Uma entrevista com a escritora mineira Thaís Campolina sobre seu novo livro
Em estado febril, a autora reúne poesias que perpassam memórias familiares e a desobediência feminina
Por meio de versos que aproximam a imensidão do universo às miudezas cotidianas, a poetisa Thaís Campolina traz em estado febril , metáforas espaciais e memórias familiares em um manifesto poético sobre amadurecimento e desobediência feminina. Nos poemas da obra, ela explora temas como as histórias esquecidas das mulheres, as idiossincrasias familiares e a ligação com o universo sideral.
Uma das vencedoras do Prêmio Poesia InCrível de 2021 com a obra eu investigo qualquer coisa sem registro, a autora nasceu em 1989, na cidade de Divinópolis, interior de Minas Gerais. Chegou a morar durante dez anos em Belo Horizonte, capital do estado, mas depois voltou para a cidade natal, onde vive até hoje. Thaís é pós-graduada em Escrita e Criação pela Unifor, e trabalha nessa área. Atua como redatora, resenhista, facilitadora de oficinas, e ainda realiza trabalhos editoriais como leitura crítica e acompanhamento de projetos literários. Também é mediadora de leitura nos clubes Cidade Solitária, Leia Mulheres Divinópolis e Casa das Poetas, além de curadora da página Bafo de Poesia.

Confira abaixo uma entrevista com a poetisa:
Como e quando surgiu a ideia de escrever este livro? Quanto tempo demorou para ele ficar pronto?
A vontade de escrever esse livro nasceu de um minicurso que fiz junto da minha amiga Letícia Miranda em 2021 e das nossas trocas relacionadas com o conteúdo apresentado. “Dos avessos da genealogia: avós, silêncio, memória e transmissão”, ministrado por Danielle Magalhães e Flávia Trocoli, plantou a semente desse livro antes mesmo de eu saber que eu queria escrevê-lo.
Em alguns poemas do livro eu ainda tenho 33 anos, mas sei que alguns dos textos começaram a surgir um pouco antes disso de maneira totalmente solta e despropositada. Então posso dizer que entre escrever, editar e publicar se passou pelo menos dois anos e a maior parte do livro foi pensado, escrito e organizado em 2023 de uma forma bem febril.
O livro tem um tom bastante intimista. Como as memórias pessoais e familiares influenciaram a construção do universo poético em estado febril?
Esse não é um 100% livro autobiográfico, mas eu brinco com meu nome e nomes de familiares, além de algumas memórias reais, para assim criar esse universo que quis desenvolver a partir da linguagem, da memória e dos interesses que já nutri. Acho que é um livro que de forma indireta e repleta de ficção explica a origem de todos os outros que já escrevi e os que ainda vou escrever.
Quais foram suas principais referências e inspirações para a escrita do livro?
O “estado febril” bebeu de várias obras, entre eles os livros de poemas “A libertação de Laura”, da Helena Zelic;, “Breve ato de descascar laranjas” ,da Bianca Monteiro Garcia;, “açúcar,” da Priscila Branco e a plaquete “as avós não morrem nas canções de ninar,” da Gabriele Rosa.
E você participa e organiza diversos clubes de leitura e cursos. As trocas que você fez durante esses eventos contribuíram de alguma forma para a construção da obra?
Posso dizer que as produções que os meus companheiros do CLIPE – Poesia (Curso de preparação de escritores da Casa das Rosas) apresentaram durante nossas aulas ao longo do ano de 2023 e as trocas resultantes desses momentos fizeram parte do meu processo com esse livro. Além da produção da já citada Gabriele Rosa, que foi minha colega no curso, posso falar também do que foi compartilhado nesse contexto durante o período pelas poetas Maria Emanuelle Cardoso, Ewa Urfalino, Letícia Miranda e Anelize Moreira como influências importantes pra mim.
Já os clubes de leitura me influenciaram de forma mais indireta. Eu escrevo, porque leio e eu não só gosto muito de ler, mas gosto muito de ler e compartilhar o que cada leitura me trouxe com outras pessoas que também tem esse interesse em dividir reflexões e percepções. Então, o que eu leio, em especial para o Clube Cidade Solitária e para a Casa das Poetas, ampliam meu repertório literário, linguístico, emocional e social, e isso, com certeza, afeta minha forma de escrever e o que eu escrevo.

Ainda falando sobre os clubes de escrita, você poderia comentar um pouco mais sobre o seu trabalho nos Clube Cidade Solitária, Bafo de Poesia e Casa das Poetas? Como essas experiências te impactam?
As conexões promovidas por esses espaços em que a literatura ganha viés coletivo me atraem muito. Por causa dessas experiências, me sinto mais gente, mais viva e muito mais atenta e aberta ao que os outros têm a dizer. E, além de tudo, noto que tenho ficado cada dia mais uma leitora melhor. Ler para mediar um encontro ou selecionar um poema para divulgação é diferente de simplesmente ler um livro e essa forma de atenção diferenciada acaba colaborando para o meu olhar literário se tornar mais afiado estética e socialmente.
No livro, você explora a desobediência feminina de forma poética. Como essa desobediência pode ser notada nos poemas? Por que abordá-la?
Muitos dos poemas do livro são um pouco travessos e/ou celebram a travessura, porque busco conectar poeticamente a desobediência feminina desde a mais tenra idade com a origem da autonomia e da capacidade crítica e criativa. Desobedecer é o primeiro passo que uma menina/mulher precisa dar para poder criar e pensar por conta própria, já que a criatividade é uma subversão que parte do questionamento, da percepção e da descoberta. Mulheres que perguntam o porquê das coisas e querem entender mais sobre elas mesmas e o mundo são mulheres desobedientes, o que significa que mulheres desobedientes são aquelas que têm a capacidade de promover pequenas ou grandes transformações por onde passam. Cito no livro nomes de mulheres mundialmente notáveis, como Angela Davis, Carolina Maria de Jesus e Lygia Fagundes Telles, mas também mães e avós, porque todas nós e nossos pequenos atos de desobediência importamos, independente do alcance de nossos feitos e ideias.
Ainda falando do quesito feminino, no livro você resgata histórias de cientistas e escritoras invisibilizadas. Como você escolheu essas mulheres para integrar a obra?
Os nomes de Rosalind Franklin e Cecilia Payne-Gaposchkin me vieram naturalmente por eu ter passado anos alimentando um projeto feminista chamado “Mulheres Notáveis”. Ambas realizaram grandes descobertas em suas áreas de atuação e não receberam o devido reconhecimento de seus feitos por eles terem sido atribuídos a homens que trabalhavam com elas, fenômeno social conhecido como “Efeito Matilda”. Como seus temas de estudo se relacionam com temáticas da obra, Rosalind descobriu a estrutura em dupla hélice do DNA e Cecilia a composição das estrelas, seus nomes e histórias casaram com a proposta do livro que busca tratar da origem das coisas, enquanto aborda a desobediência feminina como um ato de resistência ao patriarcado e origem da autonomia necessária para criar e pensar por conta própria. Elas estão ali como um manifesto contra a invisibilidade dos feitos das mulheres na história, mas também como uma forma de conectar o eu, o corpo, a família, o mundo e os astros.
Você poderia explicar um pouco sobre os conceitos de mulheres mercuriais e sobre o efeito Matilda que você aborda no livro?
As mulheres mercuriais são aquelas consideradas difíceis e nós mulheres somos consideradas difíceis sempre que negamos o que nos é esperado. Clarice Lispector e Susan Sontag foram brilhantes, mas também foram muito criticadas por serem quem eram e como eram. Desobedecer aos padrões estabelecidos para as mulheres causa incômodo. Cecilia e Rosalind foram punidas com o não reconhecimento por terem tido a ousadia de serem cientistas brilhantes numa época em que elas eram consideradas, no máximo, coadjuvantes. Sendo assim, prestar essa homenagem a elas é, indiretamente, celebrar as mulheres mercuriais que todas podemos ser acusadas de ser ao buscarmos viver de acordo com nossas verdades individuais.
Qual é o papel da poesia na sua trajetória? Quando você começou a se considerar uma poetisa?
Passei anos achando que era da prosa até me ver publicada na poesia e começar a me divertir mais escrevendo poesia do que prosa. Gosto de ler poesia desde sempre, tendo a Adélia Prado como influência direta nisso por ela ser da minha cidade. Além disso, desde a infância escrevi textos híbridos e alguns versinhos que poderiam ser chamados de poemas. Cheguei a vencer um concurso da Copasa com um poema bem ecológico sobre água quando eu tinha mais ou menos 10 anos de idade. Mas, apesar disso, demorei a me chamar de poeta, por achar que poesia-poesia mesmo era outra coisa bem diferente do que eu fazia. Agora que me chamaram de poeta algumas vezes já comecei a me acostumar com o rótulo e gosto.
Como você definiria seu estilo de escrita? Que tipo de estrutura você adotou ao escrever a obra?
Gosto de uma linguagem simples que evoca a oralidade, mas que fale além do que está sendo dito. Gosto também de escrever na página, brincando com o que a poesia não preenche com a palavra, somente como caractere ou nada. Não faço isso de maneira óbvia, mas faço. A estrutura do “estado febril” explora possíveis triangulações para assim abordar a complexidade da origem de uma identidade, de um eu-lírico, da própria desobediência.
Por fim, o que esse livro representa para você? Como a escrita e produção dele te marcaram?
Esse livro representa para mim a consolidação do meu sonho de ser escritora. Não exatamente por seu conteúdo, mas por sua trajetória antes de ser publicado. Pude, a partir dele, ter uma experiência editorial que ainda não tinha tido, como a pré-venda via financiamento coletivo e também um trabalho de edição muito atencioso com o texto, com meus desejos e com o objeto livro.
Ana Ferrari é jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e pós-graduanda em Edição e Gestão Editorial pelo Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (NESPE). Sempre teve forte ligação com a literatura e às vezes se aventura a escrever textos ficcionais.