Uma aproximação em meio à tragédia ainda é possível?
Associação Shalom, Salam Paz, formada em 2000 foi primordial para o retorno da visibilidade da causa palestina no cenário brasileiro
“Nós, israelenses e palestinos, nos vimos na mais difícil circunstância para nossos dois povos. Viemos juntos para clamar pelo fim do derramamento de sangue, o fim da ocupação, um retorno urgente às negociações, e a realização da paz entre nossos povos. Recusamos ser coniventes com a corrente deterioração da nossa situação, com a crescente lista de vítimas, o sofrimento e a real possibilidade de que sejamos tragados num mar de hostilidade mútua.
Nós, pela presente, erguemos nossas vozes e imploramos a todas as pessoas de boa-vontade para voltar a sanidade, a redescobrir a compaixão, humanidade e o julgamento crítico, e a rejeitar os apelos fáceis do medo, ódio, e clamores por vingança”
[Declaração conjunta israelense-palestina, redigida em uma reunião em Jerusalém no ano de 2002. Dentre os signatários palestinos e israelenses, se destacam a do então ministro da cultura da Palestina, Yasser Abed Rabbo; do escritor palestino, Abdul-Rahman Awad; do escritor e ativista israelense Amos Oz e, do escritor David Grossman.]
No ano 2000, durante a Segunda Intifada palestina, conhecida como Intifada Al Aqsa, foi formada uma associação entre judeus e palestinos na cidade de São Paulo, conhecida como Associação Shalom, Salam, Paz. A ideia de aproximação aconteceu após um dos dirigentes da Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL), ler no jornal um manifesto em repúdio à presença do então líder do partido Likud e responsável pelo massacre de civis palestinos nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no contexto da guerra do Líbano em 1982, Ariel Sharon, no Monte do Templo e na esplanada das mesquitas em Jerusalém. Na ocasião, a presença ostensiva e provocativa de Ariel Sharon a um dos locais mais sagrados pelos muçulmanos revoltou a população palestina. Foi a partir de então que se iniciou uma série de confrontos, conhecido como a segunda Intifada em Israel e nos territórios palestinos ocupados. Ainda, para a surpresa desse leitor, o texto do manifesto, além de ser assinado por uma entidade judaica, Shalom Achshav, considerou a Intifada como a tradução da luta nacional de libertação do povo palestino.
Ao final do texto havia um abaixo assinado com o nome daqueles que endossavam o manifesto em repúdio à violência nos territórios ocupados. O estranhamento causado por uma manifestação publicada em um jornal de grande circulação entre algumas lideranças palestinas-brasileira, ocorria em razão de que não eram eles próprios, a comunidade árabe e palestina, que se manifestavam, mas “os outros”.
No fim de 1990 e início dos anos 2000, diante do desânimo gerado pelo aumento vertiginoso da violência nos territórios palestinos, a FEPAL já não oferecia uma programação cultural, como costumava oferecer ao público. Nesse aspecto, a formação do Shalom, Salam, Paz foi primordial para o retorno da visibilidade da causa palestina no cenário brasileiro. Dessa vez, através da aparição de um palestino ao lado de um judeu na televisão, nas universidades e em alguns eventos políticos-culturais em algumas cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.
Os judeus que ingressaram no Shalom, Salam, Paz provinham de movimentos juvenis judaicos, de tendência socialista, como o Dror e o Hashomer Hatzair, ambos os movimentos já apoiavam a ideia de dois Estados para dois povos. Além disso, eram contrários à ocupação. Por outra parte, os palestinos que se engajaram nesse movimento vieram em minoria porque, de um modo geral, tinham um receio real do risco de se associarem a um grupo que poderia ter a intenção de equalizar os dois lados do conflito Israel-Palestina.
O grupo Shalom, Salam, Paz tinha como propósito comum o reconhecimento de um Estado palestino livre e soberano nas fronteiras de 1967; o retorno dos refugiados, de acordo com a resolução nº 191 da ONU e a retirada dos assentamentos dos territórios ocupados.
O processo de formação do Shalom, Salam, Paz não foi fácil e instantâneo. Foi necessário muitas reuniões e diálogos intermináveis até decidirem por um consenso e a institucionalização. Na ocasião, houve muita pressão por parte da embaixada de Israel para que esse projeto e essa ideia não vingassem. No entanto, no esforço para que o projeto de ONG se concretizasse, foi redigido um estatuto. Nesse documento, foi estabelecido que todos os integrantes reconheciam e aceitavam todas as resoluções da ONU referentes à questão da Palestina desde 1947, ou seja, ambos estavam de acordo com a partilha da Palestina.
Assim que formalizada, a ONG Shalom, Salam, Paz organizou uma exposição de gravuras de obras de arte de artistas israelenses e palestinos que denunciavam os prejuízos da ocupação. A exposição tinha como curador o renomado artista plástico Gershon Knispel.
Para além do conflito Israel-Palestina, os integrantes do Shalom, Salam, Paz eram constantemente convidados a participarem de entrevistas e debates sobre as repercussões dos ataques de 11 de setembro de 2001 e sobre as guerras no Afeganistão e Iraque. Essa era uma oportunidade para desmistificar alguns estereótipos no imaginário brasileiro como o árabe, o judeu, o Islã, o terrorismo, o ocidente e o oriente.
Os desgastes gerados pelos constantes debates ideológicos entre os integrantes do Shalom, Salam, Paz contribuíram para que a ONG existisse por 2 anos. Contudo, apesar do curto tempo de existência, o projeto institucional de aproximação entre judeus e palestinos teve um saldo positivo. Naquela ocasião, parte da audiência brasileira passou a assistir as notícias referentes à violência da segunda Intifada e das guerras, decorrentes do 11 de setembro, sob uma ótica inclusiva e universal, daqueles que, de fato, repudiam o racismo e a violência. Nesse período, a aparição de um judeu ao lado de um palestino nos meios de comunicação do Brasil ajudou o público a compreender a causa palestina como uma questão humanitária e não através de uma expressão maniqueísta, de judeus contra os árabes.
A experiência com ONG, do mesmo modo, fortaleceu a FEPAL que, conforme mencionado, passava por um período sem programação, em razão do desânimo gerado com o aumento da violência no Oriente Médio. Em meados dos anos 2000, a FEPAL realizou alguns congressos e eventos importantes na cidade de São Paulo.
Mesmo diante de grandes tragédias, a escolha por uma diversidade harmoniosa é uma demonstração de amor a vida, por parte daqueles que se recusam a se resignarem à atual ameaça de aniquilamento.
As filiações políticas se exacerbaram ao redor do mundo, desde a queda do muro de Berlim, sobretudo as filiações referentes à identidade e a religião. O que torna a coexistência entre as diferentes comunidades humanas cada vez mais difícil. A passagem entre as disputas ideológicas para as atuais disputas identitárias produz efeitos avassaladores no planeta, mas nenhum lugar é tão devastador como no Oriente Médio. O radicalismo religioso, até então minoritário e perseguido, ganhou predominância maciça no seio dessas sociedades, assim como nas diásporas.
Tendo em vista que os valores da universalidade e da humanidade são indivisíveis, torna-se um erro imperdoável recusar a transmissão desses princípios fundamentais a certas esferas sociais, sob a justificativa de que alguns povos não estão preparados para adotá-los. Segundo Amin Maalouf (2012), “não existem direitos humanos específicos para a Europa e outros direitos humanos para a África, a Ásia e o mundo muçulmano (p. 63).
Muitos árabes, israelenses e, suas diásporas, consideram como inimigo qualquer um que permanecem sendo favoráveis a uma eventual ideia de reconciliação com os “outros”. Infelizmente, populações de origens múltiplas continuam a se enxergarem através de prismas deformadores e, de algumas ideias e preconceitos herdados. Nesse aspecto, uma mudança efetiva, traduzida por uma convivência harmoniosa somente seria possível através de uma aproximação mais efetiva. “Porque, quando dizemos “os outros”, nunca devemos perder de vista que nós próprios, quem quer que sejamos, somos também “os outros” para todos os outros”. (MAALOUF, p. 200)
Milhões de migrantes e refugiados participam generosamente da vida intelectual, social, política e econômica dos países que os acolheram, inclusive no Brasil. A contribuição cultural permite à sociedade obter a capacidade de conhecê-los mais intimamente, em toda sua diversidade e complexidade. A coexistência harmoniosa, nesse passo, é indispensável ante o isolamento gerador de confrontos e de ódio. Imigrantes e refugiados que assumem sua dupla origem podem ser considerados mais aptos a romperem tais isolamentos.
Um projeto promissor, é o incentivo às diásporas árabes e judaicas a tomarem a iniciativa de uma aproximação saudável, ao invés de intensificarem confrontos estéreis que debilita a sociedade e, sobretudo, a política do Oriente Médio. Essa aproximação ocorreu no Brasil em dois momentos históricos: durante a curta existência do Shalom, Salam, Paz e, em um evento institucional, Lado à Lado – A construção da paz no Oriente Médio: um papel das diásporas, idealizado pelo Ministério das Relações Exteriores, mais especificamente, após o então ministro Antônio Patriota ler o livro O mundo em desajuste – Quando nossas civilizações se esgotam (2012), de Amin Maalouf.
Em julho de 2012, o debate intitulado Lado a Lado, contou com a participação de autoridades e de acadêmicos das comunidades árabes e judaicas do Brasil, de Israel e da Palestina, entre eles o embaixador da Palestina no Brasil, Ibrahim Al-Zeben, o escritor franco-libanês, Amin Maalouf, o jornalista Henrique Cymerman e o presidente da Sociedade Acadêmica Palestina para o Estudo de Assuntos Internacionais, Mahdi Abdul Hadi. O evento foi um chamado do governo brasileiro para as diásporas colaborarem para o fortalecimento dos diálogos entre Israel e o mundo árabe. Desde essa ocasião, o Brasil tinha a intenção em se tornar o mediador do conflito Israel-Palestina.
A tragédia avassaladora no Oriente Médio, infelizmente, impede uma aproximação semelhante ao Shalom, Salam, Paz (2000) e ao evento Lado a Lado (2012), no momento presente. Após os ataques do dia 7 de outubro de 2023, as manifestações das comunidades árabes e judaicas pelo cessar fogo acontecem separadamente. Embora existam grupos de diálogos entre palestinos e israelenses em Israel, como o Standing Together, aqui no Brasil, praticamente não há mais projetos nesse sentido, com exceção de algumas experiências de diálogo inter-religioso.
Desde o agravamento da guerra, a aparição conjunta de um sheikh muçulmano, ao lado de um padre católico e de um rabino, em manifestações e em eventos temáticos, chama a atenção e influencia, de modo positivo, os mais religiosos a se pronunciarem na busca por um entendimento, pela justiça e por reconhecimento, sobretudo entre aqueles que repudiam veemente as violações perpetradas pelo extremismo, em nome da religião. No dia 11 de setembro de 2024 o rabino Alexandre Leone esteve presente no Centro Islâmico Fátima Az-Zahra em solidariedade ao ato de vandalismo causado por oponentes políticos à candidatura do sheikh Rodrigo Jalloul ao cargo de vereador em São Paulo. Mais adiante, no dia 4 de outubro de 2024, o sheikh Rodrigo Jalloul esteve, presencialmente, na celebração do Ano Novo judaico na Beit Midrash Massoret.
Em um contexto em que a solução de dois Estado já não é mais possível, a aproximação é um único caminho entre àqueles que passarão a conviver, em um mesmo território. Por isso, vale a pena continuar a insistir no diálogo e na aproximação, sobretudo, nos espaços acolhedores da diáspora.