Victoria’s Secret Fashion Show e a reafirmação do império decadente
A mobilização dos arranha-céus de Nova Iorque, de artistas da cultura pop estadunidense e de uma suposta diversidade de corpos femininos de diferentes países configura um caldeirão cosmopolita de ilusões que só um império decadente poderia proporcionar
Está claro que dinheiro nos proporciona felicidade. Não nos cabe propagar hipocrisias ou ingenuidades. O consumo abre portas para obtermos prestígio e o mínimo de respeito social, ainda que tenhamos consciência de que não é apenas isso que fará justiça para quem sofre com as desigualdades no mundo. Por aqui, não fazemos coro ao discurso meritocrático. Para tanto, precisamos de políticas públicas que possam construir um arcabouço cultural e jurídico que seja capaz de promover o desenvolvimento das pessoas e suas dinâmicas de trabalho, educação e lazer em um mundo marcado por violência e exploração entre povos e nações.
A reafirmação do império estadunidense (decadente) demonstra uma espécie de manutenção do que a marca Victoria’s Secret cultua enquanto padrão de beleza: corpos magros, esguios, de cabelos longos e traços finos. Quem foge desse padrão ainda o tem como pilar central da estrutura, onde os esforços transferidos para as vigas e pilares secundários persistem na hierarquia tradicional, sobretudo para aqueles que batem na trave do padrão de beleza perpetuado. Afinal, quem costuma receber as alcunhas de “gato”, “gata” ou o famoso adjetivo homofóbico “desperdício”? É o que Fábio Palácio, professor da Universidade Federal do Maranhão, com base em Gramsci e Raymond Williams, importantes referências de política, história, sociologia e materialismo cultural, fala a respeito dos movimentos que tentam se colocar em posição contra-hegemônica, uma vez que o trabalho da oposição se torna responsável por demonstrar a qualidade, ou não, de uma hegemonia. Qual a qualidade da hegemonia imperialista dos Estados Unidos nos dias de hoje?
Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV, tem uma sólida pesquisa a respeito da nova ordem global provocada pela ascensão das economias emergentes, centralizadas nos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) – e agora, com a entrada do Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. O grupo de países possui um Banco de Desenvolvimento para investimentos em projetos de infraestrutura, no qual sua atual presidente é Dilma Rousseff, ex- presidente brasileira, e tem como um dos seus objetivos principais enfrentar a hegemonia estadunidense, o que inclui estratégias em construção para reduzir sua dependência do dólar americano. A maneira como os países se apresentam culturalmente é um ótimo exemplo das disputas e dos enfrentamentos no âmbito internacional, seja pelos mercados no espaço econômico, seja pelo campo ideológico no quesito político, especialmente em períodos eleitorais. Nesse momento, os BRICS estão em evidência pela reunião presidencial da sua cúpula na cidade russa de Kazan. No podcast “O Assunto”, da jornalista Natuza Nery para o G1, Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior, foi entrevistado para comunicar os desafios do Brasil em relação ao cenário global contemporâneo, entre a ascensão dos países asiáticos no enfrentamento à hegemonia dos Estados Unidos e as desavenças que envolvem temas sensíveis que vão do autoritarismo à crise das democracias ocidentais.
Para quem acha que essa é uma crítica de um brasileiro anti Estados Unidos, faço uma citação da Diretora de Moda do The New York Times, Vanessa Friedman, a respeito do desfile de retorno da Victoria Secret:
“Se há uma coisa que realmente não é segredo, é que desfilar corpos seminus em uma passarela, não importa o tamanho ou a idade, não é simplesmente sobre empoderamento. É sobre objetificação — mesmo que seja uma igual oportunidade de objetificação. E que há tantas fantasias e definições de sexy quanto há pessoas no mundo, e que muitas delas (talvez a maioria delas) não envolvem asas” (Vanessa Friedman, The New York Times, 2024). A participação de mulheres negras e trans não altera a posição vertical de opressão da marca sobre os corpos reais ao redor do mundo, que puderam acompanhar o show pelo YouTube.
Mesmo com modelos com idade acima dos 50 anos, como Tyra Banks, Kate Moss e Carla Bruni, o etarismo se revelou pelos seus corpos mais cobertos do que o de mulheres mais jovens. Ao fechar o desfile, Banks, com seu visual bastante curioso para um desfile de uma marca de lingeries, fez parecer que uma mulher negra venceu ao estar ali pela pura e simples ilusão do mérito, guiando todas as outras ao encerramento. Enquanto isso, a atriz Queen Latifah aparece na plateia, não por acaso, convenhamos. Não passa de mais uma ilusão sobre a marca que há alguns anos era denunciada por sua influência tóxica e violenta no mercado da Moda, sobretudo pela misoginia e seus efeitos nos padrões físicos femininos. As mesmas críticas foram endossadas por Aliana Aires, professora da Universidade Federal do Piauí, em entrevista para o Café da Manhã, da Folha de São Paulo, onde destacou o quanto as “Angels” da Victoria’s Secret contribuíram para a manutenção do culto à magreza inatingível.
Pautas raciais e de gênero são sim fundamentais para a base das discussões sociais, culturais e políticas. É imperativo. Porém, não podemos nos deixar levar por ilusões de que bastam a presença e participação de negros e transexuais se a engrenagem do sistema (econômico) não for alterada. No fundo, é apenas a continuidade do sistema que oprime e hierarquiza o mundo pelos interesses do Norte Global, que captura o que for conveniente nos países do Sul, nem que seja a beleza padrão que lhe renda lucros, ou os corpos marginalizados que lhe promova status de politicamente correto. Aliás, mulheres com asas é o que não faltam nas avenidas do carnaval brasileiro, lotado de pessoas de todos os tipos, sobretudo negras. Asas temos de sobra.
Se for para apreciarmos desfiles de moda do Norte Global, então é mais interessante assistir ao desfile da corporação francesa de cosméticos, L’Oréal, na Semana de Moda de Paris, onde brilhavam as brasileiras Taís Araújo, Larissa Manoela e Anitta, em conjunto com Viola Davis, Jane Fonda (estadunidenses), Belinda (mexicana) e tantas outras mulheres que, embora predomine o biofísico magro, apresentaram fisionomias e idades muito diversas, de narizes à cabelos, incluindo mulheres com deficiências físicas. Tudo isso envolto a muita espontaneidade na maneira como todas se apresentaram na passarela. Além disso, a idade das modelos não foi critério para estarem, ou não, cobertas.
Falando no Brasil, sempre é bom lembrar que a Semana de Moda de São Paulo (SPFW) está entre as mais importantes do mundo, ao lado de Paris, Nova Iorque, Londres e Milão, destacando marcas nacionais de diferentes regiões que evidenciam pluralidade de corpos, culturas e identidades. Em 2024, o evento retornou ao seu palco tradicional no Conjunto Arquitetônico do Parque Ibirapuera, contando com desfiles em outros espaços icônicos da cidade, como o Teatro Oficina, no Bixiga, e o Museu do Ipiranga. As fotos abaixo foram gentilmente feitas e cedidas por Leonardo Brito, que também me ofereceu o contexto dos desfiles contemplados:
A Apartamento 03 produziu seu desfile no Shopping Iguatemi, na Faria Lima, em exaltação ao café e a ancestralidade negra envolvida na sua produção, criando uma técnica que considera a mancha do café e a transforma em estampa.
A Handred apresentou uma coleção com foco no Rio Paraguaçu, na Bahia. Enquanto a Dendezeiro, com a coleção Filhos do Sol, teve inspiração e visão de um Sertão Brasileiro. Ambas as marcas se apresentaram no Pavilhão das Culturas Brasileiras, no Ibirapuera. A Dendezeiro, natural de Salvador, foi elogiada pela atriz Viola Davis em suas redes sociais, em vista das suas relações de trabalho com o Brasil, mais especificamente com a capital baiana, o que precisamos observar de perto para compreender se a relação será de reciprocidade ou hierarquização imperialista. Os sinais apontam para algo positivo.
Além da moda, outro mercado brasileiro que está em alta é o audiovisual e cinematográfico, como destacado pelo filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, protagonizado pela atriz Fernanda Torres e pelo ator Selton Mello, que trata da vida de Marcelo Rubens Paiva e de sua mãe, Eunice Paiva, durante a ditadura brasileira. Nas redes sociais e na imprensa, a ansiedade de ganharmos o Oscar é a tônica das expectativas em relação ao filme, que está previsto para estrear no Brasil no próximo dia 7 de novembro.
A obsessão pelo Oscar revela nossa submissão ao Norte Global, centralizado nos Estados Unidos e na indústria hollywoodiana. A maioria de nós ainda não viu o filme, mas seguimos almejando um status a ele que já independe da sua qualidade e apreciação pela hegemonia, em vista dos prêmios e elogios que já está colecionando em diferentes países. Como disse Fernanda Torres: o filme já está no mundo. Então, não precisa da aprovação do Oscar para ser grande e ter autorização para estar no mundo – como diria Milton Santos, o “mundo” em questão é o das instituições financeiras e políticas da hegemonia global, do Ocidente ou Norte Global. A respeito do conceito de horizontalidades e verticalidades, de Milton Santos, tratamos do assunto no artigo anterior, em que utilizamos a série “Emily in Paris” como exemplo da discussão.
Outro bom exemplo da relação estrutural e conflituosa entre verticalidades globais e horizontalidades locais pode ser visto no canal Inteligência Ltda, no YouTube: Luiz Thunderbird, Titi Müller, Marina Person e Max Fivelinha foram entrevistados por Rodrigo Vilela, em um papo bastante descontraído sobre o trabalho dos ex-VJs da MTV Brasil, quando nomes variados de celebridades da antiga emissora foram citados. Marina Person fez uma fala que revela de modo certeiro uma estratégia de enfrentar as verticalidades globais, ao se apropriar das próprias horizontalidades brasileiras. De acordo com Person, a MTV Brasil “colocou uma cor local e customizou localmente”. Pegou os bons programas da empresa e reinventou em cima, dando uma originalidade que foi reconhecida pela MTV mundial, que a considerava como a que mais havia entendido a proposta, o cerne da emissora. Outro ponto de destaque foi o fato de que a MTV Brasil era de longe a mais premiada entre todas as filiais do mundo.
As memórias construídas pela MTV Brasil são uma das bases mais sólidas do progresso das liberdades culturais no país e que deve resultar nostalgia e orgulho para grande parte da população. O Video Music Brasil (VMB) era a versão brasileira do Video Music Awards (VMA). “A diferença é que a MTV era um grande farol. A amiga que te estende a mão e fala “deixa eu te mostrar uma coisa bacana”, disse Person. A emissora fez história a respeito das liberdades femininas e LGBTQIA+, mas os VJs assumem que erraram a respeito da luta contra o racismo, pelo pouco que foi feito pelas causas da população negra. Embora tenham errado, se apresentam enquanto patrimônio louvável e que se renova e amadurece com o tempo ao assumirem essa postura. Ainda sobre patrimônio, é provável que muitos não saibam, mas o prédio da antiga sede da emissora, no bairro do Sumaré, Zona Oeste de São Paulo, é tombado por seu projeto arquitetônico e por também ter sido a sede da antiga TV Tupi, primeiro canal de TV da América do Sul.
Em participação no programa “Que História é essa, Porchat?, Ivete Sangalo contou sobre a experiência de participar de um desfile da Chanel em Paris, onde sentou ao lado de Cher e lançou uma piada: lá no Brasil, eu faço uma música em sua homenagem: Axé(r) Music! Enquanto outro sistema não é conquistado, tenhamos consciência sobre nossa capacidade de resiliência, nosso poder e como preservá-lo diante das disputas que o capitalismo gera e nos acomete. Precisamos de uma revisão nos padrões de beleza, mas também nas referências culturais e arquitetônicas do nosso cotidiano nacional e o quanto somos capazes de disputar espaços e representações por meio das nossas produções, seja na moda, na música, na política, na arquitetura e no urbanismo. E não vamos esquecer de quem serão nossos parceiros nas empreitadas e o quanto isso demandará em termos de estratégias políticas e ideológicas.
Lucas Chiconi Balteiro é arquiteto e urbanista, mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU/USP e membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina” (CACAL, FAU/USP) e “Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica” (CAPPH, UNIFESP).