Vamos ocupar o centro!
A ressureição do radicalismo é a regra, porque os atores políticos deverão produzir novas ideias e distanciá-las a partir do centro
Nem toda ideia política dura. Algumas são como papel de mágico quando pega fogo; incendeiam e desaparecem. Não é o caso dos extremismos, cuja natureza é a permanência. As ideias radicais são uma tendência prevalente na produção e no comércio de ideias políticas, que se dedicam sempre à vitória, porque vitória é poder, e toda ideia política almeja poder. As convicções, na política, são subalternas às ideias.
A história do nacional-socialismo conta que Goebbels sugeriu a Hitler uma aproximação ideológica ao marxismo, com o que foi duramente repreendido. Não necessariamente porque o füher odiasse as ideias de Marx, ou as menosprezasse como expressão do pensamento judaico, mas porque, para ele, a aproximação pretendida por Goebbels arriscava uma indistinção entre as ideias políticas e, portanto, entre os produtos políticos delas derivados, de cujo comércio vivem os atores políticos, na busca incessante pelo poder.
Uma diferenciação exponencial de ideias, como o esforço para distinguir produtos no mercado, é ocorrência ordinária na vida das ideias políticas. A sua credibilidade não prescinde de um contexto factual que as envolva, uma espécie de embalagem, uma narrativa de aterramento e de demarcação, que conecta a energia eletromagnética das ideias a um lugar político determinado e as circunscreve em busca de adeptos, de consumidores (ou clientes), que serão os moradores do lugar político.
Esse processo encontra limites: o fracasso da expressão sensível das ideias radicais. Um malogro que não decorre necessariamente da qualidade das ideias, mas, o mais das vezes, de sua desastrada execução, das consequências destrutivas de ideias radicais transitoriamente vitoriosas. Foi assim que morreu o nazifascismo, ou o comunismo soviético. É possível que, pelo mesmo motivo, algum dia morra o capitalismo como o conhecemos, essa ideia radical, sob pena de dar cabo do planeta.
Mas a morte dos extremismos tende a ser efêmera, sempre precária. A ressureição é a regra, senão sob a hipótese, que cogito, a despeito de considerá-la remota, do fim da reencarnação interminável dos radicalismos como condição da subsistência humana, uma espécie de rendição da natureza prolífica das mentes políticas diante de uma saída única para a manutenção da vida na Terra. Seria o assassinato improvável dos extremismos pelo instinto de sobrevivência humano.
A ressureição do radicalismo é a regra, porque os atores políticos deverão produzir novas ideias e distanciá-las a partir do centro, acotovelando-se em busca de seu lugar, de seu espaço de existência, que tende invariavelmente para os polos.
Nada, absolutamente nada é mais perigoso para a vida dos extremismos do que o bom senso. E o bom senso não é a verdade, de cuja existência tenho sérias dúvidas, mas sim a convergência, o acordo, o pacto majoritário condicionado, cujas consequências não impõem danos às minorias (para que a liberdade de avençar não se transmude em instrumento de opressão). É, portanto, a consagração da democracia inofensiva. É a ampla e material autodeterminação, com a qual jamais haverá vencedores e vencidos. É a utopia, a mais bela ideia política, massacrada pelo egoísmo e pela ignorância.
Mas o bom senso escasseia sob a proliferação de ideias radicais, que, mais e mais, parecem plausíveis, sob as emoções dos ouvintes; a bem da verdade, diante do acoplamento calculado de emoções, de crenças, de preconceitos e de informações, especialmente urdidas, ao gosto do freguês: informações à moda. Um sussurro do diabo, capaz de apertar os gatilhos da vontade. A propaganda política já os conhece, já os fabrica com extrema proficiência, sob uma tecnologia que combina massificação e especialização, que produz, em conteúdo e em forma, um discurso para cada ouvinte (e para todos os ouvintes), com o fim de conduzir-nos a todos para o mesmo curral.
Nunca, em meu tempo de vida, pareceu-me mais oportuno conclamar os concidadãos para o bom senso, para que abandonem, em favor da democracia, desse lugar que permite pensar e dizer, sob regras, quaisquer ideias radicais. E não se trata de uma rendição, do abandono das convicções, muito ao contrário. É precisamente um ato de amor às convicções. Uma conclamação para ocupar o centro democrático serve para muitas coisas. É indispensável para, em primeiro lugar, diluir os oportunistas que vestiram, no Brasil, o disfarce da razoabilidade, do alto de seu grau de centristas. Redefine, em seguida, um espaço de entendimento que, se for perdido, nos levará ao estado de guerra hobbesiano. O centro, por oposição à extrema direita fascista, que se organiza e que se fortalece aqui e em muitos países, será a Arca de Noé. Um lugar de pragmatismo onde é de todo aconselhável que convivam raposas e galinhas, lobos e ovelhas. As raposas e os lobos continuarão a ser raposas e lobos, com vontade de comer galinhas e ovelhas, mas sob um armistício temporário e indispensável para que, desse modo, passada a tempestade e o dilúvio, quando as águas refluírem, todos ainda existam, sob a ordem natural das coisas, para continuar a comer e a ser comidos. Na arca são bem-vindo progressistas e conservadores, todos os bichos da floresta, para que permaneçam convictos da importância do enquadramento democrático, porque, sem democracia, nada mais existirá senão opressores e oprimidos. Não haverá bichos se não houver mundo, apenas o silêncio e a escuridão, a morte para aqueles que dependem de dizer, de pensar e de escolher para existir.
É ingênuo e mortal acreditar que haverá lugar aos oprimidos entre os opressores, ou entre os opressores disfarçados de oprimidos. Não se deve esquecer de que extremismos prevalentes, sobretudo quando vitoriosos, têm a capacidade de controlar as percepções, para detrair o bom senso e travesti-lo de contrapolo: é a camuflagem das obviedades, para que se mimetizem na floresta dos radicalismos.
É preciso que a democracia sobreviva e, com ela, também os seus seres, para que melhorem, para que se desenvolvam, para que expurguem seus defeitos, porque o fim das democracias não é remédio.
O centro é o lugar precípuo de sobrevivência das democracias, não é o meio fio, não é o cimo do muro, não é um não-lugar, mas o magneto, o campo para o qual se atraem as convergências, o mínimo de entendimento. Então, nos resta ocupar e disputar o centro, fortalecê-lo, convidar partidários e adversários para que nele coabitem até que as águas refluam. Vamos ocupar o centro!
Walfrido Warde é Advogado, presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa.