Uma outra matriz produtiva
Quando eclodiu a crise econômica atual, já vivíamos uma situação anômala, semelhante à Revolução Verde na década de 1970: as melhores terras, mais próximas das grandes cidades e dos portos, estão produzindo energia para os automóveis da classe média, no lugar de alimentos para toda a população
Na primeira metade da década de 1960, a economia brasileira já demonstrava sinais de esgotamento e estagnação do modelo de desenvolvimento apoiado no capital industrial. Naquele momento, o presidente João Goulart e seu ministro Celso Furtado elaboraram uma proposta de reforma agrária que talvez tenha sido a mais avançada já vista em nosso país. Para ampliar o mercado interno e o abastecimento dos centros urbanos, Furtado sugeriu limitar o tamanho máximo da propriedade da terra e desapropriar as áreas em torno das rodovias, garantindo assim o escoamento da produção, além do acesso dos camponeses à energia e à infraestrutura. O Plano de Reforma Agrária foi anunciado por Jango no famoso comício da Central do Brasil, um dos acontecimentos que desencadearam o golpe de 1964.
O regime militar não apenas interrompeu a oportunidade mais efetiva que tivemos de democratizar o acesso à terra, como apresentou uma saída para a crise do capital industrial brasileiro ao ampliar sua dependência do capital internacional. Estabeleceu também um violento processo de mecanização, concentração de terras e êxodo rural. Era um período de expansão das empresas transnacionais, que começavam a dominar mercados, controlar matérias-primas e explorar a mão-de-obra barata dos países periféricos. Esse avanço foi justificado sob a bandeira da “Revolução Verde”, com a promessa de eliminar o problema da fome no mundo, que naquela época atingia 80 milhões de pessoas.
No entanto, seu verdadeiro objetivo era introduzir uma nova matriz produtiva na agricultura, baseada no uso intensivo de insumos industriais, tais como máquinas, fertilizantes químicos e agrotóxicos. De fato, a produtividade por hectare se multiplicou e a produção média global do campo aumentou quatro vezes. Mas a fome não acabou! Pior: os famintos passaram de 80 milhões para 950 milhões de pessoas e cerca de 70 países tornaram-se dependentes das importações para alimentar seu povo.
Há ainda outras consequências perversas, como o esgotamento dos recursos naturais, a contaminação dos alimentos por agrotóxicos, a expulsão da mão-de-obra do campo e o inchaço das cidades.
Na verdade, esse modelo serviu apenas para concentrar o controle da produção e do comércio agrícola mundial em torno de 30 grandes empresas transnacionais, entre elas Bunge, Cargill, ADM, Dreyfuss, Monsanto, Syngenta, Bayer, Basf, Nestlé etc.
Durante a década de 1990, com o neoliberalismo em voga, essas empresas continuaram crescendo, pois o capital financeiro injetou montantes significativos na agricultura. Com esses recursos, as transnacionais conseguiram comprar outras companhias menores e mantiveram o setor cada vez mais concentrado.
Mais recentemente, o grande capital internacional se articulou para solucionar a crise de sua matriz energética, que é baseada no petróleo. Formou-se uma aliança diabólica entre as empresas petroleiras, as automobilísticas e as transnacionais do agronegócio para atuarem nos países do hemisfério sul. O alvo eram regiões com abundância de terra, sol e água para a produção dos agrocombustíveis – que eles chamam erroneamente de “biocombustíveis”, mesmo não tendo nada de vida.
Assim, nos últimos cinco anos, milhões de hectares que antes eram destinados ao cultivo de alimentos ou eram controlados por camponeses passaram para as mãos de grandes fazendeiros e empresas e tornaram-se áreas de monocultura de cana, soja, milho, palma africana e girassol. Tudo para produzir etanol ou óleo vegetal.
Estamos assistindo a uma repetição da manipulação da Revolução Verde: as melhores terras, mais próximas das grandes cidades e dos portos, deixam de dar alimentos para produzir energia para os automóveis da classe média americana, chinesa, japonesa etc.
O filão do etanol
Visto que o etanol utiliza a cotação do petróleo como parâmetro, a taxa média de lucro na agricultura subiu de patamar e puxou consigo o preço médio de todos os produtos alimentícios. Ou seja, a população em geral, consumidora de alimentos, teve de ajudar a pagar a taxa média de lucro que os capitalistas e os fazendeiros impuseram em função da produção dos agrocombustíveis.
Além disso, mesmo com a mudança na matriz energética, não será resolvido o problema do petróleo nem do aquecimento global e da poluição. Os cientistas nos advertem que essas questões estão diretamente relacionadas com o grande número de veículos utilizados no transporte individual. Para substituir apenas 20% de todo o petróleo ora consumido, teríamos de utilizar todas as terras férteis do planeta.
Quando eclodiu a crise econômica atual, já estávamos vivendo uma situação anômala na produção e no preço do alimentos. Muitos desses capitalistas, detentores de volumosas somas de capital financeiro – seja na forma de dinheiro ou de capital fictício (títulos do tesouro, debêntures, cartas de hipotecas…) – correram para aplicá-lo nas bolsas de mercadorias e futuro, com medo de perder tudo. Nos países periféricos, eles ampliaram a compra de bens de natureza, principalmente terra. A consequência dessa movimentação é que o preço dos produtos agrícolas não está mais relacionado aos custos de produção nem aos volumes de oferta e demanda. Agora, o valor dos alimentos oscila rapidamente para cima ou para baixo, sob a força exclusiva da especulação praticada pelos capitalistas nas Bolsas de todo o mundo. Ou seja, as variações ocorrem em função do controle oligopolista que as empresas transnacionais exercem sobre o mercado mundial de produtos agrícolas. Com isso, a humanidade está nas mãos de empresas transnacionais e de grandes especuladores. E o resultado disso é que, em apenas dois anos, cerca de 100 milhões de pessoas ingressaram na categoria “famintos”, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação).
Em nosso país, o modelo agroexportador resultou também no bloqueio da reforma agrária, agora sob responsabilidade do presidente Lula. A democratização do acesso à terra esbarra na transformação dos recursos naturais em reserva de expansão do agronegócio. O governo dá prioridade à produção de monocultora
s destinadas à exportação, sob controle das empresas transnacionais e do capital financeiro, para sustentar a política econômica neoliberal herdada de FHC. Nesse contexto, não há espaço para os camponeses, para a reforma agrária e para um modelo agrícola baseado em pequenas e médias propriedades, voltado para a produção de alimentos para o povo brasileiro.
Esse avanço das empresas transnacionais na agricultura segue combinado a uma ofensiva de repressão dos movimentos sociais, articulada por parte do Poder Judiciário, da imprensa empresarial e do Estado. Um exemplo recente ocorreu no Rio Grande do Sul, onde o Ministério Público Estadual e a governadora Yeda Crusius determinaram oficialmente a “eliminação” do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O resultado geral do cenário descrito acima é lamentável: temos hoje os menores índices de desapropriação e assentamentos da história do Brasil. Em 2008, das 18.630 famílias oficialmente assentadas pelo governo federal, apenas 2.366 são novas, enquanto o restante são ainda regularizações de projetos de assentamentos dos anos anteriores. É uma vergonha para aqueles que tinham um compromisso histórico com a reforma agrária.
Soberania alimentar
Nesse contexto, a Via Campesina, que reúne dezenas de organizações camponesas de todo o mundo, propõe uma mudança estrutural na ordem econômica da produção e do comércio de alimentos. O conceito central que defendemos é a soberania alimentar. Ou seja, que em cada região, estado e país os governos apliquem políticas públicas que estimulem e garantam a produção dos alimentos necessários para o abastecimento da população. Não há nenhuma nação do mundo impossibilitada de produzir seus próprios alimentos, seja por condições climáticas ou outras adversidades.
A humanidade tem de encarar os alimentos como um direito de todo ser humano e deixar de tratá-los como mercadorias, para dar lucro às empresas transnacionais. Precisamos de políticas para estimular o fortalecimento mundial da produção camponesa, única forma de fixar as pessoas no interior e produzir alimentos sadios, sem agrotóxicos. Em nosso país, estamos diante da oportunidade de realizar uma reforma agrária de novo tipo, que tenha caráter popular em sua natureza e interesses. Temos de implementar um novo modelo agrícola, baseado numa matriz produtiva agroecológica e destinada à soberania alimentar, capaz não apenas de democratizar o acesso à terra e à produção, mas de impedir o processo em marcha, rumo ao colapso ambiental e alimentar.
Vamos seguir a nossa luta pelo acesso à terra e contra o atual modelo agrícola, que impede a consolidação dos pequenos e médios produtores, transforma em mercadoria nossos recursos naturais e trata a agricultura e os alimentos como jogos de cassino. Podemos pregar para governantes indiferentes, mas, na atual conjuntura, sem mudanças radicais as contradições e os problemas sociais aumentarão. E, algum dia, vão explodir.
*João Pedro Stédile é integrante da coordenação nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e da Via Campesina Brasil.