Você falaria “eu avisei” para este rapaz?
No realismo ilusório em que vivemos, marcas e símbolos convivem com seus contrários. Num diapasão de miragens políticas e sociais, no qual a essência mistura-se com a evanescência, tudo é plausível diante da cisão despolitizante entre categorias sociais. O que vale na política continua sendo o velho bordão da ação concreta sobre a realidade concreta
Não sei o nome dele – pode também ser ela – e nem o do fotógrafo. O jovem é entregador, deve ser motoqueiro, a se conferir pelo capacete. É possível que rale sete dias por semana, faça chuva ou faça sol. É um batalhador e tem jeito de estar revoltado como os milhares que o acompanhavam no Breque dos Apps, na quarta, 1º de julho, na Avenida Paulista, São Paulo. Houve protestos também em várias cidades do Brasil e do exterior. Seu olhar incomoda, perfura a tela e nos atinge como um raio. Não acusa, é calmo, resignado e profundo. As marcas em volta de seu rosto desconcertam e assustam.
Usa uma máscara de proteção que é uma contradição em si: “Fechado com Bolsonaro”, o presidente que faz troça do isolamento e veta partes de uma lei aprovada no Congresso para limitar justamente o uso de máscaras. Na cabeça, o nome de uma marca de capacetes, homônima a uma outra de armas. Na lapela, um selo escrito “desempenho”. Provavelmente o moço não imagina, mas sua imagem vale uma tese. Na foto resume-se o Brasil de hoje, o que importa para as maiorias e algumas chaves para o futuro.
Os órfãos do lulismo
O rapaz é um órfão do lulismo e dos tempos do pleno emprego, observado entre 2011 e 2014. É o caso de milhões que veem o futuro nas ocupações precárias, depois de poucos anos de ampliação do mercado formal, subitamente truncados por decisões governamentais tomadas de 2015 em diante. Sua opção passou a ser a intermitência ou a fome; a intermitência vista não como exploração, mas como oportunidade.
A consciência de que a oportunidade também significa fome, dadas as condições leoninas de “parceria” impostas pelas grandes empresas dos aplicativos, bateu muito recentemente e se espalha pelos precários e flexíveis como fogo em mato seco.
Possivelmente ele só se sente trabalhador essencial nos tempos de pandemia. Assim como a guerra e o preconceito servem de gatilho para percepções novas, os invisíveis se veem não apenas como visíveis, mas como empoderados. Se pararem, acaba o conforto da classe média para cima, acaba o isolamento seguro e acaba certa lógica social mantida no confinamento.
O mosaico de signos emanados de sua figura mostra que esse despertar ainda está no nível pessoal e imediato. Álcool gel, café da manhã, horários para almoço e banheiro e mais dinheiro na repartição de ganhos com as empresas são as demandas na avenida. E que as coisas em casa sejam mais leves e que ele não sofra nenhum problema de saúde.
Seguramente o rapaz não estabelece a ligação lógica entre o personagem estampado na máscara e o abandono da população pobre em meio ao coronavírus, o descaso para com a saúde pública, o “E daí?” etc. etc. E com certeza avalia que desempenho medido por algoritmos e planilhas Excel são a turbina para uma vida melhor. Tudo aqui é especulação.
Provavelmente ele também não se via como categoria até ver milhares partilhando de suas reclamações no asfalto. É muito difícil organizar o precariado, seja por sua fragmentação, seja por grande parte não enxergar seu ofício como trabalho regular, com plano de carreira, bônus de fim de ano, estabilidade e tudo o mais.
A máscara e a luta
Quem ostenta aquela máscara está na luta e está também entre os 32% da população que aprovam o governo Bolsonaro como ótimo ou bom, como atestou o Datafolha no final de junho. Quem atenta apenas para esse percentual e não para o ambiente onde está o motoqueiro acaba pensando que a situação do país não vai mudar e que estamos todos lascados. A extrema-direita venceu.
Calma. Vamos continuar examinando o Datafolha. Mas antes, olhe mais uma vez a foto. É importante mantê-la na cabeça enquanto desfiamos as estatísticas. Elas são meio frias e precisam desse recheio.
Olhemos para a avaliação da atuação do Ministério da Saúde. Enquanto 76% dos entrevistados a consideravam ótima ou boa no início de abril (gestão Mandetta), agora apenas 33% têm a mesma percepção. Um tombo de 43% em três meses!
O segundo ponto notável na sondagem é a opinião dos entrevistados sobre o desempenho do presidente no combate à doença. Os que responderam que o mandatário mais atrapalha eram 51% na primeira semana de abril e são 61% no final de junho! Outro tombo.
Exclusão sumária
Como é possível Bolsonaro exibir 32% de ótimo e bom se ele mais atrapalha do que ajuda no combate à doença para quase dois terços da população? A resposta pode ser dada com uma nova pergunta: como alguém pode realizar um protesto contra uma empresa que é seu ganha pão e que em meio minuto – se esta souber que ele anda reclamando – pode excluí-lo de seu cadastro/algoritmo para nunca mais voltar? Como pode um sujeito seguir “fechado com Bolsonaro” – um dirigente que tem na retirada de direitos dos trabalhadores uma de suas razões de ser – e protestar por mais direitos?
O Datafolha não fez cruzamento dos dados. Não sabemos se os 61% que condenam o desempenho de Bolsonaro diante da praga se interseccionam com os 32% do ótimo e bom ou se são segmentos excludentes. De todo modo, se um personagem do poder tem um mau comportamento em algo tido como essencial, ele deveria ter um índice muito maior de ruim e péssimo do que os 44% mostrados nas tabelas do instituto.
Com apoio de um terço do eleitorado, Bolsonaro não apenas segue com base fiel – note-se que ele não cometeu estelionato eleitoral –, como torna-se competitivo para 2022. E isso se dá, já notou Esther Solano, pelo fato de as pessoas não verem alternativas viáveis. Não há quem colocar o lugar.
A ação das oposições
Qual tem sido a atuação principal das oposições? Ao PT interessa primordialmente acertar as contas com Sergio Moro e com a Lava Jato, para recuperar os direitos de Lula. Este tem marcado sua atuação pela pregação contra qualquer tipo de frente contra o governo – o que, na prática, significa jogar o desenlace da conjuntura para as próximas eleições presidenciais. Além disso, o ex-presidente mordeu a isca de Ciro Gomes e ambos preenchem parte de seus tempos em pancadarias verbais mútuas. Os partidos menores – Psol e PCdoB – buscam acertar uma linha de conduta, mas têm escassos meios para se colocarem no grande jogo.
Em uma frase, as oposições não falam do que interessa, toca e prejudica a vida do povo. Fazem “política”. Sabem o que é “política”, assim com aspas? “Política” é aquela coisa de Bolsonaro e do pessoal que almeja tirá-lo do governo, a turma do Supremo, do Congresso, o Queiroz, o Moro, os generais e por aí vai. Isso é “política”, gravem bem! “Política” para as grandes maiorias é coisa “deles”, “dos outros”, “de Brasília” etc. Nada tem a ver com o dia a dia de gente comum, nessa visão que guarda plena coerência interna. Seria algo quase abstrato.
A pandemia corre célere para atingir 100 mil mortos em agosto, com 2 milhões de infectados; os governadores cedem e abrem todas as atividades comerciais, religiosas, educacionais e culturais; meio milhão de pequenas e médias empresas vão à falência, em três meses; 1,3 milhão de empregos foram torrados nesse período e não aconteceu ainda uma explosão social pelo fato de alguns colchões sociais – auxílio emergencial, bolsa família, aposentadorias – estarem funcionando. Nada disso é “política”. Aliás, nada disso pode ser “política”!
A “política” não é a doença, não é a pandemia. Isso é coisa de médicos e do Jornal Nacional.
A “política” não é a vida concreta das pessoas, mas a política – sem aspas – é.
Despolitização da saúde
Faz-se aqui uma separação perversa entre política e saúde, da mesma forma que os liberais separam política de economia. Ao não ligar política e pandemia, a consciência popular tende a ver o vírus como uma fatalidade da natureza. Não percebe que seu descontrole tem a ver com a ação política – sem aspas! – de quem detém o poder na sociedade. A disjuntiva entre política e saúde – como diria Leonel Brizola – vem de longe.
Uma das principais referências teóricas do pensamento conservador em economia é o Tratado de Economia Política, escrito pelo francês Jean-Baptiste Say (1767-1832). O trabalho, de 1803, é tido como um dos pilares do liberalismo. Say é um seguidor de Adam Smith (1723-90)e coloca no papel teses que se tornaram caras à direita conservadora ao longo dos séculos, como, por exemplo, a completa separação entre economia e política:
“Durante muito tempo, confundiu-se a Política propriamente dita, a ciência da organização das sociedades, com a Economia Política, que ensina como se constituem, se distribuem e se consomem as riquezas que satisfazem as necessidades das sociedades. Entretanto, as riquezas são essencialmente independentes da organização política. Desde que bem administrado, um Estado pode prosperar sob qualquer forma de governo”.[1]
Em certa medida, é o que o economista liberal brasileiro Eugenio Gudin (1886-1986) defendia em 1938, em um texto chamado “Aspecto econômico do corporativismo brasileiro”. Ali ele comenta a história do capitalismo nos séculos XIX e XX:
“Quem acompanhou a marcha e a evolução do chamado regime capitalista de 1875 a 1914, até o rompimento da Guerra Mundial, constatou que o enriquecimento geral prosseguia seu ritmo natural e benéfico, a difusão de capitais se processava com regularidade, as condições de trabalho melhoravam por toda parte, o comércio internacional melhorava todos os anos. E se guerra houve, foi inteiramente gerada pelas paixões e ambições políticas e militares e em que os fatores econômicos menor papel representaram, essa foi a guerra de 1914, que desencadeou sobre o mundo uma das maiores crises econômicas da história”.[2]
Gudin também separava economia de política. O conservadorismo vê a sociedade formada por partes estanques entre si. Modernamente seriam “bolhas”.
Por que isso acontece? Para – no caso da economia – retirá-la da esfera das disputas sociais e elevá-la artificialmente à categoria de atividade pretensamente técnica, na qual não seria possível arbitrar opções, apenas seguir recomendações falsamente neutras e imprescindíveis. Assim, favorecer tais ou quais setores da sociedade e prejudicar outros com medidas de política econômica cumpririam apenas receituários imparciais, destinados a cuidar do bom funcionamento da economia, o que demanda antes de mais nada um cipoal de saberes e conhecimentos restritos a poucos. Blindam-se assim decisões sobre taxas de juros, carga tributária, incentivos fiscais, ou outras da mesma categoria.
Ao proceder de forma semelhante, separando-se a política da saúde, blinda-se o governo por decisões irresponsáveis e joga-se a catástrofe sanitária para a conta das imutáveis forças da Natureza.
O realismo ilusório
A foto! A foto! Voltemos a ela. O rapaz exibe um dos grandes efeitos do pensamento conservador na sociedade – que foi também apropriado por parcelas da esquerda ao longo de 13 anos –, de se criar uma sociedade de universos, ou bolhas, estanques entre si.
Em síntese, o rapaz usa máscara de Bolsonaro e os outros símbolos, o que faz pleno sentido no realismo ilusório em que vivemos. Nesse diapasão de miragens políticas e sociais, no qual a essência mistura-se com a evanescência, ele não teria nenhuma razão para não exibir o pano com aquela estampa no rosto. Tudo é plausível diante da cisão despolitizante que não apenas a rede de fake news governamental consegue propagar, mas que a oposição equivocadamente dá curso. Ao não falar da vida concreta e do sofrimento do povo, por que razão o motoqueiro deveria proceder de modo diverso?
Desenvolver consciência política é tarefa de agremiações de esquerda em meio às lutas sociais. A maior parte delas decidiu mudar de assunto. Paciência, é direito que lhes assiste.
Enquanto isso, devo confessar que a foto do garoto – com Bolsonaro, Taurus e desempenho – me deixa muito animado. Mais do que os símbolos, vale o fato de ele ter decidido encarar a luta. Vida concreta é o que conta, lembremos. Ou seja, o belo exemplo que os trabalhadores das entregas estão dando ao país é alentador, apesar de estampas ou símbolos contraditórios que porventura exibam.
Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.
[1] Say, Jean-Babtiste. Tratado de economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.39
[2] Borges, Maria Angélica. Eugenio Gudin, capitalismo e neoliberalismo. Tese de doutorado, Faculdade de História PUC-SP, 1995, p.42.