Vivemos em tempos de realismo capitalista?
O retorno de Trump traz para a esquerda latino-americana a necessidade de se questionar como oposição ao espectro do libertarianismo conservador que está emergindo do Norte para exercer força no Sul global
Slavoj Zizek disse na época que não havia dúvida de que a sociedade estava entrando em ‘tempos interessantes’: “Hoje estamos claramente nos aproximando de uma época de tempos interessantes: os sinais estão em toda parte, desde a crise financeira de 2008 até as catástrofes ecológicas de 2010” (2011, p. 3). Essa ideia dos ‘tempos interessantes’ refere-se a uma forma chinesa de amaldiçoar alguém, pois entende-se que não são nada além de tempos de desastres, instabilidades e conflitos constantes. Quatorze anos se passaram desde que Zizek interpretou os ‘tempos interessantes’ do mundo, e hoje, pode-se dizer que, esses tempos não desapareceram do mundo; a pandemia de Covid-19, a primeira eleição de Trump, a administração da direita global que levou a uma luta político-ideológica e, é claro, a profunda crise ambiental que está piorando a cada dia.
Assim, “podemos dizer que vivemos em tempos interessantes”; no entanto, há algo particular sobre essa temporalidade pela qual estamos passando, e é precisamente essa qualidade que Fredric Jameson chamou de pastiche, que é característica da era pós-moderna: “O pastiche é, consequentemente, uma paródia vazia, uma estátua cega: ele mantém com a paródia a mesma relação que aquele outro fenômeno moderno que é tão original e interessante, a prática de uma espécie de ironia vazia” (1991, p. 44).
Nesse sentido, nossos ‘tempos interessantes’ se destacam como um amálgama vazio de elementos que constroem significado apenas por estarem inseridos em um contexto de crise, mas não possuem nada de novo, pois no capitalismo tudo o que nasce tem uma marca de repetição que não pode ser evitada e que leva necessariamente à estagnação do mundo.

Isso fica evidente na reeleição de Trump para a presidência dos Estados Unidos. Além de suas implicações políticas, econômicas, sociais etc., algo que muitos outros analistas já exploraram em profundidade neste momento, o que quero fazer é refletir sobre o que esses eventos políticos indicam sobre a estrutura inconsciente que molda a era contemporânea.
Assim como Jameson (2002) tenta fazer com o estudo da cultura e das artes, aqui isso pode ser feito a partir do olhar do transeunte, que observa na primeira página a ocorrência desse fenômeno apocalíptico que é o ‘lento cancelamento do futuro’. E é daí que vem a razão do título deste artigo, pois, embora em um primeiro momento a primeira eleição de Trump tenha sido vivenciada como uma tragédia, agora ela só pode ser tomada como um cataclismo, uma vez que, ao contrário do que Marx ditava a Hegel de que os eventos da história se repetem duas vezes: “a primeira vez como tragédia, a segunda vez como farsa” (Marx, 2011, p. 25), a ocorrência de tais fenômenos nada tem de falso, mas representa uma realidade muito concreta que devemos olhar, pois impõe ao mundo uma espécie de cataclismo em que o tempo se enrijece diante de um fim do mundo.
Isso se deve à forma como o realismo capitalista descrito por Fisher, o tempo em que vivemos, se impõe como um tempo cancelado a partir do qual tudo se repete em uma espécie de fita de Moebius em que a tragédia se torna catástrofe absoluta: “O mundo não termina com um baque: em vez disso, ele morre, gradualmente se desmembra, desliza em um cataclismo lento” (Fisher, 2018, p. 23).
Esse cataclismo, no caso da presença do regime trumpista, é evidenciado na forma como o espectro político da população, à medida que a crise mundial se aprofunda, toma o rumo conservador e neoliberal. Sim, foram os americanos que o elegeram, mas como em um mundo globalizado é apenas uma questão de tempo até que esses fenômenos políticos se espalhem para versões regionais na América Latina ou na Europa. Trump representa a força da hegemonia que busca se manter a todo custo, bem como o medo diante da insegurança de assumir a responsabilidade pelo mundo cada vez mais caótico. Trump não é um líder forte em tempos difíceis, mas um líder cínico em tempos difíceis, o que só pode levar a ‘tempos interessantes’.
O retorno de Trump traz para a esquerda latino-americana a necessidade de se questionar como oposição ao espectro do libertarianismo conservador que está emergindo do Norte para exercer força no Sul global. Não se trata de dizer que Kamala Harris é de esquerda e como ela perdeu devemos pensar como esquerda o que aconteceu, já que Harris será a oposição de Trump, mas sua forma de administrar se reduz a ser um capitalismo onde a diferença com seu oponente se reduz à cor de sua bota.
No entanto, na América Latina não é assim, a luta é em outros tons políticos e o encorajamento que Trump e seu círculo de mega milionários promove nos líderes desse libertarianismo conservador deve fazer a esquerda pensar em considerar seu papel no futuro da região, não apenas ficar na luta dentro das simulações do mundo contemporâneo[1].
Se o futuro da humanidade dentro do realismo capitalista se esgota em um cataclismo lento, é necessário considerar as formas atuais com que o indivíduo se relaciona com a vida para criar uma ruptura nelas. Na cadeia de significantes que se estrutura na psique das pessoas dentro do capitalismo atual, devem ser produzidas ressignificações simbólicas que abram o panorama para uma práxis humana diferente daquela que leva ao cancelamento do futuro.
Nesse sentido, o que emerge não é apenas uma crítica da economia ou da política capitalista, mas também uma mudança na forma como ela conduz e manipula o ‘desejo’ das pessoas. Esse último aspecto deve ser considerado, pois o capitalismo, no final das contas, nada mais é do que um sistema que, em sua essência, pensa em uma ontologia da liberdade em sua relação com o desejo, uma relação que leva a uma visão na qual todo sujeito capitalista é um conquistador que deve triunfar sobre os outros, não importa o que aconteça; é a ideia do desejo pessoal que se impõe ao mundo.
Aqui devemos nos lembrar da cena de Scarface, em que Tony Montana lê em um dirigível a frase: “The world is yours –O mundo é seu“; no final, é isso que acontece no âmbito de uma sociedade que concebe a vitória pessoal como o resultado de uma guerra de todos contra todos e que reduz as realizações a meras conquistas egocêntricas, medidas e valorizadas na medida em que estão associadas à capacidade de consumo; todos querem tornar o mundo seu, mas não podem ser todos possuidores do mundo; esse é o impasse do capitalismo, que Scarface retrata com perfeição.
É por isso que Trump é o que melhor representa essas figuras do capitalismo tardio, os seres humanos transmodernos, porque em um mundo que está desmoronando nas mãos de seus habitantes à medida que os dias passam, alguns acham que a melhor solução é lutar uns contra os outros e desfrutar ao máximo até que o apocalipse chegue, ignorando que quando o fogo chegar às portas das casas, elas também arderão com aqueles de nós que ficaram sem pagar pela viagem a Marte.
É aqui que a esquerda deve começar a pensar o desejo como o objeto de sua crítica, uma crítica libidinal que pense o desejo como o núcleo da ontologia que o libertarianismo conservador vende. Buscar um desejo que resgate a humanidade em sua bondade para com o mundo e sua empatia pelos outros, e não apenas como empresários que não têm medo de afundar o outro para ter sucesso. Essa ‘sociedade do desejo’: “Não será uma sociedade de desordem e pura expressão brutal. Pelo contrário. Observemos a nova sensibilidade das pessoas, a grande doçura, a nova doçura que não tem nada a ver com a brutalidade falocrática de outras épocas” (Guatarri et al., 2022, p. 83).
Juan David Almeyda Sarmiento é estudante de doutorado em filosofia da Universidade Federal de São Carlos. Pesquisador e professor da Universidade Industrial de Santander (Bucaramanga-Colômbia), assim como integrante de vários grupos de pesquisa do Brasil.
Bibliografia:
Baudrillard, J. (1991). Simulacros e simulação (M. Costa, trad.). Lisboa: Antropos.
Fisher, M. (2018). Realismo capitalista: Não há alternativa (C. Iglesias, trans.). Buenos Aires: Caja Negra.
Guatarri, F., Berardi, B. e Bertetto, P. (2022). Felix Guattari. Desejo e revolução (V. Lima, trad.). São Paulo: sobinfluencia edições.
Jameson, F. (1991). Postmodernism or the cultural logic of advanced capitalism (J. Pardo, trans.). Barcelona: Paidós.
Jameson, F. (2002). The political unconscious: Narrative as socially symbolic act (O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico). Nova York: Routledge.
Marx, K. (2011). O 18 brumário de Luis Bonaparte (N. Scheneider, trans.). São Paulo: Boitempo.
Zizek, S. (2011) Welcome to interesting times (Bem-vindo a tempos interessantes) (V. Ruiz e M. Souza, trad.). La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia.
[1] Ou seja, dentro desses espaços virtuais, não necessariamente digitais, descritos por Baudrillard (1991), nos quais a realidade é borrada em um panorama de representações do que existe.