Uma mercadoria
Em um país que considera justiça como sinônimo de prisão, as cadeias tornaram-se os campos de concentração para onde a população mais vulnerável é mandada para descarte
Pela porta entreaberta, pude ver uma travesti, negra, com roupas maltrapilhas, levando as mãos à testa, deslizando-as pelos cabelos, puxando-os para trás, nervosa. Em frente, dois policiais militares, em posição de guarda.
O supermercado estava movimentado para aquele início de noite de domingo, quando normalmente poucas pessoas o frequentam, e eu acabara de passar pelo caixa. No caminho para o estacionamento, deparei-me com aquela situação. No vai e vem dos clientes, ninguém se dava conta do fato, mas, eu me dei.
Àquela altura, tendo atuado por um bom tempo como juiz criminal, já havia julgado várias supostas tentativas de furtos em estabelecimentos comerciais. Então, sabia quando presenciava mais um caso daqueles. Ali, contudo, eu não estava como juiz, mas como consumidor. Por isso, passei reto, sem interferir no andar dos acontecimentos. Já no carro, fiquei pensando se não deveria ter me inteirado mais da situação, se não deveria ter tentado saber mais sobre os procedimentos que estavam sendo tomados, se consoante à lei. Porém, em princípio, percebi que tudo estava nos conformes, sem sinais de abusos.

Mais tarde, no conforto de meu lar, conclui que não eram os procedimentos legais que me despertavam questionamentos, mas que uma pessoa foi detida, muito provavelmente por suspeita de tentativa de furto de algum bem alimentício daquela grande rede de supermercados, e a prisão fora considerada algo normal. E jamais poderia ser!
Temos vivido em uma sociedade neoliberal, necrocapitalista, que tornou o ser humano uma mercadoria. Quando essa mercadoria não serve mais ao mercado, ocorre o que ocorre com as demais nessa condição, ela é descartada. O descarte, como no caso que presenciei, dá-se pela mão pesada do estado-policial, pelos tribunais, pela prisão.
Como disse, quando juiz criminal, antes de assumir a execução penal, tratei de muitos casos similares. E sempre relaxei as prisões, sempre considerei que o dano causado era insignificante e que, além disso, nunca seria possível consumar um furto em tais estabelecimentos, integralmente monitorados e seguros. Outrossim, sempre entendi que, no lugar do direito penal, para casos assim, quem deveria ser chamado era o direito assistencial, a rede de atenção dos órgãos públicos, os setores de bem-estar social.
Ocorre que, em um país que considera justiça como sinônimo de prisão, com a taxa de pessoas abaixo da linha da pobreza aumentando, as cadeias tornaram-se por excelência os campos de concentração para onde a população mais vulnerável, mais pobre e periférica, composta especialmente por pessoas negras, é mandada para descarte. Por séculos o Brasil escravocrata tem sabido como ninguém prender, açoitar e matar corpos pretos e pobres. É o extermínio como padrão!
Se não aquela, é provável que em minhas inspeções no cárcere eu encontre outras travestis presas por tentativa de furto de um quilo de carne, um pacote de leite, uma garrafa de cachaça… Qualquer coisa que eu, uma mercadoria útil, com um passado de privilégios e oportunidades, que integra o Estado, sempre pude e sempre poderei comprar.
João Marcos Buch é juiz de direito e membro da Associação Juízes pela Democracia (AJD).