Viagem com o Submarino Vermelho
Entrevista com o grupo de jovens cineastas que aceitou organizar uma mostra sobre cinema político no 19º Festival de Curtas de São Paulo. Em debate, a importância de 1968, quarenta anos depois, as novas relações entre arte e política e a atitude dos que decidem agir em vez de mergulhar na militância burocráticaJavier Cencig, Moara Passoni
Terminou em 29 de agosto o 19º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, realizado em diversas salas da cidade, que reuniram grande público na maioria de suas sessões — muitas delas tiveram ingressos esgotados. A programação do festival foi dividida em diferentes mostras, como as dedicadas a filmes brasileiros, latinos, internacionais. Um dos principais destaques foi a mostra de cinema político Carta Branca ao Submarino Vermelho, organizado pelo coletivo Submarino Vermelho, que se propôs a herculana tarefa de selecionar curtas políticos de todos os tempos e lugares. Le Monde Diplomatique – Brasil esteve presente no festival e procurou entender as relações que se delinearam entre cinema e política.
Nada a declarar
Na sessão [1] marcada pela presença de filmes sobre movimentos negros, o público, formado em sua maioria por brancos, teve seu momento de maior manifestação — gargalhadas e aplausos — durante a exibição do filme Nada a declarar, de Gustavo Acioli. Nele, o “personagem” entrevistado apresenta um discurso bem elaborado, pautado por atraentes clichês e armadilhas retóricas. O texto tem a ambigüidade de ser uma crítica sarcástica a uma classe intelectual bastante propensa à inação ou à própria justificativa retórica para sua inércia. Como Desnoes [2] nos lembrou, ao falar de Memórias do Subdesenvolvimento, a longevidade e a riqueza de uma obra residem justamente na ambigüidade, na polissemia. Neste sentido, será bastante eloqüente nos determos sobre armadilhas retóricas e reação do público, pois certamente trazem à tona as contradições próprias de uma geração que não aceita o rótulo de “geração simpática” e decide realizar uma mostra chamada Carta Branca ao Submarino Vermelho, dentro do Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo.
Esta mostra, cuja proposta foi realizar uma ponte entre o cinema político dos anos 60 e o cinema militante dos dias de hoje, foi um dos destaques do festival, que este ano chegou a sua 19ª edição. O coletivo Submarino Vermelho surgiu a partir do convite que a organizadora do festival, Zita Carvalhosa, fez ao estudante do audiovisual da USP, Rica Saito, após assistir seu filme Procura-se durante o festival É tudo Verdade deste ano. Procura-se, um documentário que recorre a diversos cânones do gênero para contar a vida do “desconhecido” Mário Rocha, pode ser visto como um interessante questionamento sobre a própria linguagem do documentário — de seus mecanismos próprios de legitimação. Por meio da desconstrução do mito de 68, ao qual nossas gerações parecem estar amarradas, Saito afirma que procurava, com o filme, pensar como a juventude de hoje se insere no mundo e encontra suas próprias formas de ação política.
Por ora, retornemos ao filme de Acioli. “Considero um desrespeito, uma afronta, falar de fome para quem tem fome, ou em nome dos que têm fome. Eu não vou falar de revolta com a polícia, porque a polícia não me pára, não me revista, não me bate. Quando um policial tem que falar comigo, ele me chama de doutor, entendeu?”, diz o personagem. No filme, este é um artista, realizador de documentários, que concede uma entrevista — feita nos moldes de um talkshow —, na qual explica porque não tem nada a declarar. Sua fala baseia-se principalmente nessa postura aparentemente respeitosa que resgata o tema da indignidade de se falar em nome dos outros. A franqueza do personagem, beirando confissões próprias de um exame de consciência que oscila entre avalizar seu heroísmo e pôr a nu todas suas contradições, opõe-se às expressões da jornalista que, mesmo pasma, não lhe contrapõe qualquer argumento — talvez convencida de que seria um esforço vão.
Até que ponto, ao querer falar em defesa dos outros, dos menos favorecidos, não estamos colocando nossas palavras em suas bocas, fabricando seus discursos e uma vez mais domesticando sua revolta? Até que ponto, essa mesma pergunta sobre as conseqüências do “lugar de onde se fala” não é simultaneamente um envolvente convite para a inércia? Essas contradições multiplicam-se e emaranham-se em um filme simples feito apenas com uma câmera fixa, que registra o discurso do entrevistado, com ocasionais cortes para a jornalista. Tais contradições encontram eco na platéia, que oscila entre risos de quem reconhece um espelho renegado e uma certa indignação. Que lugar político é este, que é preciso inventar? Eles, os que sofrem, que se articulem e protestem; nós, privilegiados, comemos nosso queijo e tomamos nosso vinho e não temos “nada a declarar”.
Além de exortar de modo tão sagaz à inação, tal fala oculta (ou, antes, revela) outro aspecto significativo no que diz respeito à perversidade de um sistema que se infiltra nos mais recônditos capilares das relações humanas. Dizer “eu não sofro” coloca a priori toda uma visão do político, que tornou a política o cenário onde se dão as lutas em defesa de direitos individuais e particulares demais para se tornarem lutas políticas comuns. Imaginar que se possa viver em uma sociedade estruturada na desigualdade gritante, onde há miséria e sofrimento, sem que isso implique nosso sofrimento individual, conota, de imediato, uma postura de apatia em relação aos processos de dominação e exploração do qual fazemos parte. Mesmo que rejeitássemos a questão do sofrimento da própria classe média, oprimida em sua posição de kapo, não poderíamos descartar seu papel de carrasco em tal processo. Se a indignidade de falar em nome dos outros é inapelável, não menos indigno é omitir-se e não se perceber como parte de um determinado processo sóciometabólico. Talvez o ponto seja falar em nome próprio ao perceber-se parte deste processo. Falar a partir de um lugar que se reconhece como tal. Como sugeria Padre Jaime, enfim, “a cabeça pensa onde os pés pisam”.
Livros e armas
Outro momento de grande reverberação na sala ocorreu durante a exibição do filme Vaguei os livros, me sujei com a merda toda, de Akins Kinte, Mateus Subverso e Allan da Rosa. Em um dos testemunhos, uma jovem conta que sua família não era muito preocupada com a questão do negro no Brasil, até o dia em que ela foi parar no hospital após tentar clarear seus olhos com sabão em pó e sua pele com água sanitária. O filme procura enfatizar como a dominação sobre o negro ocorre não apenas pela força, mas também pela apropriação de sua história. A história oficial, tal qual é narrada pelo colonizador, destina ao negro um papel em que este só pode reconhecer-se em uma condição de inferioridade. Daí a importância estratégica de reconstruir sua própria história, de uma ação afirmativa que permita criar uma identidade a partir da própria literatura negra — isto é, a importância de dominar os meios de produção cultural, especialmente a escrita. Os organizadores da mostra realçam, que, a princípio, chegaram a pensar se tais questões não teriam um caráter secundário em relação à idéia de uma luta maior. Mas ao ver esses filmes, entenderam a relevância de sua temática e a dificuldade em desligar um ato de resistência das demandas imediatas.
O choque maior, porém, estaria por vir, como conta Paulinho, um dos integrantes do coletivo. Durante a mostra, estava prevista a realização de um ato no DOI-CODI, um dos maiores centros de tortura da ditadura no Brasil. Por um remanejamento na programação do festival, porém, o ato coincidiria com uma performance dos realizadores do filme chamada Versos Pretos. Para resolver a questão, o coletivo os procurou para trocar o horário. A resposta, segundo Paulinho, foi muito impactante: “Tudo bem, nós já estamos começando a nos acostumar com esses 508 anos de palavra metamorfoseada”. Essa resposta conotava um ceticismo em relação às próprias intenções do coletivo, como se rememorar o que ocorreu no DOI-CODI fosse algo que não dissesse respeito ao próprio movimento negro. “Em que momento na história ocorreu essa fissura?” – pergunta-se Paulinho – em que já não é mais possível pensar numa luta que se articula para além das diferenças?
Parece ser diante de todas essas questões e tensões que o coletivo Submarino Vermelho formou-se para realizar a mostra de cinema político dentro do festival. Um mostra que não se contenta em ser apenas mais uma mostra de cinema político, pois deseja ir além da tela, tirar o espectador da passiva posição de contemplação. Nesse sentido, a importância de se pensar 68, não para ratificar o mito, mas para desconstruí-lo e tornar vivo aquilo que em nós persiste. Não é a perpetuação de um mito, mas sim a continuidade de uma luta por parte de uma geração que se sente obrigada a combater o rótulo de geração apática ou, ainda pior, de “geração simpática”. A pergunta, porém, que retumba inquieta para os próprios organizadores é, justamente, como fazer isso.
Como não deixar que seja “apenas mais uma mostra de um bando de estudantes”? Eles assumem que criar espaços de resistência e encontrar o sentido político da arte em um sistema capaz de absorver e digerir tudo é algo difícil. Especialmente se lembrarmos a crítica que o coletivo enfrentou de outros grupos, por aceitar fazer parte de um festival, que há 19 anos, conta com o patrocínio de uma grande empresa estatal. Mas, se algum dia “como fazer isso” foi uma questão, agora, optaram pela ação — por fazer e usar esse espaço que se abre, para promover encontros. Entrar pela brecha que desponta, para então transformar. Fazer do cinema não só o templo moderno da contemplação, mas o fórum mesmo de encontro entre os grupos realizadores e o próprio público, onde se possam dar os debates acerca das demandas específicas. Um encontro que permitiu, por exemplo, que o grupo Favela Atitude trouxesse à luz uma versão que a mídia oficial recusou-se a mostrar, sobre a ocupação da favela do Real Parque, em São Paulo. O evento ficou largamente conhecido como o conflito que paralisou o trânsito na Marginal do Pinheiros. No filme Na real da Real, realizado por um coletivo formado por moradores da favela, podemos conhecer um processo de desocupação cheio de irregularidades, levado a cabo de forma desumana em nome de interesses econômicos. É nesse espaço, que o cinema é capaz de propiciar, como fez nos anos 60, reflexões sobre as possibilidades de articulação nos dias de hoje. E, como nos lembra Kelly, integrante do Submarino Vermelho, isto nos permite refletir como a transformação pode se dar por meio desta grande linha de resistência: a arte.
Submarino Vermelho
No sábado à noite nos reunimos com o Submarino Vermelho após o término do Festival. Ali ficamos por três horas conversando sobre a experiência do coletivo na mostra Carta Branca.
Le Monde Diplomatique: Como surgiu o grupo? Por que 68?
Kelly: Tem um pouco a ver com o filme (Procura-se, de Rica Saito), no sentido de ser uma tentativa de trazer os questionamentos para o hoje. Brincamos na nossa Carta Branca ao Submarino Vermelho, no Catálogo do Festival – “geração simpática”. Esta idéia de que as coisas só aconteciam nos 60 e hoje, somos uma geração apática. Pensamos um pouco nesta relação de que as coisas estão acontecendo hoje, que somos protagonistas deste hoje, e que ele faz parte desta época ali. Os anos de 68/2008 não são momentos estanques — há continuidades. As coisas estão relacionando-se. Então, o filme trouxe um pouco disto.
Tom: Acho que isto é uma coisa minha e do coletivo… nossa. Pelo menos no ambiente que convivemos. Há um excesso de saudosismo na Universidade e as pessoas adoram discutir horas, mas falta algo propositivo. É um lugar onde parece que “agora” é uma palavra proibida. Sempre é antecedida de plenárias, congressos. Então, cada decisão, cada acontecimento, entra nessa escala – legitimando-se para não legitimar. É o militante apropriando-se do discurso burocrático para não militar. Tentamos cuidar para que não acontecesse isso. Então, partimos da seleção de filmes. O Oliver se opôs, já que queria uma discussão anterior. Falamos “vamos discutir, mas quais filmes você quer mostrar?” Quando tínhamos que decidir o que queríamos mostrar, estávamos lidando com um campo restrito. As questões tornavam-se mais palpáveis e aparentes. A questão novamente colocou-se quando decidimos promover atividades para além das telas. Vamos fazer um ato! Mas que ato? Em cada uma dessas escolhas e desenho de ações, tentamos trazer elementos do agora — projetando no agora. Nesse sentido, foi muito significativo ter ido ao ato do DOI-CODI no domingo. Ver muita gente que quase morreu lá — e que hoje não passa nem na frente — indo lá, se emocionando. Eles foram pisando e a gente desenhando linhas vermelhas no chão, enquanto os policiais nos chamavam de dualistas — “somos do socialismo e eles do capitalismo” —, quando na verdade tratava-se apenas de algo anterior a isso, do reconhecimento de um momento histórico do Brasil.
Somos muito colonizados. Negamos nossa história, negamos a escravidão. O filme Vaguei os livros e me sujei com a merda toda fala desta colonização brasileira, que começou com a escravidão, já colocando o negro em um outro patamar. E hoje, vemos várias permanências. No Brasil, questões cruciais tornam-se tabus. Uma vez, Zé Celso me falou que os tabus viram totens. Os tabus são vários, os totens também, o do Zé é outro… Quais são os nossos? Acho que é bom tocar onde ninguém esta querendo falar. Por exemplo, vai fazer 40 anos do Maria Antônia e no Mackenzie é proibido falar. E nossos filmes é igual, acontece a mesma coisa. Falam de atitudes e totens.
Paulinho: As considerações vão para vários lados. Eu gostaria de colocar minha visão sobre nossa geração e a de 68. A nossa tentativa foi de trazer o que continua vivo do 68. O que já não é uma coisa do passado, mas que continua presente. As questões que foram levantadas em 68, mas que continuam atuais e que, em nosso contexto político, histórico, encontram outras possibilidades de diálogo. E vejo que tentamos mais do que fazer um resgate de 68 para cá, tentamos ir de hoje para 68. Ao invés de edificar o mito, lidar de forma crítica com os vários questionamentos que continuam latentes e que se recolocam sob outras perspectivas. E, antes de apontar para respostas de caminhos, atentar às várias possibilidades. Ver quais são as questões que estão apontadas hoje. Há muitos grupos, movimentos, que estão atuando. E estas ações não têm espaço na mídia. Não há lugar na imprensa para se conversar sobre estas transformações na sociedade. E muitas delas já estavam apontadas lá em 68.
“Quisemos trazer 1968 para o momento atual. Usamos frases que são muito atuais: “fechar as ruas, abrir os horizontes”. Existem muitos coletivos que estão organizados; estão na rua e reivindicando seus espaços”
Wilk: Neste sentido, o filme do Rica – Procura-se — contribui com o que pensamos. O filme desconstrói o mito de 68, ao mesmo tempo que cria um outro mito. Esse foi nosso ponto de partida para construir a curadoria da mostra Carta Branca ao Submarino Vermelho. Pegamos 68 para trazer para o momento atual. Por exemplo, pegamos as frases de 68 que são muito atuais: “fechar as ruas, abrir os horizontes”. Existem muitos coletivos que estão organizados; estão na rua e reivindicando seus espaços. A principal questão de ter a Carta Branca é pensar tais desdobramentos. Há uma geração que não está calada, está tentando organizar-se. E há um cruzamento entre movimentos e coletivos.
Padre Jaime tem uma frase, “a cabeça pensa onde os pés pisam”. Que juventude somos? Quais são as questões que se colocam neste momento para nossa juventude? Não há uma distância entre as juventudes dos centros e as juventudes das periferias?
Tom: Eu não concordo que nossas questões são diferentes. Somos todos colonizados. Eu não divido a sociedade por classes ou “cores”. Tento viver na plenitude e me perguntar sobre o humano.
Paulinho: Acho interessante o que o Tom está falando, pois o Submarino conseguiu juntar pessoas que são muito diversas entre si. Eu, por exemplo, diferente do Tom, vejo uma sociedade de classes e concordo com muitos dos apontamentos do Marx em sua leitura histórica. Mas há também uma entrevista do Carlos Lira em que ele diz “eu sou burguês economicamente, socialista ideologicamente e aristocrata culturalmente”. Então são essas várias contradições que existem dentro do homem e que, de certa forma, conseguimos conviver. Há uma ideologia dominante, da qual a classe média faz parte e reproduz. Mas há resistências. Há um não aceitar o estado das coisas como estão. Não é porque eu nunca passei fome, que eu tenho que concordar com tal situação. Ao mesmo tempo, tiveram vários conflitos deste encontro, desta tentativa de articular as várias faces da sociedade para pensar a transformação, a revolução viva. O ato do DOI-CODI surgiu de uma proposta de intervenção visual na rua. Estávamos perguntando o que conecta nossas sessões de filmes com a história do DOI-CODI, com o processo das pessoas torturadas, desaparecidas e mortas. A proposta era fazer uma intervenção. Ligar a Cinemateca, antigo Matadouro Municipal, à Delegacia Paraíso, antigo DOI-CODI. Fazer uma linha vermelha pelas ruas que fosse de um lugar ao outro. Realizar, ao longo deste trajeto, um cortejo com intervenções para refletir sobre as várias facetas destes 40 anos. E no final, por conta das várias organizações que vieram, deixou de se fazer a linha da Cinemateca à Delegacia para fazer algo pontual. O ato começou a ganhar corpo, independência. E várias pessoas tomaram para si a questão de como articular tal evento.
Gostaríamos de fazer um debate sobre os mitos que ficaram deste período da ditadura para nossa. Também o mito da luta armada, o romantismo do guerrilheiro. Estávamos tentando procurar, onde se encaixaria uma sessão para fazer esse debate e não tinha horário. Às seis da tarde, haveria um concerto em homenagem ao Vladimir Herzog e nós queríamos fazer uma sessão de filmes – Se as eleições pudessem mudar, há muito teriam sido proibidas e recuperar Marighela. Havia, então, este horário de domingo à noite em que haveria a intervenção dos Versos Pretos. E queríamos fazer uma conexão da ditadura com a tortura hoje, levantar a questão de onde está hoje a repressão deliberada da polícia. Fizemos um remanejamento de horários, e quando dissemos que iria mudar o horário da intervenção do Versos Pretos, eles nos falaram “já estamos acostumados aos 508 anos da palavra metamorfoseada da burguesia. Você não tem palavra para arcar com o compromisso que vocês armaram”. E foi muito estranho, toda a falta de comunicação que se gerou ali. Perceber que aquela proposta do ato não fazia sentido também aos Versos Pretos. Essa percepção de que estaria tudo desconectado é, ao mesmo tempo, impactante e reveladora. Ver como que para muita gente esta história não faz sentido. A história parece estar cindida. Não se conecta a tortura de hoje com a tortura na ditadura, com a tortura na escravidão. Parece que rolou uma fissura na história.
Tom: Hoje tínhamos que fazer três faixas. “Nossos mortos estão vivos em nossas lutas”, “DOI-CODI nunca mais” e outra para a abertura dos arquivos da ditadura. Fomos a uma moça… Estávamos conversando e perguntei: você sabe porque queremos fazer estas faixas? Ela falou não. Você sabe o que foi o DOI-CODI? Ela falou não. Você sabe porque queremos a abertura dos arquivos da ditadura? Ela falou da ditadura como algo dos anos 60, “mas eu não vivi isso”… E eu falei “eu também não?… Mas tá aí… E ela até fez um desconto super bacana para a gente… (risos)
Wilk: Retomando sua pergunta sobre origem social, classes… Acho que existe sim a luta de classes, Marx colocou isso há 160 anos. Faz 120 anos que a princesa Isabel assinou abolição. O Brasil foi o último país a assinar. Acho que a luta de classes existe e ainda é muito viva. Quando começamos a pensar a curadoria, estas questões apareciam. O que a gente vai fazer, o que queremos discutir? Uma das preocupações era a integração entre as diferentes lutas.
Tom: Acho que estamos todos na mesma busca. É preciso encontrar os pontos que unem. O Edu Viola fala no filme do Rica “o Brasil é feito por nós, o difícil é desatá-los”.
“Há uma ideologia dominante, da qual a classe média faz parte e reproduz. Mas há resistências. Há um não aceitar o estado das coisas como estão. Não é porque eu nunca passei fome, que eu tenho que concordar com tal situação”
Kelly – Pensando na origem do nosso grupo, uma questão que foi muito importante é a de como criar focos de resistência. Como a arte pode ser um elemento de transformação e ocupar tais espaços. É uma questão urgente. Fazemos arte, trabalhamos com arte. Como perceber e fazer práticas políticas a partir deste trabalho? Esta foi uma das nossas primeiras questões. “Mas vai ser uma mostra, vai ser uma coisa careta. E de mostras o festival está cheio – um total de 50 mostras! Então, como fazer para ir além do espaço burguês de contemplação, para ir além da tela, para sair do passivo?
Parece que, no sistema que vivemos hoje, tudo pode ser absorvido, amortizado, tudo parece contribuir ao sistema. Como não cair no amortecimento destas ações?
Kelly – Nesta experiência, a tentativa foi pensar o espaço do Festival como um espaço de articulação e encontro, de agenciamento para além das telas. Como é que a gente poderia fazer uso deste momento de pré e durante o Festival para que houvesse encontro entre as pessoas? Pensar espaços de articulação para além do Festival? Foi essa a proposta de trazer os realizadores, pensar filmes que apontassem caminhos, outras direções de ação, interromper ciclos. Nesse sentido, bolamos um painel que ficava na Cinemateca. Era o desafio de pensar para além das telas do cinema e fazer uso do espaço.
Entrar e transformar ou entrar e se transformar?
Rica: Ganhamos muito pouco para fazer este trabalho. Fora os produtores que ganharam praticamente 500 reais cada um, as pessoas aqui ganharam 100 reais e às vezes trabalhando todo dia. Era difícil explicar para os coletivos que o objetivo não era o dinheiro, mas usar a janela, o público, a divulgação para fazer com que estes momentos fossem articuladores de outros.
Tom: Esta questão, de transformar o lugar que você está ou se transformar é um fio de navalha dos mais filhos da mãe. Por exemplo, a mudança da programação do ato do DOI-CODI do sábado pro domingo. O Paulinho foi para minha casa às 2 da manhã, conversamos e entendemos que precisávamos mudar o ato. Fizemos uma conferência via celular, viva a tecnologia! E esta questão da tecnologia foi importante. Aliás, o texto que está no catálogo surgiu através do google docs.
Rica: É, mas só saiu presencial! O espaço do Submarino foi bem este, resgatar este espaço de encontro. Agora, voltando à questão, quando trabalhamos de graça para um lugar que tem patrocínio de grandes empresas. Você não está dando de graça sua mais-valia? Por um interesse no valor de uso no seu trabalho, você abre mão do valor de troca… Mas isto já não é uma contribuição grande para o lucro deste outro? Sempre fizemos isto. Escrevemos o projeto, vimos o orçamento gigante e cortamos tudo pela metade, pois não iriam aceitar. E acabamos praticamente pagando para trabalhar.
“Poderíamos simplesmente ter feito uma mostra e ganhado o justo por ela. Mas investimos mais. Foi um pouco uma opção: ’vamos pegar esse valor e aplicá-lo para o público’ “
Paulinho: A questão de espaços de encontro. Como fazemos uso desta abertura do festival para articular estas lutas que estão em andamento e estão em estado de emergência? Mas queria falar também de uma outra experiência que cruzou a mostra [3]. Estou envolvido na criação do Canil Espaço Fluxus de Cultura. Este espaço teve seu início há dois anos e meio, com uma ocupação a marretadas em que alunos de toda a USP se reuniram para tomar e criar, dentro da universidade, este espaço para pensar a cultura. Para ter um espaço de livre expressão cultural e política, autônoma das unidades que já existem — como DCE?s, Centros Acadêmicos — e que pudesse ser um espaço de experimentação. É um espaço vivo que a USP se nega a retratar dentro de seu jornal, sua rádio, televisão. E há projeto da reitoria para uma obra grande a ser construída ali e que irá fazer este espaço desaparecer. E há um silêncio enorme quanto a esta questão. Ninguém discute isto, não conseguimos espaço da universidade, dentro da imprensa… E os espaços de troca e convivência dentro da universidade vão sendo cada vez mais reduzidos. Tem um filme do Canil na Mostra que fizemos. Nós o selecionamos tanto por seu valor estético quanto por esta discussão que suscita, das ocupações dos espaços da universidade, da universidade como um espaço para se colocar criticamente frente ao mundo, para se contrapor à cultura hegemônica que vivemos constantemente. Com o Canil, conseguimos, criar dentro da universidade, um espaço autônomo que contraria as regras do mercado da arte. Mas que, ao mesmo tempo, não consegue se articular dentro das instituições da universidade. A proposta de um espaço para os estudantes e para as pessoas de fora da USP colocarem sua produção, e de este ser um ponto de articulação para abrir as portas, para extravasar este castelo intelectual que é a universidade. É um espaço que propõe algo que não o que está sendo proposto institucionalmente dentro da universidade.
Tom: Pelo menos na USP, e com certeza na maioria das universidades, existe uma segmentação típica de nossa origem de pensamento, em que tudo vem bem separado em caixinhas segmentadas e dividido para não dar problema de classificação. E o Canil é um lugar em que as pessoas que ficaram cinco anos estudando na música e que nunca ouvimos, se encontram com o pessoal das artes plásticas e com o pessoal do audiovisual. O Canil não propõe uma coisa nova. Estamos propondo encontro. É simples. Ao mesmo tempo, forte.
Rica: Assim como foi a reitoria ocupada. Logo que ocupamos uma pessoa da informática instalou linux em todos os computadores e um cara da oficina de software livre apareceu, e o pessoal começou a colocar o conhecimento em prática. E, lógico, vários conflitos de formas de ver o mundo e de compreender aquela ação. Uns que achavam que tínhamos que nos fechar lá dentro e resolver as questões internas, outros queriam fazer propaganda para fora, no que tinha de melhor lá dentro. O Canil foi o que deu continuidade a isto que aconteceu na ocupação da reitoria. Outra questão que se colocou foi a do retorno que daríamos à sociedade, após pegar este recurso da Kinoforum. Várias pessoas, que a gente chamou um pouco mais em cima da hora, colocaram essa questão. “Pô, vocês tão trabalhando para o Festival Internacional de Curtas que tem patrocínio da Petrobrás e não querem pagar a gente. E vocês estão pagando pra trabalhar, vocês estão realimentando a idéia de que as instituições culturais podem usufruir o trabalho artístico por mixaria, porque todo mundo que faz arte no Brasil é burguês, tem outras formas de ganhar dinheiro. A gente como artista ou educador tem que pensar também em nossa classe artística, porque se você reduz o valor de sua mão de obra você está quebrando um pacto com o resto e fazendo mais barato que todo mundo. Vai sempre pegar alguém que está iniciando, com sede de começar”.
Wilk – Também neste aspecto tem esta questão… do quanto de valor simbólico agregamos ao Festival… e vice-versa. Como pudemos usar o espaço do Festival para propor coisas que acreditamos.
Rica -Também houve o lado de uma megalomania nossa. Poderíamos simplesmente ter feito uma mostra e ganhado o justo por ela. Mas investimos mais. Fazer o ato, os encontros, nada disso estava no contrato, fazer os painéis. Foi um pouco uma opção, vamos pegar esse valor e aplicá-lo para o público.
Kelly -A gente falou que queria fazer, ocupar esse espaço e abrir essa brecha. E isto tudo começou a despertar para outros questionamentos. Acho que agora poderíamos falar de como começou.
Rica – Se você for ser pessimista, você vai dizer que foi nepotismo, aquele esquema das relações pessoais. Mas, por outro lado, como uma pessoa toma contato com uma produção? Minha irmã, que havia trabalhado com a Zita, chamou-a para ver o Procura-se no É tudo Verdade. Ela se surpreendeu. Esperava um filme bom, mas foi bem melhor do que ela imaginava. Aí ela me ligou, falou que me viu filmando na Virada Cultural. Quando ela me ligou já tinha vários nomes, de pessoas com atuações políticas e coletivas lá na USP, e fez o convite. Ao receber o convite, mandei o e-mail para várias pessoas, liguei para outras tantas, liguei para o Nicolau, para o pessoal do Felco, porque a gente já tem um trabalho com distribuição e curadoria e sempre foi militante. Seria um jeito de conseguirmos alguns serviços mínimos que poderiam realimentar o processo de distribuição militante e independente. Só que, no meio do caminho, todo mundo que eu tinha chamado do audiovisual tinha outras prioridades e o pessoal das artes plásticas tava mais em peso, mais interessado em fazer cinema. Foram pessoas que mesmo no processo de pós-produção do filme me ajudaram em coisas. Eu achei legal que o trabalho de curadoria, produção, de pensar como colocar os filmes e fazer coisas para além da tela foi todo um trabalho de formação política e estética pro grupo inteiro. Depois da seção que teve na Galeria Olido, fizemos uma assembléia. É uma sessão bastante forte, falantes e que te pegam mesmo. Colocam questões fortes de injustiças revoltantes. Então, ficaram várias pessoas que não eram de movimento nenhum, mas que tinham visto a sessão inteira. A gente percebeu que a pessoal saía dali e já queria ouvir as articulações políticas com outros ouvidos, queria saber desse pessoal dos movimentos. Já não eram mais movimentos que aparecem no Jornal Nacional quebrando tudo, 120 km de congestionamento.
Tom: Nunca havíamos vistos todos os filmes da “Imaginação ao Poder” juntos, reunidos e no esquema mesmo de uma sessão de cinema… A experiência de ser uma sessão de fato. Eu fui ver a sessão na sala de cinema da FAAP e eu descobri que a gente fez uma puta discussão. Em uma faculdade branca a gente trouxe para lá um movimento preto, histórico, e eu fiquei orgulhoso do quanto a gente se surpreendeu. Eu sabia que ia ser assim, mas não sabia da força de questionamento que poderia ter.
Kelly: Escutei alguns comentários curiosos sobre a sessão. “Achei tão gratuito aquilo. Parecia que vocês queriam dar um tapa na nossa cara!”
Rica: E achei importante levar os caras que fizeram os filmes. Acho que a sessão fez outro sentido com o pessoal das Edições Toró ali presente, o cara do Versos Pretos e o Gustavo Acioli, que assume completamente o artista de classe média, de observador que não sabe o que fazer e o que dizer. E foi um debate super sincero. No começo, achei que o cara das Edições Toró estava incomodado de estar ali meio que se sentindo exposto. O Oliver fez uma pergunta meio atravessada… O debate marxista… O debate começou sobre a questão dos pretos no Brasil. As conseqüências da escravidão, que são secundárias em relação às conseqüências da exploração do capitalismo, que afeta todas as pessoas. Mas não sei, ser negro no Brasil ou terceiro mundo ou qualquer lugar do mundo hoje ainda é diferente de ser um branco pobre. Porque tem todas as conseqüências culturais.
“Em vez de largar as canetas e pegar em armas, como fizeram os Panteras Negras, eu sonho que os jovens das periferias soltem as armas para pegar nas canetas. Faço uma oficina de vídeo na periferia e vejo o quanto é outra a relação que eles têm com a palavra”
Eu fiquei muito impressionado de a gente que tava propondo o debate colocar, diminuir a importância do filme por questões … Vocês falam da menina que esfregou detergente no olho… Como se isto não fosse a questão principal. A menina quase morreu intoxicada, foi para o hospital. E são varias histórias recorrentes, de vários negros que desde muito pequenos têm um modelo recorrente de beleza… De não se reconhecer na literatura, e a maneira que a África sempre é colocada nos livros, de entrar pelas portas do fundo. Como se sempre fosse o continente escravizado. Quando vi este filme falei, ’porra, a gente precisa deixar passar esta mensagem para frente, senão seria fechar o ouvido e sentir que nada disso acontece’. Eu não vou falar pelos pobres, os pretos. Eles já estão falando. Então, é simplesmente amplificar esta bola. Achei importante. Ainda mais vindo depois do filme de Agnes Varda sobre os Panteras Negras, que coloca a questão leninista de pegar em armas, que liam o Livro Vermelho de Mao. E a postura do filme “Vaguei nos livros….” inverte esta visão. Ao invés de soltar as canetas e pegar em armas, como fizeram os africanos para a luta de libertação nos últimos 30 anos, eu sonho que os negros no Brasil, os jovens das periferias soltem as armas para pegar nas canetas. Faço uma oficina de vídeo na periferia e vejo o quanto é uma outra relação que eles têm com a palavra.
Wilk: E é preciso se perguntar por quem a história é escrita. O fato deles terem muito pouco acesso à história de si mesmos. O fato de esta história precisar ser escrita. E o preconceito, o lidar com isto, e que tem suas nuances no Brasil. Acho o preconceito mais visível em São Paulo que na Bahia, onde 70% da população é negra
Rica: Mas eu queria voltar ao filme de Acioli. Em Nada a declarar, ele fala como se ser brasileiro já fosse um problema. Ele coloca isto de novo no debate. E eu fiquei pensando o quanto ele se sente periférico em relação ao mundo. Senti que o pessoal das Edições Toró coloca isto como uma batalha. Somos mesmo periféricos, mas estamos lutando para virar a mesa. E do lado dele, eu senti que era um pouco no caminho do “não tem jeito, eu sou brasileiro”. Eu não sou central… Perguntei a ele se ele se identifica com o personagem. Ele disse que sim. Ao mesmo tempo, é interessante como ele explicita as contradições de sua visão de mundo. É um filme que dá um nó na cabeça.
O uso das armadilhas retóricas, os clichês…
Wilk: O filme é interessante neste sentido, a postura da classe média é esta. Não tenho nada a declarar, nada a fazer, mesmo quando ele critica as leis de incentivo.
Tom – Isso de ele reconhecer: eu sou branco, sou rico, sou bem alimentado, é base para você ou aceitar: que bom! Ou dizer: “sou branco e rico e vou fazer alguma coisa”. Aí entra uma chave fundamental, que é o livre-arbítrio. Aí não tem manifesto, não tem ideologia, não tem nada que obrigue.
Como o documentário pode funcionar como uma forma de resistência e qual e a relação entre linguagem e política?
Rica – Acho interessante estarmos aqui falando de Nada a declarar, que é uma ficção em forma de reportagem. E acho que isso explicita uma crise de representação. Que é uma crise do documentarista, de um cinema que é feito para o outro, em que o autor é teoricamente imparcial, e ele utiliza a voz de deus pra falar do problema do outro. Lembra-me uma tirinha que vi no jornal uma vez que dizia assim: Qual a sua profissão? Aí aparecia um cara sofrendo, pedindo um rango. Enquanto o outro cara falava “Oh, que historia terrível a sua”, o outro retrucava “Não, mas me dá um trocado, um rango”. E ele com um cachecol Hugo Boss dizia: “Não, preciso registrar sua nobre historia”. Aí, ele saía de quadro e sua profissão era documentarista. A maior parte dos filmes selecionados é de documentários e muitos deles estão no limiar entre o documentário e a ficção. Talvez sejam os filmes mais interessantes. O curta de ficção acaba sendo pegadinha, é difícil um curta-metragem que desenvolva, sabe?
Paulinho – As outras possibilidades de linguagem para lidar com este tema foram uma questão para o coletivo, na hora de escolher os filmes. É difícil encontrar filmes que têm um valor político e estético no conjunto. E no final das contas a estética do documentário muitas vezes revela sua própria precariedade e isso acaba revelando mais sobre quem faz o documentário.
Wilk – O Chris Marker faz um filme que seria hoje super barato. Trabalhar com fotografia tem toda a questão da precarização.
Rica – E às vezes isso dá mais liberdade. Como o próprio filme do Canil, que mistura cenas de ficção, com documentário, com cenas dos primórdios do cinema, que você já nem sabe se e documentário ou ficção.
Wilk – Não sei nem se isso foi tanto uma questão, acabou sendo natural escolher mais documentários.
Paulinho – Mas teve, sim, a discussão. Lembra, por exemplo, a discussão sobre a Revolução dos pingüins, se entrava ou não. É uma ficção, mas ao mesmo tempo pegou metade do grupo, mas não pegou a outra metade. A discussão sobre o Quinze centavos…
Rica – Vocês viram esse? É um documentário quase surrealista, porque é muito sensorial. Você quase não sabe quais são as reivindicações ali. Começa com um cara andando na cidade. Você não sabe onde e, de repente, vem à tropa de choque, começa um conflito de rua, e depois tem uma fogueira e você foca no fogo, e tem gritos, o som é muito bem trabalhado, parece que você entra na revolução sensorialmente. E no meio de falas que se contradizem e sobrepõem você descobre que é uma manifestação pela questão do transporte.
Rica – Eu acho que as ficções em geral tendem a ser um pouco ingênuas na colocação política. Pois elas tratam com personagens e têm que desenvolver dramas. Por exemplo, a Revolta dos Pingüins que é um filme chileno, tem um lado interessante de ser uma ficção do Chile, que a gente não tem informação, sobre a revolta dos estudantes no ensino médio.
“Isso de ele reconhecer: ’eu sou branco, sou rico, sou bem alimentado’ é base para você ou aceitar: que bom! Ou dizer: ’sou branco e rico e vou fazer alguma coisa’. Aí entra uma chave fundamental, que é o livre-arbítrio. Não tem manifesto, não tem ideologia, não tem nada que obrigue”
Paulinho – É um filme de 2006 sobre manifestações de um milhão de estudantes nas ruas, logo que a Bachelet assumiu, elas tomaram as ruas no Chile inteiro.
Rica – Aí, parte do grupo gostou, outra não. O filme é meio adolescente, mas coloca uma questão sobre ocupar, sobre um movimento que você não sabe mais pra onde vai.
Paulinho – E ao mesmo tempo conflitos subjetivos.
Rica – Mas tem outro momento em que entra uma discussão do amor com uma loirinha, aí ela aborta um bebê do nada, tem uma coisa meio trash e você fica meio com vergonha do filme. Aí ele acabou não entrando.
Paulinho – Em relação a isto acho que o filme do Saito tem algo bastante interessante. O quanto é uma coisa honesta, ao se colocar como um ser atuante na construção do documentário. Ao assumir a relação de diretor do filme enquanto um personagem que também cria realidade no documentário. E o fato de oferecer o filme à família acho que traz elementos de realidade, de entrega que as pessoas não param para se questionar muito.
Tom – Eu acho que na hora que ele faz isto ele coloca o filme em uma posição familiar. Ele se coloca como agente da história da família retirando o filme de um plano mítico.
Wilk – Se ninguém soubesse quem era o Rica ali, ninguém ia saber que ele aparece na frente da câmera. A gente consegue distinguir. O Coutinho, a gente já sabe quem é. Já é prerrogativa de seu documentário você saber… Parece que você é alguém da equipe…
Saito – E isto foi intencional. Que no momento em que eu falasse de meu tio viesse à tona “ah, aquele cara ali é o que esta fazendo o filme”. Mas a coisa da dedicatória. Teve um momento da realização em que senti um certo carma. Se não me referisse à história de minha família, seria como cortá-la e entregar flores para o público sem raízes. Iam morrer no primeiro mês. Seria como prezar só pelo espetáculo, só pelo mito. Acho que ali tem uma força. Acho que então o filme poderia crescer. É uma herança elaborada junto com os atores, nas entrevistas… Não sei quanto por cento foi inventado, mas é verdade do coração. O documentário tem questões transcendentes. Estamos lidando com imagens vivas de pessoas e aquilo vai se multiplicando para sempre. Não sei se você leu a Invenção de Morel, um livro que vai abrindo chaves, cada vez vai descobrindo coisas novas na história. É uma maquina que fixa as pessoas e reproduz em todas as dimensões a imagem… E tem varias implicações e é tudo porque o cara quer se aproximar de uma mulher que depois ele descobre que é uma imagem. Acho que o cinema tem esta coisa, uma ilusão, mas que é viva.
Caçando Ratos
Em outra sessão bastante cheia do Festival na Cinemateca, na quinta-feira à tarde, o público aplaude eufórico o curta-metragem “Caçando Ratos” da equatoriana Vero Chamo-Garcia. O filme [4]integrou a sessão Latinos 4, da Mostra Latino-americanos, do 19º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. Sua trama se centra na história de dois irmãos que, ainda crianças, entram em um grupo guerrilheiro mobilizado em torno da idéia de mudar o país e lutar por ideais de justiça e liberdade. Nos primeiros instantes, mostra-se a chegada dos guerrilheiros a uma pequena vila para distribuir alimentos e recrutar novas fileiras. A este recrutamento seguem-se as cenas de treinamento militar, que mantêm o clima festivo e mágico do início, o típico clima que costuma anteceder as tormentas nas narrativas. A garota, uma pré-adolescente, logo se destaca no treinamento por sua firmeza e cuidado com o irmão mais novo, características que têm seu ponto culminante quando, de forma decidida, oferece-se para executar outra criança, uma suposta delatora, no lugar de seu irmão, que se recusava a fazê-lo. Enquanto o grupo prossegue pela selva, a menina mantém-se firme em seus princípios, a ponto de relacionar-se com o líder — quiçá um abuso, quiçá um sacrifício. Já o irmão mostra-se cada vez mais reticente em relação aos métodos dos guerrilheiros.
A diferença entre a experiência dos irmãos encaminha o curta a seu clímax, deixando ao espectador o desfecho e conclusões: o menino, cansado da violência e percebendo o delírio dos líderes, abandona a guerrilha e é acusado de ter delatado o grupo. Novamente, a coragem da garota é testada, mas desta vez diante de um dilema sem solução: ela deve escolher entre executar o próprio irmão traidor ou ver toda a família assassinada pelos guerrilheiros. Após os créditos finais, um intertítulo nos informa: “este filme foi dedicado às 300 mil crianças que estão sendo usadas em combate em todo o mundo”. O filme é recebido com calor pelo público, que vê ali uma denúncia crua sobre o absurdo da guerra. A guerra, aqui, é ambientada na Amazônia, os personagens vestem fardas camufladas com uma insígnia vermelha borrada, provavelmente para não produzir a identificação com qualquer grupo guerrilheiro existente. Supostamente descontextualizado e universal, o filme mobiliza em seu enredo elementos que atestam todo o tempo uma discrepância entre falas de justiça e ações de crueldade e violência quase gratuitas.
O filme não mereceria tanto interesse por si, visto que parece confirmar a eficiência do ensino em uma escola que é bastante reconhecida por preparar os novos diretores de Hollywood – Vero formou-se na University of Southern California. Contudo, tanto a recepção do filme quanto o tema da reprodução de determinadas formas narrativas – e sua correlata repercussão – suscitam algumas questões que requerem atenção. Muito bem executado, o filme contém traços deste cinema que, em busca de um universal abstrato, muitas vezes torna-se perverso. A partir de uma mensagem específica, homogeneíza todas as experiências de guerrilhas, guerras, co