Vietnã e Estados Unidos: uma aliança insólita
De olho nas vantagens econômicas, herdeiros de Ho Chi Minh procuram virar a página da guerra que deixou 3 milhões de mortos, terras devastadas e famílias destruídas. Já os EUA procuram responder à ascensão da ChinaXavier Monthéard
Península de Cam Ranh, Sul do Vietnã. O vento agita o Mar da China Meridional, aqui chamado de Mar do Leste. Comprimida pelo arame farpado, uma estrada estreita serpenteia em direção à base aeronaval montada pelo exército norte-americano durante a Guerra do Vietnã. Postos militares, muitas vezes castigados pela idade, ornam a terra seca. Soldados e funcionários da aduana matam o tempo. No porto militar, visitantes não são bem-vindos – aliás, o que eles iriam fazer ali? Há anos a Baía de Cam Ranh funciona em marcha lenta.
Mas essa letargia está com os dias contados: no dia 31 de outubro de 2010, o primeiro-ministro Nguyen Tan Dung anunciou que as instalações passariam a oferecer sua hospitalidade a barcos do mundo inteiro. Os Estados Unidos são candidatos. Desde 2003, uma dúzia de seus navios de guerra já fez escala na costa do velho inimigo. Desta vez sem armas nem bagagens, os boysdo Tio Sam estão mesmo de volta ao país do Tio Ho na condição de ilustres convidados. Como se os anos da guerra, energicamente conduzida por cinco ocupantes sucessivos da Casa Branca,1 tivessem desaparecido das memórias vietnamitas. Os vinte anos de devastação e horror, encerrados em 1975 com a tomada de Saigon, parecem esquecidos, bem como a posterior fúria do gigante humilhado para impedir que a ajuda internacional chegasse ao anão que o derrotou, além do embargo decretado até 1994.
Em agosto de 2010, realizou-se em Hanói um primeiro diálogo de defesa norte-americano-vietnamita. No mesmo mês, altos oficiais vietnamitas esquadrinhavam, no mar, ao longo de Da Nang – precisamente onde os primeiros GI2 desembarcaram, em 1965 –, o USS George Washington, figura de proa da Sétima Frota e um dos onze porta-aviões gigantes da US Navy, enquanto o destróier USS John S. McCain ancorava no porto. Em Hanói, o nome de McCain, candidato republicano à eleição presidencial de 2008 contra Barack Obama, não fere os ouvidos. Piloto de bombardeiro, portanto “criminoso de guerra”, conforme suas afirmações ulteriores, ele ficou preso por cinco anos e meio no Vietnã. Condecorado pelos sofrimentos suportados no cativeiro, tornou-se um herói para a opinião pública norte-americana. Essa legitimidade permitiu-lhe calar conservadores rancorosos para ajudar o presidente Bill Clinton a proclamar a normalização das relações entre os dois países, em julho de 1995. Sem guardar rancores, os vietnamitas privilegiaram essa segunda fase de sua carreira. E fotografias da primeira visita de Clinton ainda adornam as paredes de uma famosa rede de fast-food vietnamita da Cidade de Ho Chi Minh… Agora é a esposa do ex-presidente, a secretária de Estado, Hillary Clinton, que comemora o caminho percorrido: “Aprendemos a nos ver não como velhos inimigos, mas como parceiros, colegas e amigos. A administração Obama está pronta para levar as relações entre Estados Unidos e Vietnã a um nível superior”.3
Relações comerciais
Da perspectiva de Hanói, a aproximação com os norte-americanos obedece em primeiro lugar a uma lógica econômica. Desde o acordo bilateral sobre comércio, que entrou em vigor em 2001, as trocas só fizeram aumentar. Enquanto em 2000 elas estavam no patamar de US$ 1 bilhão, em 2010 chegaram a US$ 18,324 bilhões. A presidente da câmara de comércio norte-americana no Vietnã, Jocelyn Tran, aposta em US$ 35 bilhões até 2020.4 A balança comercial é largamente superavitária para Hanói, e as exportações para os Estados Unidos – principalmente de têxteis, calçados e móveis – trouxeram ao país US$ 14,784 bilhões em 2010, mais de um quinto das receitas externas. Ainda mais importante: os estreitos laços com Washington permitiram a plena integração do país asiático ao sistema internacional. Em janeiro de 2007, o Vietnã tornou-se o 150º membro da Organização Mundial do Comércio. A partir daí, a faixa dos US$ 1 mil anuais de Produto Interno Bruto por habitante foi alcançada, o que o coloca na categoria de país de renda média, segundo o Banco Mundial.
Como contrapartida a esse princípio de prosperidade, deve-se virar a página dos 3 milhões de mortos durante a guerra, das terras devastadas, das famílias destruídas. Para isso, impõe-se um trabalho bem pensado de reescrita da memória. Metade da população está abaixo dos 26 anos. A guerra parece distante, e os Estados Unidos despertam entusiasmo. Tanto graças às suas “verdinhas” quanto ao “sonho americano”: prosperidade acessível por meio da determinação no trabalho. Treze mil estudantes – recorde para o Sudeste Asiático – foram para uma universidade do outro lado do Pacífico. O Sul do Vietnã, por força da história, é particularmente bem disposto em relação aos investimentos em dólares. A construção de uma fábrica da gigante de microprocessadores Intel nos subúrbios da Cidade de Ho Chi Minh, em outubro de 2010, é emblemática: são as maiores instalações de montagem e teste da empresa em todo o mundo, a um custo estimado de US$ 1 bilhão. “We are back in Saigon!” (“Estamos de volta a Saigon”) podia-se ler em um blog da empresa, em setembro de 2009…
O idílio não exclui alguns ressentimentos, e os Estados Unidos estão sempre prontos a erigir-se em defensor dos direitos fundamentais. Em 2010, 24 pessoas foram presas – e catorze condenadas – por expressar opiniões contrárias à linha do Partido Comunista. Entre eles, vários jornalistas e blogueiros. Em uma coletiva de imprensa em Hanói, no dia 10 de dezembro de 2010, o embaixador norte-americano Michael W. Michalak declarou que, “infelizmente, durante meus três anos de mandato, o progresso em matéria de direitos humanos tem sido desigual”. Do lado oposto, a memória viva da implicação de organizações norte-americanas nas “revoluções coloridas” da Europa Oriental alimenta a desconfiança. A administração norte-americana não encorajaria um cenário de “evolução pacífica”, sinônimo para Hanói de tentativa de eliminar o regime e a identidade cultural vietnamitas?
Mas esses atritos são apenas o pálido reflexo de ódios do passado. O ano de 2011 deverá ver os dois Estados chegarem a estabelecer uma parceria estratégica. Um acordo de cooperação sobre energia nuclear civil está prestes a ser finalizado. Tratando de transferência de tecnologia e desenvolvimento de infraestrutura, ele abre às empresas norte-americanas o acesso a um mercado promissor: os vietnamitas preveem a construção de treze usinas, com uma capacidade total de 16 mil MW, nos próximos vinte anos. Os termos do acordo não proíbem o enriquecimento de urânio – que, em teoria, permite um programa nuclear militar –, num momento em que os Estados Unidos têm pressionado regularmente os Estados a abandonar tal direito. Diversos comentaristas compararam essas disposições, vantajosas para o Vietnã, às do tratado nuclear indo-norte-americano de 2007.5 Porém, o analista Brahma Chellaney,6 diretor do Centre for Policy Research, de Nova Déli, minimiza as semelhanças: “Como a Índia não é membro do Tratado de Não-Proliferação (TNP), ela estava sujeita a restrições especiais no âmbito das leis norte-americanas. O governo dos Estados Unidos precisou de uma licença especial do Congresso. No caso do Vietnã, signatário do TNP, esse pedido era desnecessário. Além disso, como a Índia é um Estado que possui armas nucleares, o acordo bilateral tinha de ganhar uma formulação específica”.
Contudo, não é a natureza desses dois acordos que os aproxima, mas seu objetivo: “Os Estados Unidos usam acordos nucleares com a Índia e o Vietnã como ferramenta estratégica para construir uma cooperação estreita”, avalia Chellaney. Assim, o Vietnã provavelmente obterá o melhor acordo entre o grupo de “países nucleares emergentes” – aqueles que estão apenas começando a colocar em prática um programa nuclear civil. Ao contrário dos Emirados Árabes Unidos, por exemplo: o acordo de 2009 entre estes e os Estados Unidos menciona especificamente que o país árabe abandone o direito ao enriquecimento de urânio em seu território. Dois pesos, duas medidas? O porta-voz do Departamento de Estado, Philip J. Crowley, limita-se a afirmar que “os Estados Unidos negociam esses acordos caso a caso, país a país, região a região”.7
O fator China
Para Washington, o fortalecimento dos laços militares e a cooperação nuclear têm um objetivo: manter a supremacia norte-americana no Oceano Pacífico. Assim, em 2010, os Estados Unidos venderam armamentos a Taiwan no valor de US$ 6 bilhões; anunciaram a renovação de seus laços com as forças especiais indonésias, o Kopassus, embora estas estejam implicadas em massacres no Timor Leste, Achém e Papua; defenderam a liberdade de circulação no Mar da China Meridional, ligada ao “interesse nacional dos Estados Unidos”, segundo a Sra. Clinton; realizaram operações militares conjuntas com a Coreia do Sul no Mar Amarelo; e recordaram, por ocasião das questões em torno das ilhas Diaoyu/Senkaku, disputadas pela China e pelo Japão, que, se necessário, este teria seu apoio, em virtude do tratado de defesa mútua. A maior parte dessas medidas, se não todas, responde à ascensão da China: o resplendor do Império Médio conduz mecanicamente os Estados Unidos a reforçar o valor estratégico dos vizinhos da potência asiática. A US Quadrennial Defense Review 2010 [Revista Quadrienal de Defesa dos Estados Unidos 2010] menciona Indonésia, Malásia e Vietnã como parceiros potenciais no campo da segurança. Kurt Campbell, secretário adjunto para o Leste Asiático e o Pacífico, foi ainda mais preciso: “Quando eu olho para todos os nossos amigos no Sudeste Asiático, penso que é com o Vietnã que temos as mais belas perspectivas de futuro”.8 Para a potência norte-americana, o país – novamente – é uma peça útil. Não contra o comunismo, desta vez, mas contra um suposto expansionismo chinês.
Essa obsessão faz eco. Há séculos o Vietnã gravita na órbita do Império Médio, sempre procurando escapar de sua atração. Sua dependência econômica continua considerável – uma proporção esmagadora das importações provém do vizinho do Norte. É assim que Carlyle Thayer, professor emérito da Universidade de New South Wales (Canberra) e especialista em Vietnã,acredita que, “em relação a Hanói, nenhum Estado é tão seguro de si ou influente como a China”.9 Fundamentalmente, a diplomacia vietnamita procura desenvolver relações privilegiadas com tantos países quanto possível para emancipar-se de Pequim, mas ao mesmo tempo quer manter a relação privilegiada com o grande vizinho, tanto nos fatos como nas aparências. O ex-embaixador Dinh Hoang Thang não minimiza as dificuldades: “Se o Vietnã conseguir convencer a China de que melhorar as relações norte-americano-vietnamitasnão afetará os interesses de outros países, será um grande sucesso”.10 O exercício não é mais fácil do lado norte-americano: “O afastamento dos Estados Unidos em relação à Ásia e a assimetria de suas relações tanto com a China como com o Vietnã continuam a distorcer sua compreensão dessas relações mútuas”, lembra Brantly Womack, professor de Relações Internacionais na Universidade da Virgínia e autor de China and Vietnam: the politics of asymmetry[China e Vietnã: a política da assimetria].11 Dolado chinês, as injunções podem ser fortes: “O Vietnã deveria compreender que, ficando entre as duas potências, ele faz um jogo perigoso, com sua situação frágil como uma pilha de ovos”, segundo se pode ler noDiário do Povo, órgão do Partido Comunista Chinês: “Se a China e o Vietnã realmente chegassem a confrontos militares, nenhum porta-aviões, seja de que país for, poderá garantir sua segurança”.12
No final do século XX, cristalizou-se uma disputa territorial no Mar da China Meridional a respeito dos arquipélagos de Paracel e Spratly.13 Mesmo tendo recentemente fortalecido sua frota, Hanói não poderia competir com a Marinha chinesa. Portanto, “o Vietnã deseja ver mais Estados envolvidos no Mar da China Meridional. Isso seria uma proteção para ele. O país também adoraria receber assistência para expandir e modernizar as instalações do porto da Baía de Cam Ranh. Imagino que a US Navy deverá tirar proveito desse local estratégico, mas muitas outras marinhas também o farão – a única a ficar de fora, é claro, será a Marinha chinesa!”, analisa Richard Bitzinger, especialista em questões de defesa na Ásia-Pacífico.
Chegaremos um dia a ver os Estados Unidos apoiando o Vietnã contra o Império do Meio? Isso seria mais que irônico, se lembrarmos que, após a declaração de independência no dia 2 de setembro de 1945, a China de Mao Tsé-tung foi o primeiro país a reconhecer a jovem República Democrática, em janeiro de 1950, duas semanas antes da União Soviética… Manter o equilíbrio entre seus dois tutores comunistas, rivais declarados desde cedo, foi uma equação resolvida com sucesso durante 25 anos por Ho Chi Minh e seus sucessores. A ajuda soviética dissolveu-se com o fim da Guerra Fria. O conflito aberto e declarado entre o Vietnã e a China no final dos anos 1970 continua sendo o principal tabu em matéria de política externa. Trinta anos após sua eclosão, ainda não é possível discutir a breve guerra de fevereiro e março de 1979, que fez dezenas de milhares de mortos. Oficialmente, tudo vai muito bem com Pequim.
A história mostrou o perigo, para o Vietnã, de ficar preso entre os cálculos geopolíticos de seus poderosos vizinhos. Quem poderia se esquecer de Hanói? Recentemente, o diplomata Hoang Anh Tuan observou que o Vietnã é “talvez o único país do mundo a realizar negociações tão intensas e longas com os Estados Unidos. […] Embora a confiança e a compreensão tenham avançado consideravelmente, nada garante que quiproquós estratégicos não voltem a surgir. […] Portanto, as relações bilaterais só podem se estabelecer em pé de igualdade de forma duradoura se forem concebidas para servir aos interesses nacionais tanto do Vietnã como dos Estados Unidos, e não aos interesses geopolíticos de apenas uma das partes”.14 Os auspícios por enquanto parecem favoráveis. Mas a “tirania da geografia”15 talvez ainda não tenha terminado de guiar o destino da nação vietnamita
Xavier Monthéard é jornalista.