Vale tudo para combater o protecionismo
Especialmente em tempos de crise, a vida pública se dobra diante de uma avalanche de números, taxas, notas e outras porcentagens que procuram quantificar a realidade objetiva. Arma superior de prova, o argumento estatístico é autoritário. Mas o que indicam os indicadores? Alguns têm por vocação simplesmente impedir a dGilles Ardinat
Os defensores do livre-comércio logo falam no risco de represálias aduaneiras quando são incomodados com a ação de governos em defesa da produção nacional, ação que se expressa pelo protecionismo.1 A lógica é a seguinte: na disputa de todos contra todos, se um país instaurasse cotas de importação e impostos nas fronteiras, o resto do mundo seria tentado a retaliar punindo as exportações.
Na França, por exemplo, o fechamento dos mercados estrangeiros aos produtos do país causaria a ruína das empresas exportadoras. Segundo a presidente do Movimento das Empresas da França (Medef), Laurence Parisot, o impacto social do fenômeno seria considerável: “Nunca esqueça”, diz ela,“que um em cada quatro assalariados da França depende, vive da exportação. Então imagine se, assim de repente, fosse instaurado o protecionismo, o fechamento de fronteiras! Eu acho uma grande ilusão”.2
O argumento seduziu o presidente da União por um Movimento Popular (UMP) na Assembleia Nacional: Christian Jacob rejeitou a perspectiva de uma “França debruçada sobre si mesma, com fronteiras fechadas, quando 25% dos franceses trabalham para a exportação”.3
Tanto a preocupação da representante do patronato francês como a de Jacob baseiam-se num indicador chamado “taxa de abertura”. Essa cifra, muito utilizada para medir o nível de inserção das nações na globalização, costuma ser calculada com base na relação entre as exportações totais (bens e serviços) e o PIB. Para a França, as exportações corresponderam a 492,2 bilhões de euros (ou 25,4% do PIB) em 2010, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos (Insee). Em escala mundial, a proporção chega perto dos 28%.
Mas fica a questão: o indicador escolhido é confiável? Ocorre que as exportações são definidas pelo preço de venda, enquanto o PIB soma valores agregados. Essa é uma diferença fundamental, pois um produto consumido no exterior é contabilizado em função de seu preço, ao passo que o mesmo produto, consumido na França, é considerado apenas pela margem que gera. Na escala de uma loja, isso estabeleceria uma confusão entre o preço de etiqueta de um produto e a margem bruta obtida pelo estabelecimento. Mas enquanto qualquer consumidor logo entende a diferença entre o valor em sua nota de compra e a margem do comerciante, os grandes observadores da globalização confundem os dados. Consequentemente, a “taxa de abertura” superestima o peso das exportações na atividade econômica, um viés estatístico que distorce significativamente o debate sobre o protecionismo.
Considerando as empresas francesas, pode-se constatar que o volume de negócios é, em média, três a quatro vezes superior à soma dos valores agregados. De acordo com a Elaboração de Estatísticas Anuais de Empresas (Ensane), o volume total de negócios das empresas comerciais francesas, excetuando-se a agricultura e o setor financeiro, foi de 3,6 trilhões de euros em 2008, para um valor agregado de 976 bilhões de euros. Ou seja, um volume de negócios 3,68 vezes maior que o valor agregado. A contribuição dos clientes estrangeiros para nossa riqueza nacional revela-se, assim, fortemente superestimada. Portanto, quem quiser insistir em usar esse indicador discutível deve considerar não “um a cada quatro assalariados”, mas um a cada 14 assalariados que “depende, vive das exportações”.
Desse modo, o peso de 25% das exportações na economia francesa constitui, na melhor das hipóteses, uma distorção. Essa aberração estatística é flagrante no caso dos pequenos países altamente globalizados. A taxa de abertura de Cingapura, por exemplo, vai muito além de 100%, o que significa sugerir que o país exporta mais do que produz. Segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), o montante de suas exportações somou US$ 357,9 bilhões em 2009, para um PIB de US$ 182,2 bilhõwes, o que dá uma taxa de abertura de 196,4%!
A árvore e a floresta
Acenar com o fantasma da demissão de um quarto da população ativa (7 milhões de pessoas na França) permite, antes de qualquer coisa, dissimular o desastre do livre-comércio. As transferências de fábricas destruíram milhões de empregos: as produções têxtil, de calçados, brinquedos e a construção naval praticamente desapareceram de nosso território. A indústria automotiva está em via de ter o mesmo destino. Em dez anos, a França perdeu um terço de sua produção!4
A “deflação salarial importada”, isto é, a baixa tendencial dos salários provocada pela concorrência internacional, afeta o poder de compra, ameaçando pesadamente a demanda mundial e criando as condições para o superendividamento. Os desequilíbrios nas balanças de pagamentos geram uma instabilidade sistêmica: acumulação de colossais reservas para alguns, déficits abissais para outros. Essa discrepância ocorre tanto no interior da União Europeia – o que agrava a crise do euro – como em escala mundial. A livre circulação de capitais levou nosso sistema financeiro a uma crise perpétua.
A árvore protecionista (hipotética) seria capaz de esconder a floresta (bem real) da desordem planetária atual?
* Gilles Ardinat é geógrafo.