Violência inflacionária, espiritualidade política e anticorpos democráticos
Como entender tamanha capacidade de “domesticação” de uma sociedade acostumada à mobilização social permanente?
A presença na capa da revista Time em 2024 parecia anunciar um futuro alvissareiro para o presidente da segunda maior economia sul-americana. De fato, conforme pesquisas de opinião divulgadas entre o último trimestre de 2024 e os dois primeiros meses de 2025, a imagem do líder libertário seguia em alta, perfazendo aproximadamente os pouco mais de 50% que o conduziram dos sets de televisão à Casa Rosada.
O colosso não era fácil de explicar. Afinal, parcela significativa da população argentina hoje é pobre, e o “maior ajuste da história” deveria, no mínimo, arranhar a imagem de Javier Milei. Uma sequência de eventos recentes parece estar pondo em xeque a longevidade no poder do presidente argentino, tida até agora como garantida dada a fragmentação da oposição peronista e o estado de desencanto produzido pelo governo catastrófico de Cristina Kirchner e Alberto Fernández que antecedeu o giro à extrema-direita.
Dada a volatilidade do cenário atual, talvez valha a pena esboçar algumas hipóteses de leitura sobre a experiência Milei até o momento. (Quanto mais não seja, a título de antecipação e registro frente ao futuro incerto que nos espera pós-Lula 3…) Como entender tamanha capacidade de “domesticação” de uma sociedade acostumada à mobilização social permanente? Como pôde uma sociedade que assistiu com certo ar blasé à monstruosidade bolsonarista gestar um personagem político que com um partido nanico e sem o respaldo de qualquer máquina institucional desafiou a “casta política”? Até quando durará a resiliência popular em prol da “responsabilidade fiscal” e da promessa de tornar a “Argentina grande de novo”?
Neoliberalismo progressista e violência inflacionária
Assim como os governos progressistas vitoriosos no começo dos anos 2000 na América Latina, os doze anos de kirchnerismo na Argentina (2003-2015) também tiveram como marca distintiva a atenção à agenda distributivista.
Aspecto menos discutido, mas que foi decisivo para o giro do país à extrema direita, é o que propomos chamar de naturalização da violência inflacionária. De fato, para aquele que tenha analisado a experiência política argentina dos últimos anos, chama a atenção a relação inversamente proporcional entre a capacidade de dano do fenômeno e a atenção a ele dispensada pela cúpula política progressista. Tendo ganhado relevo sobretudo a partir do primeiro mandato de Cristina Kirchner (2007-2011), a realidade inflacionária passou, com o tempo, a ser assumida com um mal necessário frente aos benefícios do famigerado “efeito multiplicador”.
Contribuiu para tanto uma visão economicista da inflação. De fato, vista desse ângulo, a postura progressista parecia rentável. Afinal, com cerca da metade do PIB atado ao consumo interno – quadro, aliás, muito parecido ao brasileiro –, por que resistir à sedução de turbinar a demanda e capitalizá-lo nas urnas? No entanto, em um contexto internacional marcado pela multiplicação de formas ultraprecarizadas de trabalho, pelo horizonte desolador de uma “vida sem salário” e pela consolidação de regimes diferenciados de espoliação anímica, é difícil entender a ascensão de La Libertad Avanza sem ampliar o escopo de análise e considerar outro dos traços deletérios da variação constante de preços: a captura da experiência temporal das classes populares.
Para fornecer uma fotografia do estrago provocado pela violência inflacionária, vale mencionar o que viram pesquisas com votantes de Milei oriundos dos setores populares feitas meses antes das eleições presidenciais. De acordo com estas, dentre os afetos mais consolidados entre esses eleitores, figurava a falta de esperança no futuro, e dito desalento era atribuído com frequência à impossibilidade de projetar suas vidas para além de suas obrigações pecuniárias mensais dada a erosão de sua renda pela chaga inflacionária. Muitos desses jovens, trabalhadores informais, formais precarizados, empreendedores, desempregados, justificavam seu desengajamento subjetivo com a política progressista atribuindo a esta a consolidação de uma forma de vida marcada por uma experiência contraditória do tempo: alucinante, mas vazia de sentido; esgotadora, mas improdutiva; rica em possibilidades, mas vazia de realizações.1
A vingança da juventude precarizada
Em um texto anterior, argumentamos que foi sobre esse terreno que aterrizou a oferta eleitoral de Milei. Dissemos então que o antiestatismo da juventude precarizada que emprestou seu respaldo ao atual presidente não deveria ser lido apenas em chave negativa – como um “gorilismo” temporão, segundo o vocabulário político argentino. Antes, ao nosso ver talvez valesse a pena tentar entender até que ponto não estaria em jogo uma afinidade eletiva entre uma pulsão destrutiva, expressa no desejo de eliminar “todo lo anterior”, e outra criativa, vinculada tanto às pautas da liberdade como a uma aspiração ascensional eclipsada pelo que lhes aparecia como um coletivismo panfletário e inoperante.
Como observaram alguns filósofos contemporâneos, uma das formas de definir a espécie de violência perpetrada sobre os corpos em situações conflitivas está na possibilidade ou não de sua elaboração. (Daí as discussões, no caso extremo de um confronto bélico deflagrado, sobre a possibilidade ou não de dizer, e, portanto, de julgar, os horrores da guerra no âmbito do direito humanitário ou dos crimes contra a humanidade, no âmbito do direito internacional dos direitos humanos.) No fundo, se a experiência de padecimento de um tipo de violência é dizível, é porque ela é passível de ser politizada. Acreditamos que o que está em jogo na experiência Milei, vista da perspectiva das classes populares, é a politização de uma violência de base ignorada enquanto tal pelo arsenal analítico do progressismo argentino. Ao nosso ver, a reconstrução dos meandros dessa violência de base, dentre elas a inflacionária a que nos referimos, é crucial para entender a conexão do discurso virulento de Milei com as juventudes precarizadas.
Milei não só leu essa violência virtual ignorada pelas abordagens macropolíticas tradicionais como se conectou a essa realidade, tornando-se assim um interlocutor político à altura da conjuntura histórica atual. (Visto assim, aliás, o histrionismo de suas aparições públicas, as intervenções enérgicas, as boutades por X, deixam de compor o arsenal essencial de um outsider excêntrico e se tornam atributos de um líder popular.) Ainda dessa perspectiva também adquirem novos sentidos alguns enunciados de sua comunicação política postos em circulação tanto antes como depois das eleições presidenciais. Desde o princípio, Milei procurou, por exemplo, traduzir a problemática inflacionária nos termos de um roubo, isto é, como um gesto violento, cujos maiores prejudicados seriam justamente as classes menos favorecidas, incapazes de se atrincheirar detrás da divisa norte-americana diante da dilapidação do valor do peso.
Por outro lado, Milei também apontou seus canhões semióticos contra a “casta”, atribuindo-lhe outro gesto violento aos seus olhos: a captura do “orçamento público” em benefício próprio. Conforme sua comunicação política, surgida do hoje tão vilipendiado direito ao voto, aquele grupo social teria se apartado da fonte de sua legitimidade e passado a “legislar em causa própria” – mais outra violência. Um último exemplo ilustrativo. Não custa lembrar que Milei conseguiu atrair o foco da imprensa internacional ao dizer que estaria disposto a colocar uma bomba no Banco Central da República Argentina. (Ato respaldado por um silogismo devidamente desenvolvido, naturalmente: dado que o Banco Central é o banco dos bancos, que detém a potestade de emitir moeda, considerando que o aumento da base monetária sem respaldo gera inflação, e que, além do mais, a inflação é um imposto injusto e ilegítimo a longo prazo, logo é justo…)
Em síntese, Milei levou à prática o que a melhor tradição da teoria crítica apresentou à modernidade como sendo sua maior e mais produtiva contribuição: sinalizar que ali onde o pensamento liberal vê paz e liberdade das “partes contratantes” há violência social. Se essa hipótese de leitura faz algum sentido, estaríamos em condições de ler o apoio popular a Milei dentre as camadas precarizadas como uma vingança contra o esquecimento desse princípio fundamental e contra os efeitos deletérios de suas distintas formas de expressão no convulsionado mundo atual.
Implosão social e espiritualidade política
A contraviolência exercida pelas classes populares mediante a hipoteca momentânea de seu apoio político ao governo de ultradireita na Argentina se assenta, para nós, em um substrato mais profundo e pouco explorado nas análises sobre o fenômeno Milei: algo que poderíamos chamar de base anímica do voto.
Nos últimos anos, circularam diversas hipóteses instigantes sobre a precariedade em uma acepção expandida como condição transversal das sociedades contemporâneas. Em uma de suas vertentes, essas ideias têm sido usadas para pensar a transição do que restava do Estado de bem-estar europeu à sociedade do infinito negativo da hiperconexão, da impotência e do cansaço. No âmbito latino-americano, as formulações sobre a precariedade como condição estruturante de nossas sociedades se confundem, em seu embate com a teoria da modernização, com a própria estruturação de um campo de reflexões sobre a consolidação de um capitalismo periférico no país. (No âmbito da geografia crítica, Milton Santos falou de uma “industrialização terciária”, por exemplo.)
Apesar da aproximação relativa na atualidade das configurações sociais do Norte e do Sul globais, dada a forma adquirida pelo capitalismo pós-crise de 2008, há diferenças de fundo que devem ser marcadas. Assim, se em latitudes europeias o que está em jogo nos últimos anos é a desintegração da sociedade salarial e a instalação da realidade do desemprego e da pobreza, em casos como o argentino, por exemplo, deveríamos falar de um cenário algo contraintuitivo de sobreocupação. De fato, se atribui a essa realidade, consolidada há pelo menos uma década na Argentina, a resiliência das classes populares ao “maior ajuste da história”. Essas classes populares teriam sido treinadas pela realidade precária, incorporando, a partir de algo como uma “ginástica social”, a necessidade de combinar diversas ocupações a fim de garantir um patamar material mínimo de sobrevivência.2 Assim, conforme essa visão, teriam sido, paradoxalmente, os anos de governos progressistas os responsáveis por anabolizar a capacidade de resiliência plebeia. Em uma diferença fundamental com a crise de 2001 que levou ao colapso do governo da Alianza, as administrações kirchneristas teriam disciplinado a sociedade no que em um registro coloquial adaptado à realidade brasileira poderíamos resumir desta forma: o “corre”. Nesse sentido, se em 2001 o descenso “ao inferno” (N. Kirchner) teria transformado grande parcela da classe média argentina em desocupados da noite para o dia, os anos de kirchnerismo lhes apresentou à realidade da sobreocupação como horizonte de expectativas.
Esse tipo de socialização tinha tudo para produzir uma explosão social (el estallido del 2001), mas deu lugar a uma implosão. Assim, seriam indícios dessa sociedade implodida os recorrentes conflitos domésticos, a produção silenciosa, mas constante de uma subjetividade reativa e ressentida, além de um já estabelecido desencantamento com a burocracia política. Milei seria, portanto, produto genuíno dessa sociedade cansada e atrincheirada detrás de uma barricada afetiva impregnada de “paixões tristes” que teriam servido de combustível ao experimento político atual.
De nossa parte, gostaríamos de testar outra hipótese. Para nós, o que empreendeu a experiência política mileísta até agora foi a formação de uma nova espiritualidade política, entendida como uma direção dada a um conjunto de forças anímicas disponíveis em um determinado contexto social. Nesse sentido, em vez da reativação de uma “personalidade autoritária” fruto de uma sociedade implodida e proclive ao ódio, em nossa visão Milei pôde, até o momento, não só reunir uma energia anímica que parecia já inexistente como também orientá-la politicamente, dando-lhe a forma de uma oferta eleitoral. Interpretando Marx via Foucault, Pierre Macherrey argumentou certa vez que quando Marx mobilizava o conceito de força produtiva no singular Produktivkraft, o fazia significar uma capacidade da força enquanto realidade dinâmica no sentido próprio do termo, isto é, uma potência, um Vermögen.3 Para nós, a espiritualidade política mileísta é isto: uma modulação à direita dessa força produtiva plebeia.
É nesse sentido que nos parece interessante ler a referência de Milei às “fuerzas del cielo”. Retomada em contextos dissimiles, acompanhada ou não do mantra anarcocapitalista (“viva la libertad, carajo!”), ao nosso ver, o recurso ao arsenal teológico-político excede um sionismo caricaturesco. Ao contrário, parece replicar um fenômeno conhecido dos brasileiros nos últimos anos: a construção de um processo de subjetivação popular por fora da política burocratizada. Acreditamos que é a partir dessa chave de leitura que devemos entender o protagonismo da fé neoprotestante no Brasil: uma forma de modulação da força produtiva plebeia vampirizada cotidianamente pelo capitalismo pós-fordista tecnofeudal. Daí que talvez valha a pena revisitar hoje as hipóteses de Max Weber sobre as “rejeições religiosas do mundo” e orientá-las a uma reflexão sobre o que proporíamos denominar, de nossa parte, “rejeições políticas do mundo” – discussão que, no fundo, aliás, remonta à origem do pensamento político radical, como mostrou a pesquisa de Michael Walzer.4
Ao contrário das interpretações mais correntes sobre esse tipo subjetivação popular, acreditamos que menos do que um individualismo de corte instrumental e utilitário, o que está em jogo nesses casos é a consolidação de um “individualismo moral”, isto é, um experimento subjetivo que se nutre de componentes idealistas sem se deixar reduzir ao cálculo egoístico, embora deste possa se nutrir estrategicamente. Afinal, que a política tradicional já não seja capaz de seduzir os corações e mentes de votantes ao redor do mundo, não implica que eles não sejam pura e simplesmente seduzíveis.
O fim da pós-verdade?
Em tandem com o individualismo moral, Milei também buscou desarticular sua comunicação política da máquina semiótica desinformativa comum e corrente no âmbito das novas direitas internacionais. Contrariando as previsões daqueles que apostavam que o radicalismo mileísta se esgotaria no dia seguinte à vitória eleitoral, o líder libertário pisou no acelerador e conseguiu, por exemplo, aprovar uma bateria de leis importantíssimas que não só lhe deram legitimidade, mas também contribuíram para a onda de desregulação social impulsionada pelo governo desde os primeiros meses de gestão. (O fato de que Elon Musk tenha declarado que o DOGE estadunidense seja um calco do Ministério da Desregulação argentino conduzido por Federico Sturzenegger dá uma ideia do sentido de iniciativa do governo argentino.)
“Pisar no acelerador” não é uma simples metáfora. De fato, estudiosos da extrema direita global têm chamado a atenção para a captura por parte do discurso neofascista contemporâneo de toda uma tradição crítica que buscou pensar a articulação entre o avanço do capitalismo e os imperativos da velocidade e da aceleração. (É bom lembrar, aliás, que o Manifesto Futurista não saiu da pena de um democrata…) No caso argentino, a aceleração decisória está estritamente vinculada à prepotência de um governo que possui uma ideia forte de verdade e tenta instalá-la sem pudor. Nesse registro, estamos nas antípodas da segunda onda progressista em curso em alguns países da América Latina – esta não diz o que pensa, e, via de regra, se o faz, executa exatamente o contrário do que diz.
Assim, centrando sua comunicação e prática políticas na desinibição e na desfaçatez, o governo de Milei põem em xeque a assimilação pura e simples entre extrema-direita e pós-verdade. De fato, pode-se se dizer que o experimento mileísta procura percorrer o caminho contrário ao empreendido pelo que desde o próprio governo se denomina a agenda woke: em vez de ir da verdade ao relativismo, se vai deste à “verdade”.
Davos e o libelo à intolerância
Até onde avançará a prepotência mileísta? Tudo indica que a intenção de munir os “argentinos de bem” da “verdade” necessária para enfrentar o vale de lágrimas do ajuste começou a encontrar limites depois do dia 23 de janeiro deste ano. Sentindo-se respaldado pelo contundente triunfo trumpista nos Estados Unidos, do púlpito principal do Foro de Davos o presidente argentino empostou a voz e disparou, entregando à audiência um libelo à intolerância que escandalizou até mesmo a aristocracia financeira presente no auditório suíço.
Confortando-se no amparo do “maravilhoso Elon Musk”, da “feroz dama italiana” e “querida amiga, Giorgia Meloni”, de Bukele, Viktor Orbán, Benjamín Netanyahu e, why not, Donald Trump, Milei conectou em chave de causalidade pedofilia e homossexualidade, convocando o “Ocidente” a uma cruzada para defender as “ideias da liberdade”, da “vida” e da “propriedade privada” contra o “pensamento único” wokista. (“Woke mind virus”, diria o dono da plataforma X.) A sanha da extrema-direita internacional contra o que antes se costumava denominar “marxismo cultural” e agora se conhece mais comumente como wokismo não é exatamente uma novidade. De fato, nos últimos anos se buscou localizar na “ferida narcísica” masculina provocada pelo avanço dos diversos feminismos no nível mundial a causa da furibunda reação. (Ampliando o escopo de análise, e pensando especificamente nos Estados Unidos, Franco “Bifo” Berardi propôs chamar esse tipo de subjetivação política reativa do “povo da Segunda Emenda”, por exemplo).
No entanto, no caso argentino, acreditamos que a cruzada contra o wokismo deve ser lida a partir da história recente de mobilizações no país. Em primeiro lugar, o epíteto “wokista” é claramente uma forma de caricaturizar o acúmulo de mobilizações consolidado ali há pelo menos uma década. (Pelo menos, dado que não é o caso aqui de fazer remontar as referidas mobilizações a uma genealogia mais ampla que certamente teria que mencionar formas de organização política que lhe serviram de inspiração nos 1970 e 1980, em alguns casos inclusive em contextos ditatoriais.) Em segundo lugar, sob a retórica da ineficiência das políticas públicas voltadas à diminuição dos casos de feminicídio na Argentina, é evidente que semelhante urgência em atacar esses setores se deve à consciência de que foi o feminismo popular argentino, em comparação com outros setores políticos no país, quem melhor soube ler que o que está em jogo após a crise de 2008 no mundo é um modelo de acumulação baseado na espoliação dos meios de reprodução social.
Por isso mesmo, causava surpresa a dificuldade de articulação de uma resposta contundente à Blitzkrieg mileísta. De fato, até o libelo de Davos, o avassalamento relâmpago promovido pelo governo atual com relação às pautas das assim chamadas “minorias” (fechamento de ministérios, secretarias, esvaziamento de órgãos descentralizados vinculados à referida agenda…) não havia enfrentado resistências significativas.
1F. A marcha antifascista e antirracista
Rompendo a relativa calma anterior, uma assembleia foi convocada para o Parque Lezama, zona portuária da Cidade de Buenos Aires, para o dia 25 de janeiro, em resposta ao libelo de Davos.
É difícil explicar o caráter multitudinário da assistência sem lembrar de uma das características principais do feminismo popular argentino. De fato, este é caracterizado pelo esforço de incorporação e politização de pautas aparentemente desconexas. (Um exemplo histórico desse tipo de dinâmica organizativa foi a já mencionada greve de mulheres de 2016, convocada originalmente em resposta ao crescimento dos casos de feminicídio no país, que conseguiu incorporar pautas afins à invisibilização do trabalho feminizado, à mercantilização dos meios de reprodução da vida e ao endividamento popular.)
Prolongando essa forma política, a assembleia reunida no dia 25 de janeiro convocou uma marcha para o primeiro dia do mês de fevereiro, reivindicando-se como antifascista e antirracista. Ao fazê-lo, portanto, ampliou a intepretação do alcance do ataque de Davos para além de uma declaração preconceituosa contra formas atípicas de organização familiar. A leu como a expressão clara de uma posição governamental proclive à hierarquização da possibilidade de participação dos corpos em uma determinada comunidade. Na República de “Javier”, aos corpos “inferiores”, status secundários e perseguição pública. (A propósito, é altamente sintomático que desde o berço da aristocracia financeira mundial em direção à qual fluem as energias vitais das forças de trabalho globais em todas as suas dimensões se haja enunciado semelhante taxonomia…)
A marcha do 1F foi a primeira resposta contundente ao governo de Javier Milei a pouco mais de um ano de sua posse. Com palavras de ordem que procuraram visibilizar e tornar inteligíveis a necessária conexão entre o ajuste macroeconômico do governo anarcocapitalista e o microfascismo permanente, a marcha contou com ampla adesão em distintas províncias argentinas, além de angariar o apoio ativo de países como Portugal, Espanha e Berlim, que convocaram mobilizações de solidariedade.
Anticorpos democráticos
De Davos à marcha antifascista e antirracista, desta à mobilização em defesa dos aposentados. Perfazendo parte considerável do orçamento público argentino, os aposentados e aposentadas do país vêm padecendo como nenhum outro setor a virulência da motosserra de Milei. Replicando um modo de ativismo que remonta às rondas das Madres e Abuelas de la Plaza de Mayo nos anos 1970, todas as quartas-feiras aposentados e aposentadas decidiram levar a cabo sua própria mobilização nas imediações do Congresso de la Nación. De índole pacífica, o exercício semanal de civilidade disparou uma onda de indignação quando, no marco da aplicação do Protocolo Anti-piquetes desenhado logo no início do governo de Milei para aumentar os custos do protesto social, um aposentado foi duramente reprimido.
Chamava-se Carlos e vestia a camisa do Chacarita, clube mítico nascido no bairro homônimo da Cidade de Buenos Aires. A circulação de imagens da repressão provocou uma onda de indignação, e membros da torcida organizada do clube e torcedores convocaram uma marcha em solidariedade aos seus “mais velhos e mais velhas”. Em um encontro histórico entre gerações (Benjamin dixit) os autoconvocados e autoconvocadas aludiam, entre outros, à postura de Maradona quando do ajuste dos anos 1990 sobre os aposentados – “como no voy a defender a los jubilados? Hay que ser muy cagones para no defender a los jubilados!” – como forma de estimular o engajamento social.

Somava-se assim outro componente à dinâmica ativista contra o governo de Milei – se no caso da marcha antirracista e antifascista esteve em jogo uma operação de ampliação da base de demandas, na marcha dos “hinchas y jubilados” se buscou ativar o elemento geracional, sugerindo a partir da própria atividade política uma conexão entre experiências militantes desvencilhadas para um olhar desprevenido. Na prática, se reintroduzia a partir da própria dinâmica de construção política, algo que a “sóbria” discussão orçamentária internacional a respeito tenta camuflar: o elo necessário entre as forças de trabalho que vieram antes e a população economicamente ativa no presente.
Nesse sentido, a marcha do dia 12 de março foi muito mais do que uma aliança provisória entre torcedores e aposentados e aposentadas. Na verdade, a capacidade de mobilização que havia sido ativada em resposta ao discurso de Davos em 1º de fevereiro com a marcha antifascista e antirracista acionou os anticorpos democráticos da sociedade argentina. Em um contexto de complacência institucional e balcanização da oposição peronista, uma vez mais a capacidade de mobilização impôs um limite à prepotência de La Libertad Avanza. É válida a referência a certo instinto de conservação democrática que circulou nos dias que se seguiram à marcha para buscar entender a jornada de protestos. Acrescentaríamos apenas que talvez valha a pena entender a ideia de conservação mais no sentido spinoziano que hobbesiano do termo, isto é: uma conservação entendida como a afirmação da capacidade dos indivíduos e coletividades de entrar em relação e incrementar sua potência de agir e imaginar.
Finalmente, há paralelos possíveis a registrar se compararmos a ativação de anticorpos democráticos na Argentina e no Brasil nestes tempos recentíssimos. Enquanto neste último caso o encargo da defesa democrática parece haver passado à alçada de uma institucionalidade algo hipertrofiada à que observamos como se assiste a um jogo de futebol – torcendo é claro para o time dos de toga –, no caso argentino, ocorre algo ao revés: diante dos impasses de uma extenuante polarização institucional, incluída a Suprema Corte, são as peças das ruas que avançam no tabuleiro político, lembrando-lhe à institucionalidade que há limites incorporados e elaborados pela memória coletiva que não deveriam ser ultrapassados.
Uma convertibilidade sem dólares
Nas últimas semanas, somou-se ao combo explosivo anterior uma velha conhecida do país vizinho: a escassez de divisas. Dentre as leis aprovadas por Milei com o apoio da oposição peronista, uma desponta como a chave para decifrar a ideia de futuro que La Libertad Avanza projeta para a Argentina. Trata-se do Régimen de Incentivo para Grandes Inversiones (RIGI), um pacote de estímulos a trinta anos para a atração de investimentos cuja mira está posta sobretudo no setor energético. (Junto com o Chile e a Bolívia, a Argentina integra o denominado “triângulo do lítio”, abrigando grandes reservas deste mineral crítico tão cobiçado em tempos de tecnofeudalismo.) Mediante o RIGI, o governo libertário procura transformar o país em um “enclave exportador”, facilitando o ingresso de poupança externa ao alinhar a Argentina à reorientação da demanda internacional por alimentos e energia após a guerra por procuração na Ucrânia entre a Otan e a Rússia. Para quem acompanha os discursos de Milei, isso não é exatamente uma novidade. É nesse sentido que deveríamos ler as referências recorrentes à “geração de 1870” como a utopia retrospectiva predileta dos libertários, cena originária de uma Argentina próspera e liberal que deveria ser recuperada na visão dos ideólogos do governo.
Ocorre que tanto o tempo histórico como as promessas eleitorais mudaram significativamente do século XIX para cá. Assim, embora nos primeiros seis meses de gestão o governo tenha conseguido aumentar as reservas do Banco Central pela expressiva liquidação de colheitas – ao contrário do que havia ocorrido com o governo de Cristina e Alberto Fernández, que tiveram que amargar a seca tenebrosa que sufocou ainda mais o já débil experimento político… –, com o passar dos meses, a promessa eleitoral de manter a inflação em baixa obrigou o governo a sacrificar boa parte de suas divisas, que não param de dessangrar desde então.
No experimento da convertibilidade menemista, a miragem da estabilidade monetária havia sido alcançada, dentre outros, pelos dólares provenientes da onda de privatizações. O engendro, que durou até voar pelos ares na antessala de 2001, produziu o que poderíamos chamar de subjetividade “dame dos”, que motorizou a arrogância consumista das classes médias argentinas que percorriam o mundo como se tivessem partido de férias à Tucumán ou Salta. Nesse particular, vale aqui também uma aproximação com o Brasil, cujo Plano Real – que, a propósito, só teve êxito em nossa opinião porque foi coordenado por um sociólogo atento ao papel fundamental das expectativas sobre a inércia inflacionária de então – levou FHC ao seu segundo mandato e legou aos governos progressistas que viriam a preciosa herança da estabilidade monetária em se tratando de economias em desenvolvimento. (Se não, perguntemos aos argentinos…)
Em um revival trágico do ano de 2018, quando o governo de Maurício Macri teve de recorrer ao FMI para estancar a sangria de uma corrida cambiária brutal que parecia infinita, Luis “Toto” Caputo, atual ministro de economia, acaba de fechar um novo empréstimo de US$ 20 bilhões para acalmar os mercados enquanto as ruas do país vizinho parecem adquirir temperatura novamente. É difícil prever o que acontecerá nos próximos meses com eleições de meio-termo no horizonte. O certo é que parece não faltar muito para sabermos quão poderosas são, de fato, as fuerzas del cielo…
Igor Peres é doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Traduziu meia dezena de livros do espanhol ao português nos últimos anos, é intérprete de conferências e desenvolve atualmente um pós-doutorado comparando lulismo e kirchnerismo no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesta instituição, integra o Núcleo de Estudos Trabalho e Sociedade.
1 Resumo os achados de alguns grupos focais de que tive a oportunidade de participar em 2021, na Argentina. Estes buscavam sondar as intenções de voto para as eleições legislativas daquele ano. O pleito serviu de ocasião para a primeira e surpreendente estreia de Milei na arena eleitoral, levando-o ao legislativo nacional com uma vitória arrasadora inclusive em bairros desfavorecidos da Ciudad de Buenos Aires. Para um resumo do desempenho eleitoral de Milei ver: https://www.pagina12.com.ar/383039-asi-fue-el-voto-a-javier-milei-en-las-elecciones-2021-en-cab.
2 Essa visão é defendida por Verónica Gago em ¿Quién aguanta más ajuste? Le Monde Diplomatique. Edición 295, 2024. Ver: https://www.eldiplo.org/295-terapia-de-shock/quien-aguanta-mas-ajuste/.
3 Ver Pierre Macherrey. Le sujet productif. 15 de maio de 2012. Disponível em: https://philolarge.hypotheses.org/1245.
4 Ver Michael Walzer. La revolución de los santos: estudio sobre los orígenes de la política radical. Buenos Aires: Katz, 2008.
5 Para um registro audiovisual do descargo de Maradona, ver: https://www.youtube.com/watch v=HxjuMPMC4gM&ab_channel=EspacioGerontoVida