Uma questão de dinheiro e espirituosidade
Desde a queda do Muro de Berlim, o capitalismo da Europa Central e do Leste Europeu também se estende ao futebol. Por muito tempo estruturados de maneira diferente da que se vê no Ocidente, os grandes clubes do Leste tornaram-se capricho de oligarcas donos de fortunas muitas vezes ilícitas.Balthazar Crubellier
A maioria dos clubes de futebol da Europa Ocidental construiu sua identidade em torno de eixos geográficos, culturais ou, eventualmente, políticos. O Olympique de Marselha, na França, e o Manchester United, no Reino Unido, por exemplo, distinguem-se por sua oposição aos clubes da capital; na Espanha, o Athletic Bilbao é conhecido por recrutar exclusivamente jogadores de “nacionalidade” basca. No Leste Europeu, em compensação, os grandes clubes emanam de associações ligadas aos grandes organismos do Estado ou a profissões, que determinam seus nomes. Ainda hoje, o CSKA (abreviação de Clube Central de Esportes do Exército), o Lokomotiv (“Ferroviários”) e o Dínamo (Ministério do Interior) atraem multidões. Claro, também existem variantes locais: o Steaua Bucareste (Romênia) e o Dukla Praga (República Checa) provêm de instituições militares, sem ter a denominação de costume, assim como o Honved Budapest (Hungria). Por muito tempo, o Partizan Belgrado, da Iugoslávia, foi associado à polícia, e o Lech Poznan – apelidado de Kolejorz: “ferroviários” –, na Polônia, ligado à empresa ferroviária nacional.
Esses particularismos implodiram na década de 1990, com a notável exceção do CSKA Moscou, do qual o Ministério da Defesa continua sendo grande acionista. Os outros viraram apenas “marcas” às quais os fãs parecem muito ligados, como demonstra a tentativa infeliz do presidente nacionalista croata Franjo Tudjman, em 1993 – no final abortada –, de rebatizar o Dínamo Zagreb de Croácia Zagreb.
A parte oriental da Europa converteu-se com fervor às regras do futebol moderno, a ponto de emergir como um reflexo distorcido do lado ocidental: os agentes de jogadores estão ali faça chuva ou faça sol, as transferências operam-se independentemente de qualquer lógica esportiva e as diferenças de orçamento entre as equipes não param de aumentar. Os clubes ricos contratam maciçamente atletas no estrangeiro, o que impede os concorrentes de se fortalecer economicamente com o jogo das transferências, obrigando-os a abandonar a formação, considerada muito cara. Essas práticas resultaram no aumento do preço do ingresso e na queda significativa do número de espectadores nos estádios .
Autocratas dignos dos espetáculos de luta livre
Além disso, os clubes do Leste Europeu abriram amplamente suas portas e seu capital a investidores que fizeram fortuna nos anos 1990. Esses dirigentes de um novo tipo souberam achar seu lugar na paisagem europeia. Diante da insistência de vários deles, incluindo Rinat Akhmetov, dirigente do Shakhtar Donetsk (Ucrânia), o presidente da União das Federações Europeias de Futebol (Uefa), Michel Platini, deu início a uma grande reforma da Liga dos Campeões, a fim de garantir uma melhor representação dos clubes da Europa Central e do Leste Europeu.
Esses personagens, muitas vezes atípicos, outrora carregados de mistério, dominam agora a paisagem futebolística em uma boa metade do continente. Alguns alcançaram o cargo em circunstâncias violentas: Akhmetov assumiu o lugar de Akhat Bragin, que foi vítima de um atentado; seis presidentes do Lokomotiv Plovdiv (Bulgária) foram mortos à bala entre 1995 e 2007. Uma vez estabelecidos, a maioria deles entrou nos eixos, com exceção de um pequeno punhado de personalidades que se recusam obstinadamente a seguir o modelo do gestor moderado, discreto, paciente e razoável elogiado pela imprensa especializada. Eles escrevem sua própria história, a golpes de milhões, escândalos e frases absurdas, que garantem sua notoriedade. Esses autocratas dignos dos espetáculos de luta livre norte-americana1 dão o que falar fora de campo e se mantêm sob os holofotes, manejando com inegável habilidade a arte da polêmica.
Na França, essas figuras foram encarnadas, na década de 1980, por Claude Bez e Bernard Tapie, cuja fama vai muito além da situação de seu clube. Louis Nicollin, presidente do Montpellier Hérault Sport Club, é um dos últimos representantes de uma espécie ameaçada de extinção. Em uma tirada célebre, ele chamou o capitão de uma equipe adversária de “viadinho”.2 Diante da indignação da mídia, acabou pedindo desculpas, fazendo piada: “Eu nem conhecia a palavra ‘viado’ dez minutos antes de dizê-la. Então ouvi ‘viado’ pra lá, ‘viado’ pra cá. […] Diante do microfone, esse ‘viado’ ficava ecoando na minha cabeça. Mas, como não sou homofóbico, peço desculpas”. E acrescentou: “Nunca tive nada contra gays. Quanto mais houver, mais mulher sobra pra gente”.3
Com a queda das “repúblicas populares”, no início dos anos 1990, o público dos estádios da Europa Central e do Leste Europeu descobriu esse tipo de dirigente original. Entre eles, Zdravko Mamic, figura central do futebol croata. Nascido em 1959 em Bjelovar, o empresário deve sua fortuna a investimentos em uma empresa florestal e uma cervejaria. Depois de vender suas ações a um traficante de armas durante a guerra dos Bálcãs, Mamic entrou no negócio de agenciamento de jogadores, subindo dentro do Dínamo Zagreb até alcançar o cargo de presidente.
Paralelamente a suas atividades como dirigente, Mamic assinou vários contratos vinculando-o financeiramente a jogadores do clube, o que mais títulos conquistou no país. Seu filho Mario também é agente de jogador, tendo entre seus clientes muitos atletas da equipe da capital. Essa situação de conflito de interesses manifesto incomoda os torcedores. Mas questionar o principal interessado a respeito pode se revelar perigoso.
No final de 2010, numa conversa com a imprensa, quando uma questão sobre o assunto foi lançada, Mamic – que um minuto antes se declarara pronto para qualquer pergunta – respondeu, todo sorrisos, ao repórter: “Você é um dos maiores mentirosos e falsificadores deste país. Você é um bandido e um monstro. Você mente o tempo todo”. Depois perdeu a paciência, quando o interlocutor insistiu: “Meu filho faz o que eu quero e o que eu acho que é bom, seu cretino sem cérebro. […] Quando eu sair do Dínamo, vou te encher de pancada”. O jornalista, impávido, fez então uma última tentativa e, desta vez, Mamic perdeu completamente a compostura: “Pare de mentir a esse povo que sofre!”, berrou. “Você não tem o direito. É por causa de gente como você que eu acabo com fama de ser um idiota decadente e violento.”4
Um pouco mais a leste, George “Gigi” Becali está no Steaua Bucareste, dia e noite. Nascido em uma família relativamente abastada de pastores romenos, ele multiplicou sua fortuna no setor imobiliário, negociando terras com o Exército romeno em 1998. O grande lucro obtido foi alvo de várias investigações e processos. Eles questionam a validade de seu título de propriedade e a legitimidade do Exército para vender terrenos em pleno centro da cidade. Sem se incomodar com o falatório, Becali entrou no capital do Steaua Bucareste, em seguida afastou, um após o outro, todos os candidatos à presidência do ex-clube do Exército, até alcançar a maioria das ações, em fevereiro de 2003. Oficialmente, transferiu a maior parte de suas ações para os sobrinhos, em 2007.
No entanto, sua passagem pelo comando de um dos clubes com mais títulos e mais populares do país forneceu-lhe uma excelente caixa de ressonância para expor suas ideias políticas. Entre 2004 e 2012, o empresário dirigiu o Partido da Nova Geração, de orientação democrata cristã. Inicialmente de centro, ele o transformou em um partido ultranacionalista inspirado no fascismo do pré-guerra. Habituado a proferir insultos racistas e homofóbicos, não se privando de atacar jornalistas, Becali ocupou brevemente um assento no Parlamento Europeu.
Em 2007, sua equipe enfrentou o CFR Cluj, clube de uma cidade com grande população de língua húngara. Becali suspeitou que a “maçonaria húngara” financiava seu rival – suspeita que, a seus olhos, reforçava a necessidade de uma vitória, pois a “Romênia seria a chacota do mundo se seu campeonato fosse vencido por húngaros”.5 Na ocasião, ele destacou que sua equipe, ao contrário da concorrente, tinha somente jogadores romenos em suas fileiras. O Cluj acabou com o título, mas Becali consolou-se contratando Antonio Semedo. Ele recebeu o atacante (negro) do Cluj com estas calorosas palavras: “Não gosto de gente de cor, mas não posso fazer nada, pois ele é um jogador bom demais para o deixarmos com os húngaros”.6
Ao mesmo tempo que esses presidentes irascíveis se preocupam em excitar os jornalistas a fim de fazer fama, não importa quão ruim ela seja, também se esforçam para manter junto aos torcedores um culto à personalidade fundado na onipotência. Nessa perspectiva, multiplicam as decisões brutais de demissão e contratação de pessoal de gestão. Nesse campo, os salários e a legislação francesa convidam a certa prudência, mas a situação a leste da antiga cortina de ferro permite qualquer extravagância. Desde junho de 2005, Mamic contratou e demitiu doze treinadores, embora seu clube tenha ganhado nove títulos consecutivos de campeão da Croácia.
Na Romênia, Becali também é mestre na arte de contratar o homem (provisoriamente) providencial. Em agosto de 2010, o técnico Victor Piturca saiu após 59 dias à frente da equipe. O presidente confiou o comando a Ilie Dumitrescu, “um bom sujeito… que trabalha de graça”. Um mês depois, ele foi considerado “muito muçulmano”, e prontamente afastado. Becali voltou-se então para Marius Lacatus, em quem via uma “solução de longo prazo para o Steaua”. Mas, em março, ele também foi demitido. “Aqui, quem faz a equipe sou eu”, bradou o presidente do clube, “isto não é uma democracia.”
Sorin Cirtu foi o quarto treinador da temporada. “Dou-lhe três meses, vamos ver.”7 No dia 5 de maio, o técnico foi embora sem pedir pagamento. Esses métodos têm mais a ver com a preocupação de produzir medo do que popularidade. No Dínamo ou no Steaua, os torcedores protestam com frequência contra a gestão do presidente, por meio de boicotes e manifestações, que costumam ter bastante adesão, apesar das vitórias.
Uma ajuda da e para a imprensa
Num momento em que as instâncias mundiais e europeias do futebol destacam o caráter unificador e humanista desse esporte, a indústria da bola tem dificuldade para se livrar de seus representantes mais incômodos, que gritam aos quatro ventos o que os colegas aprenderam a silenciar. E certo jogo acabou se instaurando entre os veículos de comunicação, que procuram os “alvos certos” para atacar, e os interessados, que são muito espertos para ser enrolados.
Em 2010, Vlatko Markovic, então presidente da Federação Croata de Futebol, declarou que os homossexuais não tinham lugar na equipe nacional. Cheios de esperança de alimentar uma grande polêmica, os repórteres correram para ver a reação do inevitável Mamic: “Vocês se interessam por coisas normais ou só por essas histórias? Noventa por cento do que vocês escrevem nunca aconteceu”, destacou o presidente do Dínamo Zagreb. “Enfim, vou dar minha opinião sobre o caso, já que evidentemente é nisso que vocês estão interessados. Na minha seleção, os gays também não vão jogar. Onde está o problema? Não vejo um homossexual fazendo marcação cerrada, roubando a bola, cabeceando, e assim por diante. Eu os vejo como dançarinos, artistas, escritores ou… jornalistas”.8
Balthazar Crubellier é jornalista.