educação, como pode ser visto no livro The Forgotten Man. Lamentavelmente, o Brasil está seguindo o caminho contrário: o orçamento para 2010 chegou ao Congresso com R$ 1,2 bilhão a menos do que o previsto para a Educação. Foi preciso uma grande mobilização, especialmente do ministro Fernando Haddad e de alguns congressistas, para conseguir rever o desastre que seria o corte de verbas. Mesmo assim até hoje há resistência, porque dentro da visão conservadora do keyensianismo tradicional muitos ainda consideram que esses recursos seriam mais bem empregados na realização de obras de infraestrutura para a indústria, em vez da educação.
Além da crise
Embora a saída keynesiana-educacionista seja um instrumento imediato para ajudar a retomar o crescimento, induzindo mudanças estruturais, ela seria apenas um ponto de partida para uma revolução muito mais profunda, por meio da educação. Da mesma forma que as propostas dentro do marco capitalista foram incapazes de construir uma civilização equilibrada – ética, ecológica, financeira e socialmente – as propostas socialistas não estão neste momento na agenda social do mundo por total falta de definição conceitual e de condições políticas. A realidade das últimas décadas, depois da crise das propostas socialistas, exige uma proposta revolucionária alternativa. É o que propõe o educacionismo2.
No lugar da revolução pela economia, especialmente por meio da propriedade estatal do capital e por um Estado onipresente e autoritário, o educacionismo propõe uma saída pela igualdade no acesso de cada pessoa à educação de qualidade, tendo em vista sua emancipação e capacidade de participação em um projeto libertário, pessoalmente e coletivamente.
No lugar da visão de desapropriar o capital do capitalista e passá-lo às mãos do trabalhador, por meio da máquina do Estado, o educacionismo propõe levar o filho do trabalhador à mesma escola do filho do capitalista, por meio da escola pública. Essa revolução permitiria, ao mesmo tempo, distribuir o verdadeiro capital do futuro, o conhecimento, criar uma sociedade libertária e assegurar a igualdade de oportunidades dentro da sociedade.
A estatização do capital seria substituída pela publicização do conhecimento, e o conservadorismo da promessa ilusória da igualdade no acesso ao consumo de bens privados seria substituído pela radicalidade da igualdade na educação, o filho do trabalhador na escola do filho do patrão.
Ficaria faltando que sejam definidos:
• um limite social, abaixo do qual nenhuma pessoa estaria; graças a programas sociais e assistenciais, o Estado asseguraria condições para todos acima dessa linha básica de necessidades.
• um limite ecológico, acima do qual ninguém teria o direito de estar, com o Estado definindo regras que impediriam o consumo de bens e serviços ameaçadores ao equilíbrio ecológico.
Dentro desses dois limites, a desigualdade seria definida em razão do talento e da persistência como cada pessoa usaria os recursos educacionais igualitários colocados à disposição pela sociedade, por meio do Estado.
Plano Marshall global pela educação
A verdadeira causa da crise está nas características depredadoras de riqueza como meio de criar renda e consumo, e na forma privilegiada como essas rendas são distribuídas e consumidas. Depreda-se a natureza por excesso de poluição e uso de recursos naturais; as culturas, pelo etnocídio da globalização; as mentes, pelo abandono da educação. Privilegiam-se as gerações atuais em relação às futuras; e as classes altas, em detrimento da baixas; porque é impossível garantir a manutenção do consumo ao longo das décadas futuras e ainda menos possível espalhar para todos o consumo dos bens de luxo que beneficia os habitantes da modernidade.
A solução está em uma mudança do modelo civilizatório, de forma a parar a depredação e eliminar os privilégios. O caminho é uma revolução na mentalidade, só possível pela educação de qualidade para todos. Ao mesmo tempo que a revolução na mentalidade interrompe a depredação e elimina os privilégios, ela potencializa o uso dos cérebros humanos de toda a humanidade e enriquece o mundo com a ampliação do capital conhecimento em escola global. Essa libertação e aproveitamento da estrutura mental levarão à criação de soluções − no lugar da atual geração de problemas –, graças ao uso da inteligência.
Para isso é preciso uma reorientação mundial. Com o fim da Segunda Guerra, graças a instituições internacionais, o mundo iniciou um processo de desenvolvimento econômico, tanto entre os países socialistas, quanto entre os países capitalistas. A recuperação e o longo prazo de ampliação da riqueza foram produto de diversas instituições das Nações Unidas e do Plano Marshall, que levaram investimentos, regras e formação técnica aos países que precisavam de apoio internacional.
Mas foi o êxito dessas instituições e desse plano que provocou as características depredadoras e privilegiadoras. Porque estava ancorado ao aumento da produção dos bens de luxo produtores de lixo e na concentração da renda para compra desses produtos caros. A crise atual vai exigir um novo programa mundial, orientando, desta vez, para o social. Um Plano Marshall pela Educação Mundial seria o caminho para a mudança de mentalidade e para a ampliação do capital conhecimento que o mundo exige para iniciar sua revolução, revertendo as características depredadoras e privilegiadoras, enfrentando a crise do sistema e não apenas a crise no sistema.
*Cristovam Buarque é Senador da República (PDT-DF). Foi ministro da Educação (2003-2004) e reitor da UnB (Universidade de Brasília).