Whisner Fraga fala sobre obra de minicontos que dá voz aos invisíveis
Em Fomes inaugurais, o autor mineiro entrega uma coletânea de minicontos ferozes e poéticos sobre a brutalidade cotidiana enfrentada por pessoas em situação de rua
Finalista do Prêmio Jabuti em 2023, o escritor Whisner Fraga retorna com força ao gênero do conto em Fomes inaugurais, seu sétimo livro de contos e o terceiro dedicado aos minicontos. A obra retrata a aspereza cotidiana e a desumanização de quem vive na rua. Com lirismo e contundência, Fraga transforma indignação em literatura. Nesse contexto, violências e indignidades veladas ficam expostas e escancaram as hipocrisias da sociedade atual.
Fomes inaugurais constrói, em textos curtos e interligados, um panorama da desumanização cotidiana. Cada conto, por mais breve que seja, funciona como uma peça de um quebra-cabeça maior, que desafia o leitor a encarar o mundo com olhos mais atentos. Os títulos iniciais — “o apetite relutante”, “o apetite galanteador” — já apontam para a fome como metáfora recorrente, física e simbólica. Nesse contexto, Fomes inaugurais perpassa temas delicados da condição humana como os julgamentos sociais, a injustiça, a maldade, mas também aborda o contraponto como empatia e o espírito colaborativo para a sobrevivência em um ambiente hostil.

Natural de Ituiutaba, Minas Gerais, e radicado em São Paulo, Whisner Fraga escreve desde os dez anos e mantém uma carreira literária sólida há mais de duas décadas. O mineiro estreou no universo literário em 1997 com Seres e Sombras. Sua obra seguinte, Coreografia de danados, de 2002, foi publicada por meio do prêmio Galo Branco. Desde então lançou mais de uma dezena de livros, com destaque para o finalista do prêmio Jabuti, em 2023, Usufruto de demônios, publicado pela editoraOficios Terrestres. Ele também se destaca no ambiente digital com o canal Acontece nos livros.
Nesta entrevista, o autor compartilha os bastidores da obra Fomes inaugurais e reflete sobre sua escrita.
O livro gira em torno da sobrevivência de pessoas em situação de rua. Por que esse tema se tornou central para você e o que te motivou a escrever Fomes inaugurais?
Sempre optei por tratar temas universais de forma lírica. O tema central deste livro é a sobrevivência de pessoas em situação de rua. Todos os contos tratam deste assunto.
A motivação foi o fato de o grupo do condomínio em que moro querer expulsar um casal que estava ocupando a calçada em frente. Algumas mensagens de caráter profundamente desumano me deixaram revoltado, o que me levou a escrever a obra. Foi o livro que produzi mais rapidamente em minha carreira: três meses. O processo foi visceral, eu trabalhava, em média, quatorze horas por dia.
Em sua análise, que reflexões sobre a sociedade os contos provocam no leitor?
O leitor deste livro deve refletir sobre esse mecanismo social que leva as pessoas a esta situação de rua, em primeiro lugar. Depois, claro, vem aquele sentimento de que há histórias em cada uma destas pessoas. Histórias que não devem ser silenciadas pelo descaso da sociedade. Acima de tudo, o que eu realmente espero é poder despertar a empatia, mostrar que somos todos seres humanos, todos merecemos uma moradia digna, maneiras para sobrevivermos neste mundo tão injusto, tão complexo, mostrar que as pessoas em situação de rua merecem respeito, merecem acolhimento, dignidade, justiça, precisam do olhar cuidadoso do poder público. Este livro fala sobre a condição humana, os julgamentos sociais, a injustiça, a maldade, a empatia, o espírito colaborativo, sobre o sistema de exclusão promovido pelo capitalismo, sobre a sobrevivência em um ambiente hostil.

A fome aparece no livro em múltiplas camadas — física, afetiva, existencial. Como você enxerga esse conceito no contexto contemporâneo?
A fome está, a meu ver, cada vez mais presente em nosso cotidiano e é importante que ela seja saciada, mas de uma forma bem equilibrada. A sociedade hoje traz todos os dias às pessoas a fome de companhia, a fome de solidariedade, de empatia, a fome de reconhecimento, de respeito e estas “fomes” vão se acumulando até que um dia elas vêm à tona, elas rompem a pele da injustiça, da ganância e se tornam algo mais sereno e perene. As fomes afetivas e existenciais vêm desse distanciamento de nossa essência, em prol de algo mais egoístico, típico de um sistema competitivo, degradado por diversas ilusões, disponíveis cada vez mais em inúmeras plataformas de vendas. Há, na obra, diversas outras fomes: por exemplo, a fome despertada pelos sentidos, proveniente da memória, que é própria do ser humano. E todas elas são inaugurais, porque vêm de algo mais profundo, inato, inviolável, vêm de nossa ancestralidade, de nossa história.
Há uma tensão constante entre a memória e o presente na obra. Que papel a memória desempenha na construção dos personagens e da narrativa?
A memória é um dos gatilhos da fome. A memória é algo comum a tudo que é humano, ela ruge no meio da tarde quando busca aquele cheiro distante da infância, aquele café da avó, aquele doce de leite da tia, aquela tarde no teatro, aquela noite no cinema, o primeiro beijo, o ronronar aflito dos desejos que não conhecem os limites da realidade, a aspereza da mão do avô acariciando o pão de queijo numa manhã modorrenta numa cidade do interior, o estalar da crosta de um biscoito de polvilho partilhado com o irmão, o azul do suspiro acobertado pelo vidro no balcão da padaria, o azedo, o amargo que nos faz salivar só com a imaginação. Somos seres de memória e de fomes e é bom que estas fomes existam, mas é importante que todos tenham a chance de saciá-las.
O livro apresenta episódios de abandono, desintegração familiar e silêncios prolongados. De onde vem esse interesse pelos afetos partidos e pelas ausências?
Esse interesse existe desde a minha infância, quando, ainda muito novo, não pude compartilhar da companhia de um amigo querido da escola porque ele vinha de uma família de pais separados. Havia um preconceito enorme, como se ele, por este fato, tivesse uma educação pior, não fosse digno de nossa companhia. Ali começou este meu interesse por esse tópico da desintegração familiar. Mais tarde meus pais também se separaram e isso, claro, teve um impacto gigantesco sobre mim. E tenho a impressão de que, quanto mais vamos sofrendo, quanto mais vamos presenciando, aprendendo, testemunhando, mais vamos nos silenciando. Embora este silêncio não queira dizer ausência. Ao mesmo tempo em que a história humana é feita de afetos, de uniões, é também de separações.
O que esta obra representa na sua trajetória literária?
A obra representa tudo o que eu quis fazer em termos literários: a concisão, a poesia, a crítica social. O livro me transformou profundamente, porque foi um trabalho extremamente desgastante. Consigo ver com muito mais empatia, avaliar mais profundamente a vida em sociedade. Não é uma obra panfletária, eu não conseguiria conceber um livro assim. Tudo o que escrevo está permeado por um sentimento estético profundo. Não teria sentido, para mim, colocar mais uma coletânea de contos no mundo se não fosse para buscar algo maior, que beire a arte ou chegue a ela.
Você tem uma vasta produção literária. De que maneira a experiência adquirida com seus livros anteriores contribuiu para a construção desta obra?
Sempre a questão da depuração da palavra, a depuração da escrita, a escolha pelo termo certo, a palavra mais adequada, a transgressão linguística, a subversão das normas gramaticais. Há um radicalismo, neste sentido, em meus livros anteriores, que tento reverter, neste momento, até certo ponto. Com a experiência veio, também, a serenidade, a vontade de ser compreendido de outra maneira, de atingir um número maior de leitores. Não digo que com isso a minha literatura tenha se tornado mais fácil. Afirmo, de cara, que não escrevo fácil e nem quero escrever de uma maneira simples, porque não gosto de subestimar os leitores. Está na natureza humana o desafio. Nós gostamos de desafios, de superá-los.
Por que você optou pelo gênero de minicontos para Fomes inaugurais?
Acredito que, para que um leitor se anime a conhecer um autor desconhecido para ele, a obra tem de ser concisa. Não adianta apresentar um livro de 400 páginas a um leitor que está procurando algo diferente para ler, para experimentar. Então procurei escrever um livro fino, o que não quer dizer simples, é uma obra complexa, com várias nuances. Agora o miniconto veio de forma natural. Eu tinha diversas histórias anotadas, várias frases, uma boa quantidade de detalhes e eram todos flashes, eram fotografias muito específicas, de forma que não havia como abordar estes fragmentos que não fosse o miniconto.
O tema, é claro, poderia servir para contos maiores, para novelas, para romances, mas a forma como o registrei não deixava margem para textos mais longos. Eu havia colecionado, portanto, imagens, como, por exemplo, um casal vivendo em um carro, um muro sendo erguido para separar as pessoas em situação de rua do restante da sociedade, uma mulher que tenta ganhar algum dinheiro vendendo conteúdo adulto, um bando de pombos em cima de farelos de pão, um jato d´água para cima de pessoas em situação de rua, alguém dormindo na calçada, debaixo de uma placa de “aluga-se”, em uma casa em frente. Não tinha muito mais do que isso. Eram, portanto, recortes muito específicos de situações e achei que o miniconto seria o formato ideal. Por outro lado, minha literatura se pauta, desde o início, por uma tentativa de romper com os gêneros literários, de forma que o livro as fomes inaugurais pode ser lido, também, como uma novela fragmentada, em que personagens passeiam pelos contos, lugares se repetem, situações e palavras vêm e vão nos diversos fragmentos. É importante lembrar que este é o meu terceiro livro de minicontos e o sétimo livro de contos, de forma que eu tenho uma certa experiência no gênero, o que me dá um pouco mais de tranquilidade na hora de escrever.
Quais são as suas principais influências artísticas e literárias?
Posso citar alguns escritores que admiro: no conto, claro, Tchekhov é minha maior influência. Venho, inclusive, relendo as narrativas dele. De modo geral, todos os clássicos, em prosa e em poesia: Dostoievski, Camus, Austen, Silvina Ocampo, Sartre, Hesse, Poe, Maupassant, Cortázar, Borges, Casares, Woolf, Pessoa. Fui assimilando os modelos, pegando um pouco de cada. Dos brasileiros, os clássicos, há a evidente influência de Clarice Lispector, de Lygia Fagundes Telles, de Hilda Hilst, de Machado de Assis, de Guimarães Rosa, de Lima Barreto, de João Antônio, Drummond, de Murilo Rubião, de Dalton Trevisan. Dos mais contemporâneos, destaco alguns que escrevem em português: António Lobo Antunes, Raduan Nassar e Manoel de Barros. Todos estes escritores me influenciaram muito. Se eu tivesse de citar apenas um, a grande influência é Nassar.
Como você define seu estilo de escrita?
Eu tento, justamente, deixar essa definição de lado. Talvez a transgressão seja, de certa forma, ultrapassar qualquer definição. Inclusive é o sonho de todo escritor: ter um estilo próprio. Posso citar algumas características de minha literatura: uma estrutura de pontuação única, termos inusitados, elementos da poesia, do teatro, do romance, do jornalismo, da academia, da ciência. Mas eu gostaria de focar na pontuação: no meu caso, ela não segue a estrutura normativa da língua, mas outra, própria, que respeita os silêncios do leitor, que, em determinada altura, até pede esses silêncios, propícios não só ao entendimento, à reflexão, mas à memória. A leitura é construída dessas associações.
Como começou sua trajetória como escritor?
Comecei a escrever aos dez anos, quando tive um conto exposto no mural do colégio. Publiquei meu primeiro livro em 1997. Em 2002 lancei o segundo, quando venci o prêmio Galo Branco, a premiação consistia na publicação da obra, o livro de contos Coreografia de danados. Desde o primeiro livro que eu me vejo como um escritor, em todas as acepções da palavra.
Como é sua rotina de escrita?
Leio e escrevo todos os dias. Tento encarar a literatura como um ofício, então, normalmente, tenho horários para leitura e para escrita. Para mim não funciona somente o que chamam de inspiração: eu preciso de rotina e de disciplina para criar. Claro que não publico tudo que crio. Muito vai para o lixo. E esta rotina de escrita inclui a reescrita, que é o trabalho mais longo, mais demorado, inclusive. Para cada linha escrita, são cinquenta, cem revisões, duzentas reescritas.
Quais são os projetos literários em que você está trabalhando atualmente? O que podemos esperar das próximas obras?
Estou trabalhando em dois romances, ambos com os títulos provisórios: mal-estar, que retrata o período de 2013 a 2020, no Brasil, do ponto de vista de um sindicalista e ásanas, que fala sobre uma idosa que é internada e passa por todo o sistema cruel de saúde de nosso país. Mas tenho escrito contos esparsos, principalmente encomendados, sem um projeto de reuni-los em uma coletânea, pelo menos por enquanto. Nestas obras podem esperar um texto mais fragmentado ainda e mais reflexivo, apostando em divagações, trazendo estilos literários diversos e com uma linguagem mais simples, tentando, de alguma forma, se aproximar da oralidade.
Veriana Ribeiro é jornalista e escritora acreana com mais de 15 anos de experiência na área da comunicação, formada pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou o livro Coletânea dos Amores Partidos (autopublicação, 2021) e participou da coletânea Antes que eu me esqueça \ 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje (Quintal Edições, 2021), além de escrever projetos literários independentes como zines e newsletters.