A violência contra as mulheres e os negros na política
Eleições de 2024 devem precipitar muitas discussões sobre os fatores que contribuem para a persistente sub-representação de mulheres, pessoas negras e outros grupos minorizados na política
As próximas eleições ocorrem apenas em outubro de 2024, ou seja, daqui a quase um ano. No entanto, as mobilizações de pré-candidaturas, agendas em disputa, tentativas de impedir a entrada ou dificultar a permanência de determinadas/os agentes públicas/os na arena institucional já estão na ordem do dia. Nesse sentido, o pleito municipal deve precipitar muitas discussões sobre os fatores que contribuem para a persistente sub-representação de mulheres, pessoas negras e outros grupos minorizados nas casas legislativas e na chefia do Poder Executivo no país.
Quando realizamos uma breve revisão da literatura sobre fatores para a sub-representação de mulheres, pessoas negras e indígenas, por exemplo, nos cargos político-eleitorais, nas esferas municipal, estadual e federal, encontramos a seguinte constatação: o preconceito de gênero e de raça contra mulheres e pessoas negras não pode ser mais considerado determinante direto do insucesso eleitoral de suas candidaturas. Abordaremos adiante alguns desses fatores que atuariam para maximizar ou minimizar suas chances de eleição. Por ora, salientamos que é preciso dar mais atenção para o fenômeno da violência política, principalmente, com os agravantes de gênero e raça, entendendo-se que é preciso uma perspectiva interseccionalizada para sua compreensão. Tal observação já vem sendo trabalhada por autoras como a professora Marlise Matos (NEPEM/UFMG) há alguns anos.
Até a década de 1990, vários estudos destacavam que os preconceitos inibiam mulheres e pessoas negras de se candidatarem, uma vez que o eleitorado subestimaria suas competências para ocupar um cargo político. Por essa razão, muitas/os nem ao menos se registravam como candidatas/os juntos aos partidos, temendo serem recusadas/os pelos dirigentes das legendas em favor de políticos homens cisgêneros brancos, oriundos dos segmentos das classes médias e altas. Temiam, ainda, que os estereótipos largamente disseminados na sociedade, em razão de sexismo, racismo e elitismo, levassem eleitoras/es a rejeitarem suas candidaturas. Isso significa que estávamos diante de um problema de ofertas de candidaturas de mulheres e de pessoas negras, seja pelo baixo número de inscritos, seja pela carência de candidatas/os competitivas/os.
Progressivamente, constatamos que fatores institucionais, organizacionais e comportamentais intrínsecos às disputas no campo da política têm contribuído para desequilibrar as chances de voto, desfavoravelmente contra esses grupos. Entre eles, estariam, por exemplo, as características do sistema eleitoral, os mecanismos de escolha das/os candidatas/os e as normas de financiamento de campanha. Outras barreiras para o sucesso das candidatas nas corridas eleitorais localizam-se no padrão de recrutamento de candidatas/os pelos partidos, no aumento de postulantes aos cargos eleitorais, na forma de arrecadação e distribuição dos recursos para as campanhas, e, finalmente, nas características da base social de candidatas/os negras/os e brancas/os, cujas/os primeiras/os tenderiam a dispor de menos recursos pessoais e relacionais para enfrentar uma eleição. Dessa forma, presume-se que questões relativas ao descompasso entre o “suprimento” e a “qualidade” de candidaturas de mulheres e de pessoas negras talvez explicassem os insucessos de suas candidaturas.
No entanto, há um item que ainda estava faltando nessa equação e, diante de diversos fatos recentes, precisa receber a importância devida. Fazemos referência ao peso da violência política, que atinge sujeitos do campo político, de maneiras distintas e interseccionais, considerando gênero, raça, identidade de gênero e territorialidade, além de outros marcadores sociais. Seu principal objetivo é inibir, dificultar ou barrar a partição de mulheres, de pessoas negras e de demais grupos minorizados nas corridas eleitorais e na permanência em espaços de tomada de decisões.
O fenômeno da violência política contra mulheres tem conquistado maior visibilidade ao longo dos últimos trinta anos, na América Latina. Contudo, no Brasil, talvez um marco que despertou o interesse público quanto a esse fundamental debate tenha sido o brutal assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), e do motorista Anderson Gomes, na cidade do Rio de Janeiro, no dia 14 de março de 2018. O homicídio de uma pessoa política é um exemplo extremo de violência, uma vez que aniquila não apenas aquela/e que foi vitimada como também passa o recado de que suas ideias e propostas incomodam, não sendo bem aceitas por outros grupos de espectros políticos diferentes. É, pois, um ato que afeta uma coletividade, que pode, inclusive, inibir que outras pessoas se disponham a participar.
As eleições de 2022 foram as primeiras nas quais duas leis a respeito da violência política estiveram em vigor no Brasil, sendo que a Lei nº 14.197/2021 aborda a violência política em seu caráter mais geral e a Lei nº 14.192/2021 trata especificamente da violência política contra as mulheres. Embora ainda não haja na legislação menção quanto ao marcador racial ou de identidade de gênero, não podemos ficar indiferentes ao fato de que a violência política contra as mulheres traz em si agravantes interseccionais, como citado acima.
Ainda com base no pleito de 2022, é possível verificar que a violência política se consolidou como mais um obstáculo para ingresso e participação na arena política em nosso país, em razão, talvez, do aumento das candidaturas de mulheres e de pessoas negras e do crescimento de eleitas/os advindas/os desses grupos. Embora ainda bem distante de percentuais paritários, as mulheres representaram 35% das candidaturas para a Câmara dos Deputados, chegando a 18% de representantes eleitas. Quanto a postulantes negras/os a essa casa legislativa, perfizeram 49,5% das candidaturas, convertendo-se em apenas 26% das cadeiras.
Retornando ao tema da violência política, os ainda poucos estudos e registros estatísticos a seu respeito têm se ampliado ao redor do mundo e no Brasil, em especial, por causa de diversos incidentes de ameaças, agressões e assassinatos de mulheres e membros de grupos minorizados que foram publicizados recentemente. Em Minas Gerais, por exemplo, vereadoras de Belo Horizonte e deputadas estaduais foram alvo de ameaças de estupro corretivo e de assassinato (contra elas e familiares), que muitos apontam para uma ação orquestrada de intimidação. As ofensas e ameaças na mesma linha direcionadas à ex-deputada federal (RS) Manuela D’Ávila e à vereadora de Niterói (RJ) Benny Briolly, primeira parlamentar trans da cidade, são outros exemplos de casos recentes de violência política contra mulheres.
Para órgãos como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a violência política de gênero e raça é um problema de direitos humanos que atinge as democracias contemporâneas. Se levarmos a reflexão para o sentido de discussões canônicas da ciência política, por exemplo, a violência como mecanismo para impedir o livre exercício da participação política e eleitoral derruba, pelo menos, três dos oito pilares da poliarquia, segundo o modelo de democracia do cientista político estadunidense Robert Dahl: direito de se eleger para cargos públicos; direito de líderes políticos de competirem por apoio; e eleições livres e limpas.
Em artigo apresentado durante 47º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado este ano, o pesquisador Huri Paz (Afro-Cebrap/USP) fez uma análise a partir da perspectiva interseccional, no sentido de demonstrar consistentemente que gênero, raça e territorialidade importam e muito para o exercício da carreira política, e que a violência política de gênero e raça não pode ser compreendida como algo corriqueiro e típico da política. Paz abordou os assassinatos de mulheres políticas negras ocorridos no estado do Rio de Janeiro, no período de 1988-2022. A relevância da pesquisa foi reconhecida pelos pares, ficando o trabalho entre os três laureados do Prêmio Luiza Bairros 2023.
A sociedade democrática para todas as pessoas não se resume à formulação de leis ou à realização periódica de eleições. Necessariamente, deve contemplar o amplo direito do exercício da cidadania, a defesa dos direitos humanos e a compreensão de que as diferenças precisam ser compreendidas como pluralidade, não como indutoras de desigualdades. Dessa forma, destacamos que a violência política que, como vimos, recai sobretudo sobre mulheres, pessoas negras e demais grupos minorizados, é mais uma barreira para concretização da democracia no Brasil.
Cloves Oliveira é doutor em Ciência Política (IUPERJ), professor de Ciência Política (UFBA), membro do Grupo de Pesquisa A Cor da Bahia (UFBA) e coordenador da AT Raça, Etnicidade e Política (ABCP). E-mail: [email protected].
Viviane Gonçalves é doutora em Ciência Política (UnB), subcoordenadora de pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM/UFMG) e coordenadora da AT Raça. Etnicidade e Política (ABCP). E-mail: [email protected].