Uma década de desestabilização e guerra híbrida
A desestabilização política não é novidade no continente, assim como suas motivações. Na atualidade, porém, tem colocado em risco o horizonte de maior autonomia para os países latino-americanos. O Brasil, como detentor de metade da riqueza, da população e do território da placa sul-americana, é o fiel da balança entre o nacional-desenvolvimentismo da região e o facholiberalismo. Confira no novo artigo da série Desafios da integração
Para compreender a magnitude dos desafios impostos para a integração solidária dos países da América Latina nessas primeiras décadas do século XXI, no sentido de construir múltiplos polos de poder entre os países e mudar a existência cotidiana das pessoas, ampliando as condições de bem-estar socioambiental e o acesso aos territórios de direito, é necessário pensar a realidade em níveis distintos de escala e de tempo. Debruçar-se sobre os eventos que têm se desenrolado no Brasil, desde a última década até chegar à tentativa de assalto à alta cúpula do poder do Estado, em 8 de janeiro, parece cada vez mais importante para tornar legíveis os caminhos possíveis e os obstáculos para a América Latina e em particular para a América do Sul como região.
As grandes manifestações de rua contra o aumento das tarifas de ônibus no Brasil, iniciadas na cidade de São Paulo em 2013, conhecidas como Jornadas de Junho, apesar de terem sido provocadas por pequenos grupos de esquerda, ofereceram a rachadura conjuntural para que as reivindicações a respeito do direito à cidade – a partir do direito ao transporte, nesse caso – se transformassem numa agenda ampla de fascismos sociais e ultraliberalismos típicos de desestabilizações políticas, revoluções coloridas e redefinições da economia política. Elas foram lançadas para transferir renda e riqueza pública e renda e riqueza do trabalho para corporações nacionais e internacionais, mediante realinhamento dos seus respectivos governos à via de hegemonia dos países do Atlântico Norte, especialmente dos Estados Unidos.
Esse conjunto de eventos, com desdobramentos na economia política dos países alvos, ficou conhecido no meio acadêmico e militar como guerra híbrida. Nos moldes atuais, com uso massivo de intervenções eleitorais, golpes parlamentares, guerra jurídica (lawfare), difusão de desinformação e mentiras em múltiplas plataformas e redes sociais digitais (firehosing), mobilização de milícias armadas e milícias cibernéticas, e o levante de segmentos sociais radicalizados, dependendo do lugar, por um misto de militarismo, ufanismo, fundamentalismo religioso e fascismo, e, em alguns casos, por um misto de reivindicações identitárias (de gênero, raciais, sexuais) contra a cúpula do Estado alvo, varreram a Ásia Central, os Balcãs, o Cáucaso, o Oriente Médio e o Norte da África ainda na década de 2000. Na década de 2010, passou a desestabilizar também a América Latina, com o refluxo dos Estados Unidos para sua região de entorno, enquanto sua liderança hegemônica se deparou com a ascensão galopante da China. Nesse movimento, a guerra híbrida chegou ao Brasil e à América do Sul.
Pêndulo regional
Embora o Brasil seja arrastado para os interesses estratégicos dos países centrais, especialmente dos Estados Unidos e cada vez mais da China, a economia política brasileira exerce uma força de liderança sub-hegemônica em relação aos países da América do Sul.
A disputa pelo Brasil funciona como um pêndulo para a economia política da região, arrastando parte dos demais países para sua via de desenvolvimento, ou melhor, para sua via de subordinação, considerando que estamos falando do país que concentra metade da produção de riqueza, metade da população e metade do território da placa sul-americana. A maneira como a América do Sul se submete ou resiste às pressões dos países que lideram o sistema internacional passa pelo Brasil.
O presente e o que será da região nas próximas décadas são uma espécie de convergência de tempos que movimenta a escala do sistema internacional e a escala de estruturação do Estado brasileiro. Assim, é preciso distinguir dois momentos na formação socioeconômica da região. O primeiro refere-se a como o Brasil e a América do Sul se comportaram durante os períodos relativos às hegemonias do sistema internacional, com os domínios sucessivos dos países ibéricos (século XVI ao XVIII), do Império Britânico (século XIX) e dos Estados Unidos (século XX); e o segundo, a como se comportaram e se comportam atualmente durante a transição de uma hegemonia a outra, nesse caso, submetidos a uma transição hegemônica sob ataque híbrido.
Considerando o período sob a influência das hegemonias, Brasil e América do Sul participaram num primeiro momento como uma grande fronteira agroextrativista dos países ibéricos, com sua consequente concentração agrária, expropriação de terras nativas, superexploração do trabalho e aniquilação das populações indígenas. Ao tempo que tornou exponencial o horroroso e trágico comércio de pessoas tornadas escravas oriundas do continente africano.
O Brasil e a região passaram a participar de uma economia-mundo no qual a acumulação por despossessão de terras e trabalho foram a tônica, enquanto a vida cotidiana de nativos e cativos se transformou numa condenação ininterrupta.
Durante a hegemonia britânica, os lugares de produção agrícola e extrativismo que conseguiram se enquadrar nas novas condições históricas do século XIX, mediante a alteração de sua matriz territorial, transformaram-se em complexos agroextrativistas mecanizados, com a incorporação das técnicas da primeira revolução técnico-agrícola levada a cabo pelos britânicos, na esteira da primeira revolução industrial.
Os trabalhadores cativos deixaram a escravidão sem sair da superexploração do trabalho, o mercado de escravos, principal mercadoria das primeiras hegemonias do capitalismo (Portugal, Espanha e Holanda), deu lugar ao mercado de terras e consolidou os ruralistas como classe. Os antes mercadores de escravos e concessionários de terras se tornaram donos do território.
As diversas classes ruralistas da região foram o Estado antes do Estado, e, naquele momento, durante todo o século XIX, incorporaram um nacionalismo econômico agrário, alinhado às concepções britânicas de vantagens comparativas e às sofisticadas práticas de brutalização das populações nativas e ex-escravas. Num pacto entre as novas elites nacionais e os interesses britânicos na região, Brasil e América do Sul enriqueceram suas elites agropolíticas, acessando o espaço de fluxos de mercadorias, capitais e cargas globais e oferecendo a marginalização econômica e política aos trabalhadores afroindígenas do período anterior.
No período de formação dos Estados nacionais na região, nativos e ex-cativos continuaram como os condenados da terra, migrando aos poucos e aos montes para as favelas, as villas, os cantes, os barrios malos ou mesmo as chacaritas das cidades metropolitanas que nasceram para dar condição territorial, econômica e política às elites agroextrativistas que se estabeleceram e fizeram do Estado e do território nacional o seu patrimônio.
Nativos indígenas e ex-cativos africanos passaram a experimentar a vida como lumpemproletariado, enquanto em alguns dos países imigrantes europeus foram atraídos por políticas de embranquecimento dos novos Estados, para então se constituírem na primeira geração de proletariado urbano. Para a contenção de ambos, a militarização da vida foi fundamental. O campo militar nascente deu suporte à repaginada elite ruralista e suas tropas auxiliares, e as polícias, de quebra, promoveram na vida cotidiana a brutalização dos pobres, nativos e negros, onde quer que estivessem.
Sob a hegemonia da potência estadunidense, os países da região foram divididos entre os de industrialização auxiliar aos próprios Estados Unidos, é o caso de Brasil, Argentina, Colômbia, México e Chile, e os que continuaram essencialmente como fronteira e complexo agroextrativista, como ocorreu com os países da América Central e alguns da América do Sul, como Paraguai, Bolívia, Equador, as Guianas, dentre outros.
Nos primeiros, as elites nacionais foram sendo reorganizadas para um nacional-desenvolvimentismo no qual as elites agroextrativistas, com suporte dos segmentos militares, utilizaram as estruturas territoriais para industrializar a economia e introduzir as técnicas de motorização na indústria e nas infraestruturas logísticas. No segundo grupo de países, o capitalismo agrário liberal foi sendo repactuado sob a roupagem da economia neoclássica e sua versão antipopular e anticomunista, até que nos anos de 1970 passaram diretamente ao neoliberalismo.
À demanda do lumpemproletariado de origem nativa e africana somaram-se as demandas do proletariado europeu recém chegado, obrigando os países de orientação nacional-desenvolvimentista a emular um pacto fordista entre capital e trabalho na economia urbana, enquanto a economia agrária manteve um controle social com mecanismos de violência direta.
Transições
Há pelo menos duas décadas o mundo inteiro experimenta um novo período de transição de hegemonia. A formação dos Brics, a galopante ascensão chinesa e a reorganização das estruturas Estado-territoriais russas, paralelamente aos atentados de 11 de setembro de 2001, à fragilidade das estruturas territoriais dos Estados Unidos durante os estragos do Furacão Katrina em 2005, à crise imobiliária de 2008 e aos mais de 100 milhões de contaminados e 1,1 milhão de mortos da pandemia de Covid-19 nos Estados Unidos são expressões da mudança geográfica do centro do capitalismo e do sistema internacional do Atlântico Norte para a Eurásia, após cinco séculos de hegemonia e após ao menos meio século de hegemonia estadunidense.
Da transição ibérica à hegemonia britânica, as elites nacionais da América do Sul levaram a cabo um projeto de apagamento das populações nativas e ex-cativas, o mercado de terras que se estabeleceu na região durante o século XIX criou as primeiras gerações de sem-terra, as políticas de embranquecimento no Brasil, por exemplo, se transformaram rapidamente em mecanismos de brutalização das populações negras nas cidades, por meio das instituições de segurança militarizadas.
Com a hegemonia dos Estados Unidos, as intervenções eleitorais, os golpes de Estado, as desestabilizações e as violências políticas foram radicalizadas para ajustar a sociedade civil à emulação do american way of life da potência hegemônica. Os diversos choques econômicos foram literalmente conjugados com os choques elétricos nos corpos de opositores políticos, dos sociais-democratas aos socialistas. O autoritarismo político, o liberalismo econômico e a tortura passaram a compor a gestão do Estado na América Latina.
Acelerada a crise de hegemonia dos Estados Unidos nos anos 2000, pela primeira vez a região passou a se comportar como ente geopolítico capaz de buscar se reposicionar diante dos países hegemônicos. Brasil, Argentina, Uruguai, Equador, Venezuela e Paraguai, dentre outros, passaram a pactuar formas distintas de social-democracia, numa articulação regional que se expressou nas relações Sul-Sul e na busca pela integração latino-americana, sem contudo deixar de lidar com as desvantagens históricas das populações nativas e dos segmentos de ascendência africana.
Conciliando o aumento da renda do trabalho, alguns mecanismos de proteção social, salário indireto e financeirização do consumo, os países da região esboçaram um processo de integração regional relativamente bem-sucedido, que se concretizou na formação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), ainda em 2008, e esboçou um domínio no Atlântico Sul.
O reposicionamento da região se tornou crítico na década de 2010. Ao perder paulatinamente o controle do espaço de fluxos econômicos globais em toda a Eurásia, os Estados Unidos adotaram para a região a política de desestabilização, revoluções coloridas e reboot da economia política nacional.
Esses ataques híbridos tiveram dois objetivos estratégicos: primeiro, realinhar as economias dos países alvos aos Estados Unidos, uma vez que pouco a pouco a China tem colocado na sua esfera de influência a maior parte dos países do mundo. Segundo, radicalizar a desestruturação dos instrumentos regulatórios dos Estados, mercantilizando recursos, terras, trabalho e direitos, com a radical transferência de renda dos segmentos que vivem do trabalho para os segmentos proprietários e a transferência da renda pública para corporações nacionais e estrangeiras.
Facholiberalismo
O Brasil da década passada se tornou a maior experiência de guerra híbrida, desestabilização e reboot da economia política como resultado da convergência principalmente de think tanks e instituições estatais estadunidenses, ruralistas, militares e rentistas nacionais. Por meio das corporações midiáticas e depois pela difusão de desinformação, eles arrastaram segmentos médios e populares para uma redefinição que misturou fascismos sociais – intensificando políticas de marginalização e controle – e políticas ultraliberais – implodindo os instrumentos regulatórios do Estado –, enquanto radicalizaram-se mecanismos de mercantilização dos recursos naturais e dos serviços públicos.
Esse horror na economia política temos chamado de facholiberalismo.
O Brasil e a América do Sul atualmente estão diante de uma disputa sem trégua, a década de 2010 abortou momentaneamente uma majoritária economia política híbrida em nacional-desenvolvimentismo e liberalismo mitigado, cujos governos do agora novamente presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ex-presidenta Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores, eram os principais representantes. Deu-se lugar a um radical processo de desestabilização, por meio da guerra jurídica levada à cabo na Operação Lava Jato, conjugada com a introdução de técnicas de desinformação e mentiras em múltiplas plataformas digitais.
Os desdobramentos resultaram na revolução verde-amarela que colocou fim ao governo de Dilma Rousseff, com seu impeachment em 2016, e levou ao centro do poder Jair Bolsonaro nas eleições nacionais de 2018, emulando slogans fascistas: “Deus acima de tudo e Brasil Acima de Todos” e “Deus, Pátria e Família”, facilitando o reboot da economia nacional, acrescentando mercantilização, militarização e milicianização à gestão do Estado.
O que será da América do Sul na atual década pode ser o desdobramento de uma espécie de derby entre o híbrido de nacional-desenvolvimentismo e liberalismo mitigado representado novamente pelo presidente Lula, ancorado na grande massa de segmentos que vivem do trabalho no campo e na cidade, transformados em um lumpemproletariado de aplicativos ou analógicos, e articulado, por sua vez, com os segmentos que buscam emancipação identitária (de gênero, racial e sexual) em antagonismo ao híbrido de fascismos sociais e ultraliberalismo representado pelo ex-presidente Bolsonaro, cuja força profunda se assenta nos ruralistas e nos militares, com auxílio de instituições religiosas fundamentalistas que, instrumentalizadas pela firehosing, levaram uma massa de pessoas à dissonância cognitiva coletiva, que clama por golpe de Estado.
Das marchas inicialmente rebeldes de 2013, passando pelos 700 mil mortos da pandemia no Brasil, até chegar às invasões nos três poderes da república brasileira por grupos facholiberais em 8 de janeiro de 2023, o Brasil segue sendo o maior alvo de desestabilização como guerra híbrida do século XXI.
Em meio à transição de hegemonia e o transe distópico em que se encontra a sociedade brasileira, a América do Sul – quiçá toda a América Latina – será o que vier a restar desse espólio de guerra.
André Luís André é geógrafo com doutorado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), professor no Departamento de Geografia da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e colaborador da linha de Geopolítica, Fronteiras e Regionalização no Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
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