Violência contra jornalistas e comunicadores(as)
Novo artigo da série “Algo de novo sob o sol? Direito à Comunicação no primeiro ano do atual governo Lula” mostra que dados produzidos por organizações sociais e sindicais apontam redução dos índices de violência contra a imprensa; no entanto, cenário ainda é preocupante
As últimas pesquisas realizadas por entidades como Repórteres Sem Fronteiras (RSF), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) evidenciam que, embora os índices de violência contra jornalistas tenham sofrido redução nos últimos dois anos, essa ainda é uma realidade persistente e preocupante no país.
Da 110ª posição em 2022, o Brasil hoje ocupa o 82º lugar no ranking de liberdade de imprensa da RSF, que compara “o grau de liberdade desfrutado por jornalistas e meios de comunicação em 180 países ou territórios”. Na divulgação dos números, a organização internacional destaca que o atual governo Lula “traz de volta uma normalização das relações entre as organizações estatais e a imprensa”.
Essa melhora é ainda mais relevante tomando em consideração o fato de que, diferente do Brasil, mais da metade dos países do continente americano pioraram o quadro de independência e segurança para jornalistas.
A subida do Brasil no ranking, porém, não pode ocultar uma questão mais ampla, afinal, como enfatizado pela própria RSF, “a violência estrutural contra jornalistas, um cenário midiático marcado pela alta concentração privada e o peso da desinformação representam desafios significativos para o avanço da liberdade de imprensa no país”.
As múltiplas violências
Investigações sobre crime organizado, crimes ambientais e corrupção são os temas que mais geraram perseguição aos profissionais de comunicação no último ano. O relatório da Fenaj revela que ameaças, hostilizações e intimidações foram os tipos mais frequentes de violência em 2023, com 42 casos (23,21% do total), seguidos pelas agressões físicas, com 40 episódios (22,10% do total) e agressões verbais, que somaram 27 denúncias (14,92%). Ataques cibernéticos caíram de nove, em 2022, para um em 2023.
Ainda segundo a Fenaj, os episódios de censura tiveram uma retração de 91,53% em 2023, com cinco casos registrados. Em 2022, foram 59. Porém, outras práticas de violações continuam aumentando, como é o caso do cerceamento à liberdade de imprensa por meio de ações judiciais (sendo que, em muitos casos, os autores das ações são figuras públicas que não gostam do que é publicado) e de violência contra a organização dos trabalhadores e trabalhadoras e entidades sindicais.
A tendência exacerbada pela família Bolsonaro, de algum modo, permanece. Afinal, conforme dados apurados pela Fenaj, em 2023, os políticos continuaram a ser os principais violadores da liberdade de imprensa no Brasil, tendo sido responsáveis por 44 dos 181 episódios de violência registrados no ano contra jornalistas e veículos de comunicação.
No caso do uso abusivo do Poder Judiciário, em um ano, as ações ou decisões judiciais e inquéritos policiais contra jornalistas subiram de 13 para 25 casos, um aumento de 92,31%, em comparação com 2022. Já a violência contra os sindicatos e os sindicalistas aumentou 266,67%, passando de três para onze casos, no último ano.
Juízes, desembargadores e policiais militares e civis também figuram com destaque entre os que utilizam de diferentes expedientes para limitar a liberdade de atuação dos(as) jornalistas, é o que revela o relatório da Fenaj.
Para Samira Castro, presidenta da Fenaj, estamos diante de um preocupante cenário em um ambiente já tensionado pelos últimos anos. “A redação do The Intercept Brasil é a redação mais processada do país, o que consome mais de 30% de sua receita com os custos processuais em defesa do exercício da profissão”, lembrou, citando o caso da jornalista Shirley Alves, que foi processada por realizar uma apuração do caso de uma vítima de estupro humilhada em depoimento perante juízes e advogados.
Quando o alvo é o gênero
Quando observada a questão de gênero o quadro é também preocupante, visto que, de acordo com dados do Monitoramento de Ataques Gerais e Violência de Gênero contra Jornalistas 2023, lançado pela Abraji, permanecem os casos de agressões a jornalistas diretamente relacionadas à identidade de gênero ou orientação sexual das profissionais de imprensa. Comentários ou atos machistas, misóginos, homofóbicos, bifóbicos e transfóbicos são comuns quando as vítimas são jornalistas mulheres.
Em entrevista ao portal Gênero e Número, Rafaela Sinderski, pesquisadora responsável pelo monitoramento da Abraji, disse que “são muitos comentários sobre sexualidade e aparência. Nas palavras do agressor, é mais importante que ela esteja velha, que o cabelo dela seja feio, que ela seja feia, do que a informação que ela está passando”.
O monitoramento da Abraji mostra ainda que 205 crimes praticados contra a imprensa em 2023 foram realizados por homens, 77 por mulheres e 127 não têm identificação de gênero do autor. Os últimos são casos em que o ataque foi institucional, grupal ou não é possível saber a identidade de quem comete a violência. Entre as vítimas, 91,5% eram mulheres, 7% homens e 1,4% não binário.
Imagem ilustrativas de dados sobre os ataques com viés de gênero e casos que vitimaram mulheres no Brasil em 2024 – Gênero e Número
Políticas públicas de combate à violência
O cenário de violência contra jornalistas exige um conjunto de medidas e compromissos. Criminalizar as condutas dos agressores não é o suficiente e nem deve ser a principal aposta, apesar de parecer a alternativa mais fácil. Diferentes instituições defendem que é preciso olhar para as políticas públicas que já existem, buscando aperfeiçoá-las.
Logicamente, ter no comando do país um político como Bolsonaro, que não só estimulou mas foi autor de agressões diretas contra profissionais de comunicação, é gravíssimo. No entanto, como os dados inclusive indicam, o assunto não diz respeito apenas a uma troca de presidente. Ele passa por medidas efetivas e eficazes para a manutenção e o fortalecimento do Estado democrático de direito no país. Atingir a liberdade de imprensa é mexer com os alicerces democráticos de uma nação.
No âmbito do Executivo, iniciativas importantes, como o Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas e Comunicadores, construído pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) em 2023, e do qual o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social faz parte, precisam estar estruturadas com celeridade para que sejam capazes de oferecer respostas efetivas às vítimas. O colegiado atua em quatro grupos de trabalho: Assédio Judicial e Protocolos Legais; Ataques Digitais e Políticas de Proteção; Violência de Gênero; e Raça e Diversidade. O Observatório foi criado por meio da Portaria 306. Na mesma ocasião, o MJSP lançou um canal do Observatório que recebe denúncias de violência contra jornalistas e comunicadores no exercício da profissão.
De acordo com Artur Romeo, diretor do escritório da Repórter Sem Fronteiras na América Latina, que recentemente lançou o Marco Normativo e Políticas Públicas sobre a Atividade Jornalística no Brasil, “ainda que a legislação brasileira garanta o direito à liberdade de imprensa e de expressão, isso não é suficiente, há uma necessidade muito clara de uma postura positiva do Estado, em defesa da liberdade de expressão dentro de um marco normativo para promover um ambiente mais favorável da prática do jornalismo, sem depender de governo de turno”. O estudo traça um diagnóstico do quadro regulatório nacional para o jornalismo, aponta fragilidades e propõe caminhos para seu fortalecimento.
Um dos pontos de maior destaque que esse marco normativo indica é a proposta da Lei Nacional de Proteção, institucionalizando o Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), que completa vinte anos funcionando por decreto em 2024. Durante o governo de Jair Bolsonaro, o programa correu risco de ser revogado por não estar amparado em uma lei. Nesse cenário, há o perigo real de vermos uma política pública deixar de existir do dia para a noite.
Uma das responsáveis pelo PPDDH, Cândida Souza, em discurso durante o Seminário de Lançamento do Marco Normativo, realizado em fevereiro deste ano, em Brasília, disse que o programa presta atendimento atualmente a 1.100 pessoas. Dentre elas, dezenove são jornalistas. “A equipe interdisciplinar busca entender as vítimas para atuar de forma conjunta e garantir a integridade do trabalho dessa pessoa. Olhar para os sujeitos ameaçadores com uma perspectiva coletiva é uma preocupação”, afirmou.
A Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores, articulação em defesa da liberdade de imprensa e de expressão, é um dos exemplos de mobilização da sociedade civil para denúncia, formação e definição de estratégias para combater a violência contra a categoria. A articulação é encabeçada pelo Instituto Vladimir Herzog e pela Artigo 19, com apoio do Intervozes e da RSF.
Para Ramênia Vieira, coordenadora executiva do Intervozes, o jornalismo tem a função social de fiscalizar os poderes instituídos. A precarização do mercado, os ataques dentro e fora das redações e a ameaça constante de perda de postos de trabalho contribuem para o agravamento da violência contra jornalistas. “Existem questões estruturais de desigualdade social e econômica que se expressam no sistema informativo. Não é de hoje que apontamos a concentração abusiva da propriedade privada dos veículos de mídia em poder de poucos grupos empresariais e conglomerados de comunicação. Esse é um problema histórico que sempre foi denunciado pelo Intervozes ao longo da sua atuação, e que impede a diversidade na luta pela democratização da comunicação no Brasil”, afirmou.
Portanto, existe a necessidade de fortalecer um ambiente mais plural e o espaço cívico. O Congresso Nacional deve avançar sobre temas como medidas de prevenção, recebimento de denúncias, respostas rápidas, investigações céleres e responsabilização efetiva. A comunicação livre, segura e sem medo é essencial para uma democracia saudável. Ela permite a disseminação de informações íntegras, o que permite que a sociedade tenha insumos para a sua participação política e social. Não combater a desinformação e a violência contra jornalistas é, portanto, fortalecer lógicas antidemocráticas.
Aline Souza é jornalista nascida no Norte de Minas Gerais, mestre em Comunicação Social e Ativismo na América Latina e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social