Ver ou ter
Cadáveres no formol, vídeos de garotas nuas rolando na lama: tais audácias posadas, portadoras de um valor financeiro conferido pela moda, dominam a arte contemporânea. De forma mais discreta, pintores continuam a enfrentar a tela para produzir explosões estéticas e sensoriais capazes de alimentar o corpo e o cérebroGérard Mordillat
Diante desta ou daquela tela de estarrecedora beleza, quem nunca pensou ou nunca ouviu dizer: “É preciso ver para crer”? Ora, hoje em dia, os defensores daquilo que a crítica designa como “arte contemporânea” inverteram essa proposição: agora é preciso crer antes de ver. Baseando seu credo na réplica do Ressuscitado no Evangelho segundo João – “Felizes aqueles que não viram e creram” (João 20-28) –, eles proclamam que não se trata mais de o espectador experimentar o poder emocional de uma obra, compreender a inteligência dela, exercer seu espírito crítico em relação à tela; eles reclamam, em nome de sua autoridade mercantil, institucional ou artística que, previamente, cada um abdique de todo saber, de toda cultura, e creia que “é arte” porque eles estão afirmando isso. O “crer” substituiu o “ver” sob os auspícios da Santíssima Trindade: o artista, o curador da exposição e o crítico de arte.
A AUTORIDADE DO SUCESSO FINANCEIRO
A arte contemporânea – ou mais exatamente a “família vende tudo” elevada à dignidade artística – se parece com o Retábulo das Maravilhas que dois charlatões exibiam numa novela de Cervantes. Os dois vigaristas iam de vilarejo em vilarejo mostrar e fazer adorar o famoso retábulo. Requisitava-se a cada pessoa que colocasse seu óbolo antes de admirar a imagem sagrada que só podia ser vista pelos espanhóis de pura cepa, aqueles que não eram judeus, nem convertidos, nem bastardos. Na verdade, não havia nada para ver, mas todo mundo via alguma coisa, com medo de ser apontado de maneira difamatória. Bastava uma palavra enganadora para que aquilo que não era fosse visto! No caso da arte contemporânea, como no do Retábulo das Maravilhas, não há nada para ver, mas, com a fé cavilhada nos olhos, com o catecismo dos museus na cabeça, é preciso considerar esse nada como arte e aplaudir ao preço de nossa submissão à regra imposta.
O problema não é estabelecer uma hierarquia qualquer entre as obras. Na arte contemporânea, há, é claro, algumas criações totalmente notáveis, da mesma forma que a grande pintura persiste hoje na França, ainda que ela seja ignorada pelos poderes públicos e desprezada pela crítica. O problema é a hegemonia dessa forma artística que invade todos os territórios do “ver” em nome do moderno (pós ou neo), do modernismo, da modernidade, da moda em todas as suas declinações. Os fundos regionais de arte contemporânea (Frac), as diretorias regionais dos assuntos culturais (Drac), todas as rimas em “ac” das instituições culturais estão hoje gangrenadas, e a pintura, como Jesus no Evangelho de Mateus, “não tem lugar para repousar sua cabeça” (Mateus 8,19). Atualmente, não existe em Paris nem na França um lugar público onde se possa admirar a criação pictórica contemporânea regularmente exposta em grandes amplitudes. Cruel ausência. Na exposição de Ernest Pignon-Ernest, o público corria à galeria Lelong, em Paris.1 A multidão – não há outra palavra para definir – não ia para comprar; ia em massa para ver a obra de um artista que ela só podia descobrir naquele lugar privado!
Pignon-Ernest é apenas um exemplo entre mil do tratamento reservado hoje aos pintores que, cotidianamente, enfrentam na tela os desafios do traço, da cor, da luz e são condenados ao ostracismo como em Cervantes, qualificados de “passadistas”, “acadêmicos”, “reacionários”, ou seja, “judeus e bastardos” da arte.
Tomemos como fato a provocação contida, por natureza, na própria expressão da arte contemporânea. Obviamente, ela não reside na fatura das obras expostas. Em sua imensa maioria, estas oscilam entre o infantil, o Duchamp revisitado, o Warhol renovado e a ingenuidade pretensiosa de novos Vadius e Trissotin, cuja célebre réplica poderia servir de epígrafe a tantas instalações, mostras, exposições, performances: “De resto, ele faz maravilhas tanto em verso quanto em prosa/ E poderia, se quisesse, mostrar alguma coisa a vocês”. Obrigado, Molière, por esse maravilhoso condicional – “poderia, se quisesse” – adequado para fazer desmaiar todas as mulheres cultas de ontem e de hoje.
A forma não é de maneira alguma surpreendente: cadáveres no formol como no Museu do Homem, cachorros em balões inflados como na Feira do Trono, totens de Lego, montes de tijolos roubados de um canteiro de obras, cabo estendido em um cômodo vazio, vídeo da eterna mulher nua que pode rolar, à escolha, na fuligem, na lama, na areia, no sangue, no cocô… A maneira é industrial, a mão do artista não é mais que a de um contramestre dirigindo seus operários com um apito.
Não, a provocação da arte contemporânea tem a ver com uma única coisa: dinheiro – o preço pelo qual esses trabalhos são avaliados e vendidos.2 Não é bonito porque é bonito (seja o que for que coloquemos por trás dessa palavra), é bonito porque é caro! A autoridade do sucesso financeiro prevalece sobre a do talento. O ter suplanta o ver. A obra, na realidade, pouco ou nada importa. Só o valor de mercado conta, como na velha piada judia da calça com uma perna só que um tolo quer vestir antes de descobrir a suas expensas que ela não foi feita para ser usada, mas para ser vendida e revendida, como o são hoje as obras mais destacadas da arte contemporânea. “Os burgueses do século XIX compravam William Bouguereau,3 hoje eles compram Jeff Koons”, ironiza Pignon-Ernest. A Financial Art suplantou as Belas Artes. Podemos apostar que um dia – se isso já não aconteceu – uma obra será constituída apenas pelo cartaz do seu preço. Não será o quadrado negro sobre um fundo branco de Kasimir Malevitch, mas o tíquete de caixa ampliado até o tamanho das Bodas de Canaã, de Veronese.
UM PENSAMENTO PICTÓRICO
É preciso talento e coragem para pintar, e arrogância e cupidez para vender o nada enfeitado com lixo ou diamantes. É preciso também uma imbecilidade fundiária para que um Damien Hirst possa afirmar como um fanfarrão que “qualquer um pode pintar como Rembrandt”, basta “treinar”.4
As telas de Fra Filippo Lippi, Nicolas Poussin, Matthias Grünewald, Ticiano, Caravaggio, Pablo Picasso, Georges Rouault, Paul Gauguin, Edward Hopper, Diego Velázquez, Simone Martini e outros, em uma lista infinita, se dirigem a nós no presente, refletem (em todos os sentidos da palavra), “pensam”, como dizia Daniel Arasse e, sobretudo, “pensam pictoricamente”, como acrescenta Patrice Giorda.5 A história da pintura da caverna Chauvet até os dias de hoje nos diz mais sobre o mundo em que estamos do que cem reivindicações do “contemporâneo”. Ela nos ensina a ver onde outros nos confundem, quando não confundem a si mesmos.
Voltemos então à questão de ver bem ou de não ver nada, porque esse pensamento pictórico não é feito de palavras, mas de cores, sombras e luzes, dos quais devemos, toque por toque, descobrir a gramática. Há algo de profundamente físico na visão de uma tela; a emoção não é necessariamente intelectual, pode ser o queimar de todos os meridianos do corpo, um abalo que liga os músculos e excita os nervos. É preciso se colocar ali, colocar a mão na massa, como Ticiano, que terminava suas telas “muito mais com as mãos do que com um pincel”.6
Restituindo ao “ver” sua força subversiva contra o “crer” clerical e mercantilista, aqueles que pintam hoje na contracorrente das vaidades e das fraudes “contemporâneas” conferem ao ato da pintura sua dignidade, seu mistério, sua capacidade de transformar o mundo com um olhar único.
Gérard Mordillat é escritor e cineasta. Última obra publicada: Rouge dans la brume [Vermelho na bruma], Calmann-Lévy, Paris, 2011.