Usos abusivos da categoria “epistemologias dissidentes” nas universidades
Os defensores da performance “Educando com o Cu” afirmam que a apresentação encontra-se em um quadro de irrupção de “epistemologias dissidentes”. É com esse argumento que quero discutir, especificamente com a adoção da categoria “epistemologias dissidentes” para os saberes produzidos pelas pessoas transsexuais
Passados alguns dias da performance “Educando com o Cu”, protagonizada por Tertuliana Lustosa na Universidade Federal do Maranhão em 17 de outubro, creio ser possível discutir o assunto com mais tranquilidade, fora da agitação ideológica e das tentativas de cancelamento que pautaram a repercussão do acontecimento.
Os críticos argumentaram que a performance expunha a reputação das universidades em um ambiente público carregado pelo pânico moral alimentado pela direita radical. Alguns, como eu, chamaram a atenção para a importância de distinguir liberdade de cátedra e liberdade de comportamento. Desde que cumpra os ritos acadêmicos, a pesquisa “educando com o cu” é legítima e deve ter espaço para se expressar na universidade, na forma de artigos, palestras e outras produções acadêmicas. Diferente é a performance, é o subir em cima de uma mesa e, literalmente, mostrar o ânus para a plateia, sem aviso prévio e classificação etária. Liberdade de cátedra não significa total liberdade de comportamento, assim como a apresentação acadêmica não é regida pelos mesmos critérios, e legislação, do espetáculo artístico.
Os defensores acreditam que a performance significa a irrupção de “epistemologias dissidentes” que traduzem as experiências dos “novos sujeitos” que ingressaram nas universidades a partir das políticas de ampliação do acesso que começaram a vigorar no início deste século. É com esse argumento que quero discutir, especificamente com a adoção da categoria “epistemologias dissidentes” para os saberes produzidos pelas pessoas transsexuais.
Primeiro, é importante reconstruir os conceitos que inspiram a “educação pelo cu”.
A principal fonte de inspiração é o filósofo espanhol transgênero Paul Preciado, para quem o “conhecimento pelo cu” é uma metáfora que questiona a centralidade do conhecimento lógico/racional, que na modernidade foi canonizado pelo conceito de ciência, formulado, entre outros, por Renné Descartes.
O conceito moderno de ciência está fundado na “observação de primeira ordem”, que afirma uma relação de exterioridade recíproca entre sujeito e objeto, com o sujeito do conhecimento assumindo a pretensão ao universalismo incorpóreo, como se alguém pudesse existir sem estar vinculado a um território e atravessado por pertencimentos de raça, classe e gênero.
No livro Manifesto contrassexual, de 2002, Preciado confronta essa pretensão ao universalismo incorpóreo, apresentando o corpo, o cu, como potência cognitiva. Conhecer pelo cu significaria denunciar a ideologia da ciência moderna, parte da dominação colonial que os países da Europa ocidental impuseram ao restante do mundo entre os séculos XVI e XX.
É essa a pista que alguns militantes instituídos nas universidades seguem para afirmar que os saberes produzidos pelas pessoas trans seriam exemplos de “epistemologias dissidentes”, na medida em que confrontariam o paradigma científico ocidental. O equívoco está exatamente aqui, em uma concepção muito limitada do que seria o “ocidente” e, por consequência, o “não ocidente”.
A possibilidade de produzir conhecimento a partir dos sentidos corporificados é tão ocidental quanto a própria ciência cartesiana. Se quisermos ir longe na genealogia, chegaremos aos tratados escritos por Heródoto e Tucídides no século V a.c. Ambos (Tucídides mais que Heródoto) afirmam o testemunho ocular, a autópsia, como o único registro cognitivo que seria, de fato, crível.
A literatura testemunhal convertida em gênero discursivo no século XX, a partir do trauma do holocausto, do apartheid e das ditaduras militares no Cone Sul, também esteve fundada no paradigma da experimentação corpórea como registro cognitivo válido. Tratou-se de uma modalidade de escrita sem autoria, em que o texto não é resultado da elaboração de um autor que explora cognitivamente o outro, tratado como objeto. No relato testemunhal, o corpo ocupa um duplo lugar: a experimentação e a enunciação, não havendo fronteira entre uma e outra. Trata-se da negação radical, e ocidental, do paradigma cartesiano.
O que estou querendo dizer é que essa crítica ao racionalismo, ao logocentrismo e ao conceito moderno de ciência é parte constitutiva do próprio repertório epistemológico ocidental. Nesse sentido, ao propor a educação pelo cu, Preciado, Tertuliana e qualquer outro pesquisador que pertença a esse campo de interesses são tão ocidentais como o mais ortodoxo defensor do positivismo científico. A modernidade ocidental é plural e complexa.
O uso abusivo da categoria “epistemologia dissidente” tem uma explicação.
Nos últimos anos, estudos sociais foram marcados por um giro em direção ao ativismo político, no qual alguns estudiosos das sociedades humanas tomaram para si a jornada de correção de todas as violências acumuladas ao longo da história moderna. Nessa jornada, alguns personagens foram eleitos como portadores do sofrimento histórico, como aqueles que devem ser reparados e protegidos. Esses personagens, hoje, são as pessoas trans e as populações tradicionais dominadas e exterminadas pela colonização europeia.
É esse gesto político/cognitivo supostamente reparador que coloca as pessoas trans e os povos tradicionais no mesmo lugar, quando são radicalmente diferentes entre si. A categoria “epistemologia dissidente” originalmente pensada para os povos tradicionais é, então, abusivamente ampliada para as pessoas trans, que passam a ser tratadas como portadoras de uma “cosmovisão” que representaria o “outro ocidental”, tal como as comunidades indígenas da América, os aborígenes da Oceania ou as sociedades tribais da África. Silencia-se o fato de que a ideia de transexualidade é ocidental, estando umbilicalmente vinculada às tecnologias da tão criticada e rejeitada ciência cartesiana. Não existe pessoa trans sem a indústria farmacêutica, sem o poder médico e sem dinheiro para pagar os custos da transição.
Nesta leitura simplificadora da realidade, a categoria “epistemologias dissidentes” perde seu potencial analítico, político e emancipatório. Todos saem perdendo, no ativismo e na teoria social. É o preço a ser pago pela total subordinação da atividade intelectual ao ativismo político.
Rodrigo Perez é professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia e pesquisador visitante na Universidade Complutense de Madrid.