Unila: por uma integração dos povos latinocaribenhos
A Unila nasce deste entroncamento entre a crise estrutural do neoliberalismo e o protagonismo de novos atores em cena na política regional, a partir das lutas sociais e políticas que delimitaram a chegada no poder de líderes sociais indígenas, sindicais e de movimentos sociais. Deste entroncamento fica explícito que a Unila aparecia como resposta política à histórica desigualdade estrutural da região, capitaneada pelo subimperialismo brasileiro no continente.
Imperialismo e subimperialismo
Em 1917, Lênin explicitou com muita sagacidade a transição do capitalismo concorrencial para o monopolista. Uma fase superior à anterior, mais intensa de concentração e centralização do capital, com expressiva reconfiguração das relações econômicas internacionais.
As independências das ex-colônias foram consolidadas nesse contexto de controle monopolista mundial, do dinheiro e das mercadorias. No imperialismo, a nova fase da produção-apropriação de capital segue enraizada nas velhas práticas de expropriação, espoliação, exploração da força de trabalho.
O imperialismo pauta a dependência, uma vez que o desenvolvimento capitalista da América Latina nasce condicionado a uma fase mais intensa de produção e apropriação de valor com primazia para o neoextrativismo e a superexploração da força de trabalho sustentados em uma vulnerável ideia de soberania nacional.
Ruy Mauro Marini (1974) definiu o subimperialismo como fundamento do desenvolvimento capitalista periférico condicionado pela nova fase mundial de produção e acumulação de capital. O imperialismo reordenou a Divisão Internacional do Trabalho hierarquizando as funções econômicas e políticas das nações mais e menos tecnológicas da América Latina e o Caribe. Criou um novo pacto colonial, caracterizado por uma ideia de soberania forjada pelo capital financeiro.
O subimperialismo expõe o papel das economias intermediárias na consolidação de políticas externas, em suas respectivas regiões de abrangência, com duas funções: a) aumento da escala de produção de bens semi-elaborados a serem utilizados na produção de bens finais pelo capital financeiro monopolista; b) reestruturação política interna a partir destas novas dinâmicas externas, condicionando o papel protagonista das economias intermediárias de atuarem politicamente como pares dos capitais imperialistas no continente.
O subimperialismo é irmão menor do imperialismo. Representa uma condicionalidade concreta: o desenvolvimento capitalista dependente na América Latina, subordinado à política imperialista do capital financeiro. México, Argentina, Brasil e Chile cumpriam a função de economias intermediárias nos anos 1930. Eram economias irradiadoras de uma ideologia do desenvolvimento que, na aparência de nacional, ocultava a essência do desenvolvimento desigual e combinado.
As oligarquias nacionais dominantes latino-americanas foram e são orientadas pelo capital monopolista internacional. Reproduzem e conformam uma dinâmica internacional calcada na necessária manutenção do desenvolvimento desigual e combinado.
Vânia Bambirra (1972) esclarece esta dinâmica a partir das tipologias do desenvolvimento latino-americano. Os países com um parque industrial constituído antes dos anos 1930, concebidos como economias do tipo A, teriam a função de manejar, a partir da dominação das economias hegemônicas, o desenvolvimento da região, atrelando suas políticas industrializantes ao dinheiro e ao capital-produtivo das economias imperialistas.
A nova fase de modernidade latino-americana abria o ritmo do desenvolvimento condicionado pela dependência estrutural.
Capitalismo periférico e subimperialismo
O apregoado nacionalismo presente dos anos 1930 aos anos 1950 demarcou a primazia da ideologia do desenvolvimento capitalista na América Latina. Dados os constrangimentos externos próprios de nossa condição dependente, a autonomia dos países latino-americanos foi submetida aos desígnios das classes dominantes comprometidas com a manutenção da dependência estrutural. Isto impossibilitou que a soberania no plano internacional fosse alcançada.
As nações periféricas são formalmente soberanas e realmente subordinadas ao capital financeiro monopolista. Esse traço marca de maneira indelével a trajetória das políticas externas dos países latino-americanos ao longo da história recente. Como produtor de mercadorias para a dinâmica internacional, nacionalismo e subimperialismo foram verbos conjugados na expressão dominante do imperialismo.
No período seguinte, com a recuperação no plano internacional de Japão e Alemanha, e tendo como pano de fundo a crise do petróleo no plano concorrencial monopolista, as políticas nacionais foram transitando para a incidência direta do capital financeiro monopolista. O subimperialismo foi, em grande parte dos países intermediários, desmontado, preservados poucos processos de capital produtivo estatal na região. Nesse período, subimperialismo e ditadura militar apresentavam-se como sinônimos.
A partir da implementação de políticas mais duras para garantir a retomada da taxa de lucro dos grandes capitais, nos anos 1970, as condicionantes do imperialismo tornam-se mais rígidas e exigiram dos países subimperialistas políticas mais duras de anexação de terras e de superexploração da força de trabalho no continente. São exemplos deste processo as migrações forçadas, o esvaziamento do campo com aumento da concentração de terra para o grande capital, o endividamento externo em crescimento exponencial e o ritmo de urbanização-industrial que colidia com a realidade de educação técnica, voltada para a qualificação profissional da população até então camponesa.
A ode ao progresso deixa para trás o nacional, ao focar no desenvolvimento integrado entre capitais de dentro e de fora, públicos e privados. O caso de Itaipu é emblemático: sua história propagada como sinônimo de progresso, ocultou as histórias de remoções forçadas, expropriações, espoliações na Tríplice Fronteira.
Com a abertura “democrática” nos anos 1980 e a ideia de progresso que a acompanhou, a internacionalização das economias latino-americanas foi feita de forma acelerada e os papéis das economias intermediárias no continente foram ressignificados, com centralidade para a privatização/desnacionalização das empresas estatais.
Nesse contexto de aprofundamento das políticas neoliberais, os “novos regionalismos” ressurgem como tendência nas relações internacionais, e conformam uma fase em que subimperialismo e neoliberalismo se retroalimentam.
“Regionalismo aberto” foi o termo escolhido pela Cepal em 1994 para caracterizar o novo ideário que deveria guiar os novos padrões dos organismos de integração regional alinhados com o receituário do Consenso de Washington. Com base na abertura projetada do norte para o sul, das economias latinocaribenhas, a agenda do regionalismo sem fronteiras, garantiu as transformações necessárias para que a livre circulação do capital fosse sacramentada. Mas não sem danos para a classe trabalhadora latino-americana, que viu seus direitos, que já eram frágeis, serem ainda mais destruídos pelas reformas.
O Mercosul, apesar de significar um movimento de defesa dos países envolvidos contra as ofensivas dos tratados de livre comércio dos EUA no Cone Sul, responde à agenda e aos objetivos do regionalismo aberto. O caráter comercial da integração, apresentava-se sob o manto do controle imperialista. E o nacional era assim espelho para irradiação direta das políticas internacionalistas do capital financeiro.
O nascimento do Mercosul foi combinado com a nova fase do subimperialismo brasileiro, sustentada nas políticas neoliberais irradiadas por Washington. Vale o destaque para o papel da Petrobrás e do BNDES na América Latina e Caribe nos anos 2000. A própria política binacional de Itaipu e os acordos traçados reforçam o subimperialismo brasileiro, dado que delegam o Paraguai a uma perversa condição subordinada nas negociações sobre produção e preço que chega às raias da perversidade comercial.
O neocolonialismo do capital financeiro encontra pares nas economias intermediárias, para sufocar ainda mais o capitalismo periférico dos países vizinhos.
Neoliberalismo, subimperialismo e “razão progressista”
O avanço da ofensiva neoliberal no continente nos anos 1990-2000 gerou um colapso econômico-social. A ideia de liberdade comercial foi assentada sobre o aprisionamento do desemprego estrutural, da fome e do endividamento dos Estados e das famílias. O resultado das políticas deflagradas pelo Consenso de Washington foi uma piora substantiva no nível de sobrevivência de ampla maioria da população da América Latina e Caribe.
Disto resultaram os levantes sociais no campo e na cidade, que culminaram na organização popular e social de grandes movimentos sociais, como no caso do Brasil, o MST. O século XXI abria, assim, a retomada das grandes contestações e lutas sociais camponesas, indígenas, originárias, nos cenários nacionais. A acumulação por espoliação (Harvey, 2004) abria as sendas nas terras latinas e delas brotavam inúmeros gritos de contestação à ode neoliberal.
Foi deste cenário que os movimentos políticos progressistas se apresentaram no cenário continental. As vitórias eleitorais de líderes populares ao longo dos primeiros dez anos do século XXI na América Latina mexeu com o imaginário latinocaribenho e, não menos importante, com a fera adormecida do capital financeiro monopolista. Desde os anos 1989, o capital financeiro sustentava o argumento geopolítico de que o socialismo havia ficado para trás na história.
Ditas vitórias eleitorais, progressistas, mudaram a tônica de integração no continente. Políticas regionais sustentadas na ação cooperada e solidária apresentavam-se como contraponto aos tratados de livre comércio anunciados do norte para o sul. Unasul, Alba e Iirsa, apareciam como novos desenhos potencializadores de outro mundo necessário e possível.
Neste redesenho o papel do Brasil era fundamental, dada sua posição de economia intermediária, subimperialista, uma vez que politicamente foi o país que conseguiu articular os países da região em torno de “temas-convergentes” que possibilitaram o avanço nos processos de integração regional, com centralidade para o social.
A integração dos povos, ancorada na solidariedade e irmandade entre os Estados parceiros, exigiu a consolidação de uma outra leitura de desenvolvimento regional, que resultou no Mercosul Social em 2007. Se é bem verdade que esta nova política não tinha condições de frear a brusca ação do capital imperialista dominante na esfera produtiva-comercial, também é o que apresentava possibilidades de relações menos severas no continente.
Do rearranjo na integração regional, com protagonismo de Lula, Chávez e Fidel, surgiu, entre vários diálogos diplomáticos e políticos governamentais a necessidade de se repensar as políticas comerciais, dando centralidade para o conhecimento científico regional.
Unila: subimperialismo x projeto popular
A Unila nasce deste entroncamento entre a crise estrutural do neoliberalismo e o protagonismo de novos atores em cena na política regional, a partir das lutas sociais e políticas que delimitaram a chegada no poder de líderes sociais indígenas, sindicais e de movimentos sociais. Deste entroncamento fica explícito que a Unila aparecia como resposta política à histórica desigualdade estrutural da região, capitaneada pelo subimperialismo brasileiro no continente.
O Brasil aparecia, assim, como país referência em dita articulação e produção. No entanto, sua força era ao mesmo tempo sua debilidade, uma vez que o papel de 8ª. economia do mundo invisibilizava sua condição subordinada nas relações econômicas internacionais.
O passado e o presente da Unila são explicados a partir das políticas de desenvolvimento, e suas inerentes contradições, traçadas pelo governo brasileiro do período Lula-Dilma. A Unila sempre esteve tocada pela dubiedade entre a centralidade da integração comercial e a desejosa consolidação de uma integração social, presentes na política de governo do PT. A primeira não retira do plano central a primazia do capital financeiro monopolista. A segunda, demarca uma aparente força nacional, em pleno vigor, da era da acumulação por espoliação.
O momento de inflexão pelo qual passa a Unila, no plano nacional e regional, advém desse duplo movimento: 1) das fragilidades políticas de economias nacionais que não conseguiram superar seu papel de subordinadas ao imperialismo nas relações internacionais; 2) do papel passado e presente do subimperialismo brasileiro, representante chave e coligado do capital financeiro monopolista.
A integração latino-americana fraterna e solidária não se concretizou até o momento. Os golpes somente aceleraram o que as políticas dos últimos 15 anos não deram conta de modificar: a primazia do imperialismo no desenvolvimento dependente latino-americano.
Sem dúvida esta é uma, entre várias visões sobre o entendimento de integração, dentro e fora da Unila. Afinal, como produção do conhecimento plural, a Universidade é um espaço de múltiplas referências, o que a caracteriza como diversa no que produz e no que defende.
Disso se trata o conhecimento: de produzir diversidade com o pé na realidade concreta com vistas a melhorá-la. Mas, o que se entende por melhor é o que dá a tônica do debate. Do nosso ponto de vista, os riscos atuais de destruição da Universidade precisam ser compreendidos a partir das disputas sobre a orientação a ser dada a integração: se dos povos ou dos capitais.
A continuidade da Unila não passa somente pela capacidade de constituição de uma rede capaz de defendê-la, ainda que isto seja fundamental e revigorante. Mas suas condicionantes estruturais estão demarcadas pelo teor das disputas no continente, uma vez que se trata do desmonte das políticas de Estado. Neste desmonte, o agronegócio retoma seu protagonismo na política, dada sua primazia na pauta de exportação.
Os golpes reorientaram o sentido da integração, tanto dentro das políticas do Mercosul, como na projeção da Unila. A integração comercial para ser refundada sem bloqueios necessita exterminar o protagonismo social. Triste, mas real constatação.
Apesar da rede solidária, nossas lutas não têm sido capazes de frear o desmonte: reforma trabalhista; medidas provisórias arbitrárias; mudanças feitas a toque de caixa com vistas a readequar o Brasil para uma nova dinâmica de sua subserviência subimperialista com centralidade para o agronegócio.
Na disputa atual, os que defendemos a integração solidária estamos em desvantagens. Isto é fruto de nossas próprias fragilidades na constituição da unidade programática, somada à retomada do grande capital financeiro na condução da política no continente. Isso se expressa em outros exemplos notórios, como o desmonte da UERJ no Rio de Janeiro, as ofensivas à Unilab, pelo bloqueio dos recursos previstos de serem empenhados pelas Universidades, somados à continuidade das contrarreformas.
Os povos originários, camponeses e trabalhadores urbanos vulneráveis à lógica do capital não cabem na integração ora dominante. Isto vale para todas as universidades latino-americanas que se pretendem autônomas e produtoras de um conhecimento emancipador. Afinal, sua função sempre esteve demarcada pela formação para o papel subimperialista do Brasil.
Defender as ações que têm incidência direta no território em nome do popular, é questão de princípio, e não se negocia. Políticas desumanizantes, criminalizadoras das lutas e destruidoras de direitos devem ser refutadas sempre.
Mas, para que seja mantida a função social da Universidade em geral, e da Unila, em particular, devemos ser capazes de lutar pela autonomia e preservar o que de melhor nos caracteriza: a disputa por um projeto societário contrário a todo tipo de política subordinada aos interesses do grande capital.
Neste processo em disputa fica a questão: Qual o tipo de integração com o qual trabalhamos? A dos povos ou a do capital? A integração que defendemos é a dos povos. Com base nela, “com licença, vamos à luta”!
Roberta Traspadini e Karen Honório são professoras do Curso de Relações Internacionais e Integração, Unila