‘Você poderia ter me pedido’ – o trabalho invisível das mulheres
É necessário adotar um sistema de tributação progressiva, legislação em favor de quem está a frente do serviço doméstico e de cuidado e uma oferta maior de serviços públicos, que reduzam essa carga de trabalho não remunerada e invisibilizada.
Nas últimas semanas, a pandemia trouxe à tona a necessidade de reavaliarmos a divisão equitativa de tarefas entre as famílias. Muitas mulheres, precisam administrar o trabalho remoto, educação dos filhos na modalidade online e as tarefas domésticas. Contando com pouca ou nenhuma ajuda de companheiros ou de outros membros da família. Entretanto, essa discussão não é recente.
A administração do lar nos foi direcionada por uma sociedade masculina detentora do poder político e religioso durante séculos, controlando inclusive nossa capacidade reprodutiva 1.E o questionamento levantado aqui é: o que lucramos com esse papel? Nada. Trabalhamos de graça para o Estado. Acumulamos sobrecarga mental, jornadas duplas de trabalho e/ou terceirizamos os serviços de cuidado a outras mulheres, na maioria negra e periférica, para manter o sistema capitalista lucrando.
Carga horária
Segundo dados divulgados em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres dedicam em média 18,5 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidado de pessoas, na comparação com 10,3 horas semanais gastas nessas atividades pelos homens. Essa rotina deve ficar mais intensa com o isolamento causado na pandemia. A sobrecarga de horas de trabalho das mulheres é uma das barreiras para a participação feminina no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens. Dificultando consequente acesso a recursos econômicos que lhes permitam maior grau de autonomia. E por isso é necessário, primeiro, compreender o que é o trabalho de cuidado.
Tanto sociólogos quanto economistas2 que estudam essa questão, afirmam que o trabalho de cuidado é essencial para suas respectivas áreas. Algumas de suas atividades são: cuidar das crianças, idosos e deficientes físicos e mentais, assim como o trabalho doméstico diário, cozinhar, lavar louça e, no caso das mulheres que residem na área rural, buscar água e lenha.
Uma pesquisa do IBGE, divulgada em 2016, relatou que preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar a louça teve uma taxa de realização de 97,7% das mulheres e 58,5% dos homens. De acordo com o relatório, a única atividade doméstica protagonizada pelos homens é a da manutenção da casa com pequenos reparos: 33,9% para as mulheres, contra 65% para os homens.
Essas atividades essenciais proporcionam que o homem, em sua maioria, possa contribuir mais horas de trabalho remunerado para economia, partindo da premissa que ele não teria que se preocupar com a manutenção da casa e dos cuidados com as crianças ou parentes mais velhos. Sem esse serviço prestado pelas mulheres, comunidades, locais de trabalho e economias inteiras ficariam estagnadas.
A economista e especialista no tema, Hildete Pereira de Melo, em uma entrevista para “Gênero e Número”, alertou que a falta de conscientização masculinas, em conjunto com poucas politicas públicas eficazes, dificultam o avanço sobre o caso. Em suas palavras, ‘As mulheres trabalham mais quando somamos o trabalho reprodutivo com o trabalho produtivo…Então o primeiro caminho seria os homens se conscientizarem que precisam dividir as tarefas domésticas. É preciso pensar programas como creches e escolas integrais. Hoje só temos creches para 23% das crianças… Escola em tempo integral só existe para os ricos.., 90% das crianças e adolescentes são atendidas pelas escolas públicas, ou seja, o grosso da população depende do sistema educacional público’ .
Intersccionalidade
Ao retratar a questão da divisão doméstica no Brasil, evidenciamos não só a desigualdade de gênero no país, mas também de classe e raça. É necessário ter o olhar interseccional para esse problema, especialmente, para a realização de um panorama completo e formulação de políticas inclusivas para garantir melhores condições de trabalho a essas mulheres. Importante refletir e evidenciar que as dificuldades e sobrecargas entre elas não são as mesmas. Mulheres negras, brancas, periféricas, da classe média, dos centros urbanos e rurais, se deparam com essa jornada dupla e invisível de formas bem diferentes.
Devemos olhar para a nossa história ao tocar nesse ponto. Como dito anteriormente, as mulheres foram sobrecarregadas por esses serviços desde sempre. Porém, há uma diferença entra as mulheres brancas e negras. Enquanto as brancas lutam para conseguir sua autonomia econômica e emancipação profissional, as negras ainda são vinculadas a serviços domésticos e de cuidado, com similaridades a época da escravidão.
Essa realidade brasileira é expressa no papel das empregadas domésticas, em sua maioria, negras, de cidades do interior, muitas vezes menores de idade e de origem periférica. Em 2015, 32% das mulheres trabalhavam como diaristas, sem contrato de trabalho, hoje, provavelmente, esse número deve ter aumentado com a recessão econômica e o crescimento da informalidade.
Mais uma vez, o contexto atual trouxe à tona essas disparidades. Não devemos esquecer que a primeira morte por coronavírus, anunciada no Rio de Janeiro, foi de uma senhora de 63 anos, empregada doméstica. Segundo sua família, a patroa tinha viajado recentemente à Itália e não informou a vítima que estava infectada. Nesses tempos, as empregadas domésticas e diaristas, além de cuidar da própria casa, precisam contar com o bom senso dos patrões para que não sejam também expostas aos riscos da doença.
O serviço doméstico também afeta a vida das jovens vulneráveis e de classe baixa a buscarem empregos ou permanecer na escola. Segundo dados do IBGE de 2018, enquanto 35,4% de adolescentes e mulheres entre 15 e 29 anos disseram que não buscam emprego por terem essa obrigação, apenas 1,3, dos adolescentes e homens declararam a mesma razão. Sobre não retomar os estudos, 39,5% das mulheres, entre 18 e 29 anos que não concluíram o ensino médio, indicaram as tarefas domésticas e de cuidado como principal motivo, enquanto 0,9% dos homens disseram o mesmo. 52,5% dos homens disse que a razão para não voltar a escola é estar trabalhando fora de casa ou buscando trabalho, contra 23,2% para mulheres.
Na zona rural, os trabalhos domésticos tendem a ser mais pesados pela falta de assistência e políticas públicas eficientes. Como por exemplo, a falta de água encanada. O nordeste brasileiro possuía, aproximadamente, 12 milhões de pessoas sem acesso a abastecimento de água em 2019, segundo o IBGE https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/03/09/divisao-justa-de-trabalho-domestico.htm. O que significa que no dia a dia, as mulheres precisam caminhar e carregar baldes com litros de água para realizar as tarefas de casa e de cuidado.
Outro agravante no Brasil são as mãe solo, que totalizam mais de 11 milhões de famílias https://g1.globo.com/economia/noticia/em-10-anos-brasil-ganha-mais-de-1-milhao-de-familias-formadas-por-maes-solteiras.ghtml. Mulheres que não tem com quem dividir o trabalho dentro de casa e que contavam com ajuda de parentes, entre eles, pessoas mais velhas tiveram sua situação dificultada hoje em dia, por se tratar de pessoas do grupo de risco e por isso não poder ter contato.
A Economia Feminista
A dupla jornada de trabalho adquirida pelas mulheres nos últimos anos é silenciosa, mesmo tendo um papel fundamental na economia. Isso porque a sociedade ainda não remunera, nem valoriza o trabalho doméstico. Em janeiro de 2020, a Oxfam Brasil estimou3 que meninas e mulheres ao redor do mundo trabalham 12,5 bilhões de horas todos os dias gratuitamente, realizando tarefas domésticas dentro da sua própria casa. A organização calculou que esse trabalho gera U$S 10,8 trilhões, aproximadamente R$ 50 trilhões, à economia global. Tentar traduzir em números essa questão vem da falta de reconhecimento de que o trabalho doméstico, como o próprio nome diz, é sim um trabalho. Para a organização, os cuidados da casa e família ainda são ignorados na construção de indicadores econômicos e agendas políticas.
Recomenda-se que os Estados, construam uma economia humana que seja feminista. Valorizando as questões sociais relevantes, ao invés de ter o foco na busca interminável por lucro e riqueza. A luta pela igualdade de gênero e a economia feminista são pilares fundamentais para a economia humana. E um dos primeiros elementos para uma economia mais justa é lidar com a problemática do trabalho de cuidado não remunerado e mal pago.
É necessário adotar um sistema de tributação progressiva, legislação em favor de quem está a frente do serviço doméstico e de cuidado e uma oferta maior de serviços públicos, que reduzam essa carga de trabalho não remunerada e invisibilizada. Como exemplo, creche em tempo integral, transporte escolar, cuidados de idosos e deficientes, etc. Em paralelo às questões econômicas, precisamos também de uma mudança cultural sobre o assunto. A conscientização dos homens e educar nossas crianças para não propagar mais esse tipo de comportamento são caminhos para a construção de um mundo mais igualitário.
Liz Cosmelli é internacionalista. Mestra em Análise e Gestão de Políticas Internacionais pela PUC –RJ e pesquisadora de gênero e direitos humanos.
* A afirmação trazida no título desse texto pertence ao trabalho da ilustradora francesa Emma Clint. Uma das pioneiras em evidenciar, nas suas histórias em quadrinhos, a desigual atribuição feminina as tarefas domésticas. Disponível em: https://www.elperiodico.com/es/cuaderno/20171216/emma-clit-la-carga-mental-nos-hace-perder-libertad-y-poder-6497126.
1 Ver mais em: Judith Butler (Problemas de Gênero, 2018); Thithi Bhattacharya (Feminismo Feminismo para os 99% – Um manifesto).
2 Ver mais em: Silvia Federeci (O Caliba e a Bruxa); Nancy Fraser (Feminismo para os 99% – Um manifesto).
3 Tempo de Cuidar – O trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade Disponível em: https://rdstation-static.s3.amazonaws.com/cms/files/115321/1579272776200120_Tempo_de_Cuidar_PT-BR_sumario_executivo.pdf