Uma guerra para as mulheres?
Para legitimar suas operações militares no Afeganistão, as classes políticas ocidentais – amplamente masculinas – frequentemente carregaram a bandeira do direito das mulheres. Mas essa bela causa escondia preocupações muito menos confessáveis…
A bandeira norte-americana tremula sobre nossa embaixada em Cabul. […] E hoje as mulheres do Afeganistão estão livres”, martelava George W. Bush durante o discurso sobre o Estado da União [State of the Union address], em 29 de janeiro de 2002. A “coalizão contra o terrorismo” teria então feito a guerra para libertar as afegãs. Depois dos bombardeios e da entrada das tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em Cabul, os jornais publicaram fotografias de sorrisos femininos que dariam ao conflito sua razão de ser.
Curiosa justificativa, já que os mujahedinsreinstalados no poder pelos aliados não se comportam melhor do que os talibãs. Entre 1992 e 1996, as tropas da Aliança do Norte (ou “Frente Unida”) tinham perpetrado massacres e matanças gratuitas de prisioneiros, e ferido, aterrorizado e abusado dos civis. Atualmente, isso se reproduz, quase identicamente, num Afeganistão novamente dividido em feudos.
Os Estados Unidos não estão nem aí para o direito das mulheres, muito menos no Afeganistão, no Kuwait, na Arábia Saudita ou em qualquer outro lugar. Pelo contrário, eles consciente e voluntariamente sacrificaram as afegãs a seus interesses. De onde vêm, de fato, os mujahedins? Desde 1978, antes mesmo de o Exército soviético invadir o país, os chefes de tribo e as autoridades religiosas declararam guerra santa contra o governo marxista de Mohammad Taraki, que forçava as meninas a ir para a escola, proibia o casamento levirato1 e a venda de mulheres. Nunca houve tantas mulheres médicas, professoras e advogadas quanto entre 1978 e 1992.
Aos olhos dos mujahedins, os direitos das mulheres bem que valiam uma guerra… contra. A invasão soviética veio trazer uma dimensão patriótica a esse combate − com o apoio dos Estados Unidos, que consideram amigos os inimigos de seus inimigos. Claro, eles sabiam que os mujahedins queriam colocar suas mulheres na linha. Mas estes últimos frustraram Moscou, era o que importava.
Depois da saída dos soviéticos, a guerra continuou, principalmente contra os civis. Os soldados da Aliança do Norte pilharam as casas e estupraram as mulheres. Os chefes locais cobravam taxas dos caminhões a cada 50 quilômetros, e a corrupção e a desordem impediam a aplicação da charia. O terreno estava dessa forma preparado para a chegada dos talibãs, filhos espirituais desses mujahedins, tão anticomunistas quanto os pais, mas ainda mais fundamentalistas: bons candidatos à ajuda dos Estados Unidos, que doaram dólares para as madrasas (escolas corânicas) paquistanesas, via Arábia Saudita.
Então os Estados Unidos sempre lutaram pelos direitos das mulheres? Não. Nunca lutaram a favor? Não. Ao contrário, eles os desprezaram. Com as mulheres afegãs sendo defendidas por um governo marxista aliado de um inimigo dos Estados Unidos, foi necessário sacrificá-las. Não podemos deixar os direitos humanos dificultarem a busca pela hegemonia mundial. Tanto os direitos das mulheres quanto os das crianças iraquianas: sua morte é o preço do poder norte-americano. Como todas as feministas do mundo, faço votos pelos direitos das mulheres no Afeganistão. Um estatuto melhor poderia ser um dos resultados não previstos dessa guerra: um benefício colateral, de certa forma.
Na sequência das negociações de Bonn, duas mulheres entraram no governo provisório que se seguiu ao início da guerra; duas exiladas, uma do partido Hezb-e-Wahdat e outra do partido Parchami. Ambos são acusados de “partidos mercenários e assassinos” pela Rawa, a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão, criada em 1977, que trabalha com mulheres refugiadas, em particular pela educação das meninas. Inimiga dos talibãs, a Rawa não protestou menos contra os bombardeios. Junto com outras organizações, ela pede que uma força internacional proteja o povo afegão contra os “criminosos da Aliança do Norte”.2
O Jamiat-e-Islami, pressionado pelas instâncias internacionais, fez algumas concessões. Que se julgue. Uma semana depois da tomada de Cabul, um dos porta-vozes desse partido declarava na BBC Mundo que as “restrições” com relação às mulheres seriam suprimidas – sem maiores detalhes – e que “a burca não seria mais obrigatória: o hijab3seria suficiente”. O hijab(no Irã ele é chamado xador) será suficiente. Parece brincadeira.4
Mesmo se as liberdades fossem ampliadas, a guerra se tornaria, por causa disso, legítima? Quando se trata de direitos humanos, a questão é sempre a mesma: o que há de pior do que a guerra para uma população? A que momento ela se torna preferível? Dizer que a guerra é benéfica para as mulheres afegãs é o mesmo que decidir que é melhor para elas morrer sob as bombas, morrer de fome ou de frio do que viver sob os talibãs. A morte é melhor que a servidão: foi o que decidiu a opinião ocidental… para as mulheres afegãs. Uma decisão que poderia ter sido heroica se os ocidentais colocassem sua vida na balança, e não a das afegãs.
A maneira irresponsável com que se trata o álibi da “libertação das mulheres afegãs” ilustra a arrogância do Ocidente, que se atribui o direito de dispor a seu bel-prazer da vida dos outros. Isso impregna toda sua atitude com relação às afegãs, e mais amplamente a atitude de dominantes com relação aos dominados.
Propomos uma nova regra simples de moral internacional válida também para os indivíduos: ninguém tem o direito de tomar decisões, principalmente heroicas, quando são outros que devem pagar o preço. Somente a população que suporta a guerra pode dizer que ela vale a pena. O que acontece, de fato, é que quem decide a guerra não a sofre, e quem sofre a guerra não decide por ela. Por enquanto, as mulheres afegãs se encontram nas estradas, nas barracas, nos acampamentos, aos milhões: 1 milhão de refugiadas a mais do que antes da guerra fora das fronteiras, e 1 milhão de pessoas deslocadas dentro do próprio país.5 Sem nenhuma garantia de que esse “sacrifício” servirá para obter direitos suplementares. Deve-se falar de sacrifício, já que elas não o escolheram?
A mínima decência exigiria que os aliados parassem de clamar que elas estão passando por esses sofrimentos para seu próprio bem. Que eles se abstenham de fingir que é em nome da liberdade que tiraram delas o direito de escolher sua própria sorte, até mesmo o de viver. Pode-se temer, por outro lado, que esse refrão se transforme em hit; a lista é longa dos países aos quais a coalizão dos aliados contra o mal prometeu levar o bem à força. E, claro, qualquer semelhança com eventos históricos passados, tão passados que evocá-los parece fora de moda, ou então com as guerras coloniais é pura coincidência.
Uma guerra cujos objetivos são o controle e a exploração nunca fará avançar os direitos humanos. Pois esses bombardeios em nome da civilização também mandaram para a masmorra inúmeros princípios reclamados por essa civilização. As convenções de Genebra foram declaradas inválidas pelos aliados, primeiros cúmplices dos crimes do açougueiro de Mazar e de outros.6Os Estados Unidos inventam novas categorias pseudojurídicas, os “combatentes ilegais” de Guantánamo, que nenhum direito, nem nacional, nem internacional, nem comum, nem de guerra, cobriria! As liberdades públicas, orgulho de nossas democracias, anuladas; o direito internacional, ferido de morte – o grande corpo agonizante da ONU está aí para dar testemunho. Só uma cooperação verdadeira e pacífica entre as nações fará os direitos humanos progredirem. Ela não está em pauta. Cabe a nós colocá-la.