Uma mídia antirracista na cobertura de violência do Estado
Os desafios do Alma Preta, uma agência de jornalismo independente com foco na temática racial
As consequências de políticas que resguardaram o mito da democracia racial no Brasil nos atrapalham até os dias de hoje no sentido de conseguir mostrar o óbvio: o racismo, embora velado, existe. Portanto, a tarefa do Alma Preta não é fácil: ser uma mídia antirracista é uma audácia e uma necessidade.
Nosso compromisso com o jornalismo nos faz estar atentos a tudo que seja importante para a população negra do país, o que nos é desafiador, já que estamos falando de 55,8% da população brasileira (9,3% autodeclarados pretos e 46,5% pardos), segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua 2018 do IBGE.
Sabemos que a violência como forma de governo sempre existiu. A população negra sempre foi o principal alvo do chicote e, agora, da bala. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no país. As mulheres negras estão na base da pirâmide social e acumulam os piores índices sociais e econômicos no país. São as mais pobres, as que têm menos oportunidades, as que vivem menos, as que sofrem mais violências.
Continuamos a ver nossos irmãos e irmãs morrendo cada vez mais, com a política de segurança do país ainda fundamentada no racismo. Vivemos o que o filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe define como “necropolítica”: políticas de morte para o controle das populações. Não nos esqueçamos do “a polícia deve atirar para matar”, de João Doria (PSDB), governador de São Paulo; e do “a polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo”, de Wilson Witzel (PSC), governador do Rio de Janeiro.
O Alma Preta não é um veículo especializado em cobertura de violência policial. Não conseguimos, e também não queremos, competir com a infraestrutura de veículos que conseguem estar a todo momento em qualquer lugar e a qualquer hora. Nossa infraestrutura, como um veículo pequeno – em tamanho –, sempre nos deixa atrás em relação à rapidez que o jornalismo atual nos obriga a ter. Por outro lado, conseguimos fazer o que poucos conseguem ou propõem: noticiar de um ponto de vista antirracista. Como diz Angela Davis, “não basta não sermos racistas, temos de ser antirracistas”.
Entendemos que a violência de Estado vai muito além da violência física, vai muito além da bala. A população negra é alvo de violências na saúde, educação, alimentação, trabalho, justiça, política de drogas ou mesmo no esporte. Não é “mimimi”, são dados. Ao noticiarmos algum fato, temos como prerrogativa o entendimento de que há uma estrutura que alimenta o genocídio do povo negro. Um assassinato – como tenta mostrar a mídia tradicional – nunca é um puro e simples assassinato.
A cobertura do caso da morte da vereadora carioca Marielle Franco (Psol), em 2018, é um exemplo interessante. Para nós, Marielle não foi apenas uma política negra. Além de parlamentar, ela era mãe de Luyara, era militante ativa do movimento negro, era filha de Marinete e Antônio, irmã de Anielle e favelada.
Após seu assassinato, estivemos atentos a toda ação de luta e resistência da família Franco – por exemplo, a criação do Instituto Marielle Franco. No marco de um ano de sua morte, estivemos com sua família produzindo uma reportagem especial de resgate de memórias, demos visibilidade às críticas da família em relação ao andamento das investigações, à atuação da esquerda partidária do país e aos usos impróprios e aproveitadores de seu nome.
Junto a Marielle, também nos lembramos das Cláudias, Amarildos, Ágathas e Luanas. Vale ressaltar que o Alma Preta é um dos poucos veículos que continua acompanhando a luta de familiares e amigos em busca de justiça pelo assassinato de Luana Barbosa, em abril de 2016, após ser agredida por policiais.
Também é crucial entender que há pessoas negras que avaliam a estrutura da sociedade brasileira. Intelectuais negros não falam apenas de discriminação e preconceito. Rosane Borges, Dennis de Oliveira, Sueli Carneiro, Douglas Belchior, Bianca Santana, Juarez Xavier, Roger Cipó, Natália Oliveira, Adriana Barbosa, Juliana Gonçalves, entre outros, são nomes que todo jornalista deveria conhecer.
Como um veículo de mídia negra, também sempre precisamos nos atentar à fragilidade de nossa segurança física, emocional e virtual. No final do dia, nossos corpos negros voltam para suas casas, muitas delas nas periferias, sem nenhuma garantia de proteção. Quando se é um jornalista negro e periférico, há muito mais em jogo do que uma simples relação jornalista, entrevistado/a e investigação.
Em uma época em que falamos tanto de diversidade na comunicação e nas redações, é preciso mais do que nunca começar a falar sobre como financiar a diversidade de iniciativas de comunicação negras e periféricas no país e sobre como garantir que jornalistas e defensores de direitos humanos negros e periféricos tenham reais condições de segurança em seus mais diversos aspectos e particularidades.
E é preciso falar sobre as reais condições para jornalistas antirracistas dentro de redações. Há infinitos exemplos de pessoas demitidas por questionarem as estruturas – eu sou uma delas. Como garantir a qualidade de uma cobertura sobre a violência de Estado sem se questionar sobre as violências internas em empresas de comunicação que perpetuam o racismo estrutural? Seja na dita mídia tradicional ou na mídia de esquerda!
Fazer uma cobertura positiva da comunidade negra é uma forma de combater o racismo e a violência. “Estamos disputando as possibilidades desse sujeito negro”, como diz o jornalista Pedro Borges. Há também o cuidado em fazer o registro histórico do movimento negro organizado do país. A história de resistência de nossos antepassados nos foi negada e é preciso romper com esse ciclo de apagamento.
Em 2018 e 2019 estivemos próximos à Coalizão Negra por Direitos, que reúne movimentos negros de todo o país. Nacional e internacionalmente, ela teve uma incidência política extraordinária, estando presente, inclusive, na reunião da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, denunciando os riscos da flexibilização da posse e porte de armas no Brasil promovida por Jair Bolsonaro, bem como o chamado pacote Moro, que previa mudanças para o Código Penal e Eleitoral e foi aprovado com mudanças, no ano passado.
É necessário dar o nome correto ao processo que vivemos: é genocídio! Qualquer veículo que entenda a importância desta disputa narrativa compreende que a notícia sobre os corpos negros vai muito além do “showrnalismo”, parafraseando o jornalista José Arbex Jr.
Se por um lado a mídia tradicional trata tudo com sensacionalismo, de outro a mídia esquerda também peca ao analisar os fatos apenas do ponto de vista da classe, negligenciando ou negando definitivamente que uma análise de sociedade deve ser feita das perspectivas de raça, classe e gênero.
Quando não trabalham editorialmente na interseccionalidade, eles também negam o genocídio negro. Quando a mídia não entende a dimensão racial da violência, a comunicação de qualquer veículo apenas contribui para o extermínio da população negra e periférica do país.
*Simone Freire é jornalista, editora do portal Alma Preta e integrante da Rede Jornalistas das Periferias e do Instituto Preto Império, localizado na Brasilândia, periferia da Zona Norte de São Paulo.