Uma peça fundamental no xadrez de Bin Laden
Durante três meses, o exército libanês sitiou o campo palestino de refugiados de Nahr al Bared, no norte do país. Ali estava entrincheirada uma organização até então desconhecida, a Fatah al Islam. Em pouco tempo, esse grupo, dirigido pelo filho de Bin Laden, ganharia notoriedade graças à sua conexão com a Al Qaeda
Fomos abruptamente envolvidos em uma luta que não é nossa. Eu preferia não ter que enfrentar o exército libanês”. Foi nesses termos que Chahine Chahine, considerado um dos dirigentes do grupo Fatah Al Islam, se dirigiu a um negociador durante o cerco montado pelo exército do Líbano ao campo de refugiados palestinos de Nahr Al Bared. Até então, ninguém sabia ainda que o tal sr. Chahine Chahine era filho de Osama bin Laden e um alto comandante da Al Qaeda. Sua opinião sobre o combate direto reflete a ambivalência das posições da organização de Bin Laden em relação ao Líbano: o país é um terreno de enfrentamento com os Estados Unidos e seus aliados ou deve ser considerado como um simples campo de treino e trânsito dos combatentes da Al Qaeda?
Em 4 de setembro de 2007, dois dias após a tomada do campo, Georges Khury, o diretor de informações do exército, admitiu que os combatentes do grupo Fatah Al Islam eram efetivamente membros da Al Qaeda. Na verdade, as origens dessa organização são antigas no Líbano: ainda nos anos 1990 os tribunais julgaram os “salafistas1” por “crime de constituição de células terroristas ligadas à Al Qaeda”.
Os militantes condenados naquela ocasião tinham optado pela via aberta por Salem El-Chahhal, que criou, em 1974, os grupos Muslimun (Muçulmanos) e Shabab Mohammad (Jovens de Maomé). O processo de incorporação foi relativamente rápido. Em 1989, no fim da guerra civil libanesa, os salafistas eram pouco influentes, mas decidiram investir contra outras organizações islâmicas, principalmente a Associação Islâmica de Projetos Beneficentes, conhecida como Al Ahbache2. Esses enfrentamentos permitiriam aos grupos salafistas afiarem seu instrumental intelectual e missionário, arregimentando adeptos em inúmeras cidades e aldeias. Sua influência se estendeu entre os formados e assalariados da classe média, assim como entre os que estudam a sharia,a Lei islâmica e que obtiveram seus diplomas na Arábia Saudita.
O divisionismo, no entanto, sempre foi um problema para eles. Em 31 de agosto de 1995, um dos grupos salafitas assassinou o xeique Nizar Al Halabi, chefe da Associação Islâmica de Projetos Beneficentes. Esse atentado provocou uma onda de embates dentro da corrente: era a primeira vez que um movimento salafista eliminava um adversário. Membros da organização confessaram o assassinato, garantindo até o último minuto antes de morrerem que eram os únicos responsáveis. Porém, as autoridades libanesas e os serviços de informação sírios, que controlavam o país, preferiram ligar o crime à Abdul Karim Saadi, palestino e chefe da organização Usbat Al Ansar, instalado no campo de refugiados de Ain Al Helue, no sul do país.
Foi naquele período que se estabeleceram as ligações entre os primeiros salafistas e a organização de Bin Laden. A proposta era simples: ajudar combatentes muçulmanos a entrarem em Israel a partir do Líbano. Um grupo, provavelmente tchetcheno, ligado à Al Qaeda, pediu à Bassam Kanj assumisse a tarefa. Kanj, um militante que abandonou seus estudos nos Estados Unidos em 1988 e se formou na jihad mundial no Afeganistão, aceitou a proposta e criou o Danniye, mas exigiu um prazo de dois anos, para se impor junto ao Hezbollah como força de resistência anti-israelense.
Mudjahedins tchetchenos
Na época, os negociadores russos, que supervisionavam junto com a Síria a retirada israelense da região sul do Líbano, forneceram às autoridades libanesas e sírias a gravação de uma conversa entre Kanj e os mudjahedins tchetchenos. Essa informação precipitou uma intervenção militar libanesa para erradicar o grupo Danniye durante a madrugada do Ano Novo de 2001. Paralelamente, as autoridades sírias iniciaram uma onda de prisões entre as fileiras dos islamistas radicais, confirmando o caráter transnacional dessa rede.
A Al Qaeda esperou a invasão americana do Iraque, em março de 2003, para conclamar abertamente a criação de grupos no Líbano. Funcionando também como “marca”, a organização de Bin Laden agrada aos dissidentes locais por ter uma estrutura descentralizada, o que permite certa autonomia. No final de 2005, sua presença era bem concreta e as autoridades libanesas conseguiram capturar os primeiros elementos daquela que seria chamada de “rede dos 13”, dirigida pelo libanês Hassan Nabaa. Composta também por sauditas, sírios e palestinos, essa rede servia de apoio à Al Qaeda e à resistência iraquiana, operando também na Síria.
Seu maior aliado, porém, surgiu apenas em 2006, a partir de uma dissidência do grupo Fatah Al Intifada, que já havia se separado do Fatah de Yasser Arafat e estava ligado ao regime de Damasco. Cerca de 70 militantes se juntaram a um oficial palestino de origem jordaniana, Chaker Al Abssi e se infiltraram em diversos campos de refugiados palestinos, como no de Nahr Al Bared. Uniram-se a outros cinqüenta homens liderados por Chehab Al Qaddur, um libanês que passou a maior parte da vida na clandestinidade, depois que a espionagem síria o capturou em Trípoli em 1986, quando ele só tinha 14 anos. Formava-se assim o Fatah Al Islam.
Desde o início, o agrupamento recebeu o apoio de um representante do movimento jihadista no campo de refugiados de Ain Al Helue, que lhe garantiu um financiamento da Al Qaeda. O treinamento de alguns de seus integrantes passou para as mãos do responsável militar do grupo Jund Al Cham. Logo depois, em julho de 2006, estourou a “guerra dos 33 dias”, entre Israel e o Hezbollah, e os grupos jihadistas se aproveitaram da confusão para aumentar sua implantação. Também exploraram a decisão tomada pelo “Estado Islâmico no Iraque”, criado pela Al Qaeda, de mandar para fora do país os elementos destituídos de competências militares particulares e aqueles que não conseguiam se misturar à população local.
O Fatah Al Islam atrairia muitos desses soldados perdidos, o que provocou uma reação hostil do Fatah original e de outros grupos membros da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que pretendiam “limpar” os extremistas do campo de refugiados palestinos de Ain Al Helue. Sofrendo pressões da OLP e com dificuldades em se esconder do exército libanês, que perseguia os jihadistas acampados próximos aos 12 mil soldados da Finul (Força Interina das Nações Unidas no Líbano), o Fatah Al Islam decidiu refugiar-se no norte, uma zona majoritariamente sunita e, portanto, considerada amiga.
Vários encontros prepararam o terreno dessa migração, não somente com os salafistas locais, mas também com os deputados partidários da Corrente do Futuro, de Saad Hariri, preocupados com a influência do Hezbollah. Chaker Al Abssi, chefe do Fatah Al Islam, se reuniu com um deputado sunita de Trípoli que manifestou seus temores de ver o Hezbollah xiita atacar os sunitas3. Abssi respondeu qu
e “não permitiria que ninguém prejudicasse os sunitas”, mas também não entraria em conflito com uma força que combate Israel.
Dessa forma, o Fatah Al Islam se instalou em Nahr Al Bared, onde publicou seu primeiro comunicado, em 27 de novembro de 2006. O campo imediatamente serviu de estadia para os combatentes ligados à Al Qaeda que entravam e saíam do Líbano, tanto pelos pontos de oficiais da fronteira como pelos clandestinos. Alguns deles, depois da passagem por Nahr Al Bared, se dispersaram para criar suas próprias redes, em zonas de forte densidade sunita. Esses novos integrantes são originários do mundo árabe, mas também da Rússia, da Tchetchênia e da Turquia, entre outros.
No final de 2006, o saudita Ahmed Tuwaijiry, dirigente da Al Qaeda, chegou ao Líbano para se encontrar com a cúpula do Fatah Al Islam e de outros grupos salafistas. As reuniões foram proveitosas e o financiamento dos libaneses cresceu com as doações que chegavam da Arábia Saudita e do Kuwait, tanto públicas quanto privadas. Muitos empresários ricos queriam contribuir com a jihad.
Ao mesmo tempo, as associações salafistas tentavam reunir forças para enfrentar “ameaça xiita” que surgiu com o agravamento da crise política no Líbano e os combates pontuais entre sunitas e xiitas. Os membros locais da Al Qaeda avaliaram que o contexto era favorável para se aproximarem da Corrente do Futuro, aproveitando-se do desejo desta em formar um braço armado, contraponto ao Hezbollah xiita. Apesar de ter consciência dos riscos que correriam por manterem relações com grupos fundamentalistas, a Corrente do Futuro optou por essa estratégia em curto. A Al Qaeda, por sua vez, provou seu pragmatismo ao explorar a ocasião para conseguir dinheiro para o recrutamento de dezenas de combatentes, organização de sessões de treino no campo de refugiados de Ain Al Helue e formação de espiões para missões nas embaixadas dos países ocidentais e do Golfo.
A Síria preferiu fechar os olhos a essas atividades, deixando seus adversários, da Corrente do Futuro aos jihadistas, pagarem o preço de próprias escolhas. Em contrapartida, ela apertou os torniquetes internos e se livrou de um bom número desses militantes, que optaram pelo refúgio no Líbano. Durante o primeiro semestre de 2007, cerca de vinte grupos ligados à Al Qaeda foram acionados para acompanhar a entrada desses combatentes no país, escoltar dirigentes e organizar a partida de grupos de divulgação na Europa (França, Reino Unido, Países Baixos, Alemanha). O armamento era garantido pelo tráfico via Síria. Assim, em colaboração com o Fatah Al Islam, a Al Qaeda teceu uma vasta rede que não seria desmontada com qualquer vendaval.
O primeiro grande confronto aconteceu na madrugada de 20 de maio de 2007, quando a seção de informação ligada às Forças de Segurança Interna decidiu fazer uma incursão contra o grupo da Al Qaeda em Trípoli. Os homens procurados também eram caçados pelos sauditas por garantirem um apoio técnico aos mudjahidin do Iraque. Eles atuavam sob a proteção do Fatah Al Islam. Rapidamente os combates se estenderam ao campo de refugiados de Nahr Al Bared.
O enfrentamento durou 106 dias com um saldo de 170 soldados assassinados, além de 47 civis palestinos e 200 combatentes do Fatah Al Islam. Enquanto mais de 150 membros e responsáveis da organização conseguiam fugir, 40 combatentes encontraram a morte enquanto davam retaguarda aos companheiros. A maioria acabou executada com uma bala na nuca ou na cabeça. O exército ocupou o campo de refugiados quando ele já estava vazio e impediu a entrada de todas as missões civis e humanitárias. Nem seus arredores puderam ser fotografados. Os tanques destruíram as construções, escamoteando os vestígios de combate.
Em junho, um mês após o início do conflito, os serviços de segurança libaneses descobriram que o líder Chahine Chahine era, na verdade, Saad, filho do fundador da Al Qaeda. Ele tinha se infiltrado no campo de refugiados alguns dias depois do começo dos enfrentamentos e conquistou a simpatia dos combatentes. O filho de Bin Laden, um dos responsáveis mais ativos da seção de operações da Al Qaeda, começou a colocar em funcionamento células e bases em todo o território.
Apesar dessa derrota militar, os grupos ligados à Al Qaeda não reduziram suas atividades no Líbano. A organização está presente no campo de refugiados palestinos de Ain Al Helue, assim como nas zonas sunitas de Bekaa e em alguns bairros pobres de Beirute. Quando encontrei Chahine Chahine, ou Saad bin Laden, e ele me perguntou: “Você acredita realmente que nós somos só 500 combatentes cercados em Nahr Al Bared ?”. Os assassinatos de personalidades políticas e os atentados em Beirute e contra as forças da Finul, assim como as informações conseguidas pelos depois da prisão de mais de 200 membros do movimento salafista-jihadista, confirmam a resposta óbvia: eles não estavam sozinhos e tampouco abandonados.
Empresas privadas de segurança
Mas a organização, como me explicou Chahine Chahine, não viu com bons olhos seu mergulho em um enfrentamento fechado, no interior de um campo de refugiados. O ataque reduziu a margem de manobra da Al Qaeda e deu oportunidade ao exército realizar centenas de perseguições e prisões.
Com a persistência da crise política libanesa e a tendência crescente de todas as facções locais se armarem, a Al Qaeda passou a ter como alternativa se esconder atrás da Corrente do Futuro, que hoje se dedica a arrolar combatentes sob pretexto de contratações para empresas privadas de segurança. Por este vínculo, a organização já alistou 2400 milicianos e pretende conclamar outros 14 mil só no norte do Líbano. Mas, por outro lado, os combates de Nahr Al Bared prejudicaram a aliança da Al Qaeda com parte da elite sunita libanesa, que considerou o preço dessa parceria alto demais.
Cansados de um conflito local sem horizonte político, milhares de jovens sunitas olham com inveja os xiitas, que conseguiram monopolizar o esforço de resistência contra Israel. Os atentados da Al Qaeda no Ocidente e suas vitórias no Iraque, mesmo que limitadas, também lhes agradam. Uma nova geração freqüenta as mesquitas, onde é mobilizada pelo pensamento salafista-jihadista, em um contexto de descrédito da estrutura oficial da comunidade sunita, vista por muitos como corrupta. A isto se acrescentam o sentimento de injustiça e a ausência de qualquer perspectiva de solução do conflito com Israel. A Al Qaeda aparece como uma resposta a toda essa descrença porque consegue atuar, ao mesmo tempo, sobre o medo do xiismo e do Hezbollah, a convicção dos sunitas de que eles são marginalizados e o sentimento anti-americano, enquanto o governo e as forças sunitas oficiais aparecem como aliados de Washington.
Considerada por alguns um o caminho exemplar a ser seguido, a organização de Bin Laden – não necessariamente todos os grupos que dizem fazer parte dela – parece interessada no Líbano como base de operações, campo de treinamento e de formação, além de ponto seguro de passagem de seus combatentes rumo ao Iraque e à Europa. O país é prioritariamente um terreno de inovação técnica, onde a Al Qaeda pode trabalhar no desenvolvimento de novos instrumentos de combate, como pequenos aviões telecomandados e outros aparelhos explosivos, capazes de não serem afetados pelo fogo dos blindados americanos no Iraque. Trabalham ainda com programas de informática que permitem aos responsáveis mundiais da Al Qaeda se comunicarem e coordenarem suas atividades pela internet, sem serem interceptados pelos serviços locais de informação, nem mesmo pela National Security Agency (NSA) dos Estados Unidos. Nesse contexto, como explicava Chahine Chahine, a Al Qaeda não tem interesse em se envolver nas questões internas libanesas. Mas será que os grupos locais que declaram pertencer à Al Qaeda aceitarão se manter afastados da cena libanesa? Quaisquer que seja a resposta a essa pergunta, uma coisa é certa: o futuro da Al Qaeda no Líbano está garantido.
*Fidaa Itani é jornalista.