Uma estranha num país estrangeiro
Em “O encontro”, de Anne Enright, ganhador do Man Booker Prize de 2007, o passado ressurge como um país coberto de neblinaAlysson Oliveira
“O passado é um país estrangeiro: eles fazem as coisas diferentes lá”, comenta L. P. Hartley no início de seu romance O mensageiro. Para Veronica Hegarty, protagonista e narradora de O encontro, de Anne Enright (Editora Alfaguara), esse também é um país tedioso e infeliz. Porém, ela é obrigada a visitá-lo depois que seu irmão, Liam, suicida-se da mesma forma que Virginia Woolf: afogando-se num rio, com os bolsos cheios de pedras.
Nesse livro, ganhador do Man Booker Prize de 2007, o passado ressurge como um país coberto de neblina. Nem tudo é lembrança, alguma coisa é reconstituição, outras são palpites. O filtro seletivo da memória de Veronica prega peças nela, e faz com que se aproprie da história de outras pessoas. Não são poucas as vezes, ao longo da narrativa, em que ela se pergunta se algo realmente aconteceu, e, em caso afirmativo, se foi daquela forma. Num dos momentos em que pensa nas brincadeiras de infância com seus irmãos, ela faz suposições: “O mais provável é que Liam tenha posto a touca no meu rosto e quase me matado. Ou foi Kitty que foi sufocada por nós dois”.
Veronica, mãe de duas filhas e esposa infeliz, era a irmã mais próxima de Liam, por isso cabe a ela ir de Dublin a Londres buscar o corpo do irmão. Essa é a tênue linha narrativa que costura os fragmentos de O encontro. Enright não está preocupada em contar uma história, mas em desconstruir o passado de uma família infeliz, por isso, esse não é bem um livro que acumula camadas de compreensão para o leitor – mas uma narrativa que disseca momentos em família seguindo uma ordem ilógica.
A avó Ada (esse nome seria uma homenagem ao brilhante Ada ou ardor, de Vladimir Nabokov?) é uma figura importante no passado de Veronica, assim como Charlie Spillane, o marido de Ada, e Lamb Nugent, o amigo, e possível amante da avó. Como a narradora não pôde, obviamente, vivenciar o passado dos avós, o que ela toma como a história desse triangulo amoroso é feito de suposições, fragmentos que ela conhece somados à sua imaginação.
“Cada um de nós ama alguém, mesmo sabendo que eles vão morrer. E continuamos amando, mesmo quando não estão mais lá para a gente amar. E isso não tem nenhuma lógica, nenhuma utilidade, assim eu vejo”, pondera uma Veronica um tanto amargurada com o caminho que as vidas tomam. Depois da morte de seu irmão, ela se afasta, em seu luto, do marido e das filhas, e passa a perambular à noite pela casa, pelas ruas sem destino. O seu maior questionamento é como ela e o irmão, que tiveram uma infância e uma juventude tão próximas, podem ter tomado caminhos tão diferentes.
Ao longo de O encontro, a escritora está mais preocupada com a composição da frase, com a escolha das palavras do que com a elaboração de uma narrativa ao modo clássico. E é nessa opção pelo sensorial que ela encontra força nas imagens que cria. Cores, sons, odores e texturas têm um papel fundamental para criar no leitor uma sensação de sinestesia. “O vestido de Ada farfalha junto ao corpo quando ela se põe de pé. E podia bem cair inteiramente no chão a seus pés; o vestido podia ser feito de água, podia ser uma poça de cor em torno dos pés dela, tão nua que ela parece agora.”
É nesse passado misterioso dos avós, que tenta recriar, que Veronica busca a origem da infelicidade da família. Sua mãe sempre vaga; Liam problemático; os outros irmãos, ensimesmados em suas próprias vidas. Como o país estrangeiro chamado passado raramente é agradável aos Hagerty, O encontro tem uma atmosfera melancólica que chega, muitas vezes, a ser depressiva. O que não é nenhuma surpresa, afinal, o romance lida com frustrações e perdas – em especial a morte.
Terreno incerto e brumoso
No entanto, é reducionista dizer que, pela temática e abordagem, o livro de Enright é plenamente depressivo. É melancólico, certamente, mas, ao mesmo tempo, instigante, como todas as grandes obras de arte podem ser. No filme As horas, baseado no romance homônimo de Michael Cunningham, a escritora Virginia Woolf é um personagem de ficção começando a escrever sua obra-prima, Mrs. Dalloway. Ela está certa de que um personagem deverá morrer. Mas quem? A protagonista frustrada? Ou o poeta visionário? Quando seu marido e editor, Leonard Woolf, pergunta por que alguém deve morrer, ela responde que é para que os outros valorizem mais a vida. Em O encontro, os que sobrevivem podem ter uma nova visão sobre o mundo, sobre a vida – mas será que a valorizam? Ao colocar uma personagem questionando o passado, a autora leva o leitor a um terreno incerto e brumoso, que pode ser tão doloroso para ele quanto de fato é para os personagens. “Existe uma coisa maravilhosa na morte, como as coisas todas se fecham e as atitudes que você considerava vitais não são nem vagamente importantes.”
O “encontro” do título é algo difícil de definir. Pode se referir ao encontro da família no funeral de Liam (com cenas tão pungentes como engraçadas), ou ao encontro de Veronica com o corpo do irmão. Contudo, é mais provável que se refira ao encontro do passado com o presente, um círculo que tenta se fechar.
Nesse país estrangeiro chamado passado, Veronica se perde e se reencontra inúmeras vezes. É por meio dessa tentativa de reconstrução que o leitor encontra algo de passional, embora distante, na prosa de Enright. Em um de seus momentos de lucidez, a protagonista pondera que “o que [a] deixa surpresa […] não é o fato de que todo mundo perde alguém, mas que todo mundo ama alguém. […] Cada um de nós ama alguém, mesmo sabendo que eles vão morrer. E continuamos amando, mesmo quando não estão mais lá para a gente amar. E isso não tem nenhuma lógica.